Imagens: jogo de runas
contemporâneo (esquerda, alto); detalhe da inscrição de Rök (Ög 136),
Suécia (esquerda, abaixo); pedra rúnica de Funbo (U 937), Suécia (centro);
runomancia (direita, alto); pingente contemporâneo com a runa Algiz (direita,
abaixo). Fonte das imagens: internet.
Imagem:
pedra rúnica Skårby 1 (DR 280), Lund, Suécia.
Prof.
Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)
As
runas fascinam o homem moderno. Desde que o professor Otto Lindenbrock, na
cidade de Hamburgo, deparou-se com inscrições rúnicas escritas por Arne
Saknussemm e deu início a sua majestosa aventura (Viagem ao centro da Terra,
Júlio Verne, 1864) a arte ocidental retoma a todo instante o universo rúnico.
Tolkien também fez uso delas a partir de 1937 e os anos 1970, com o boom
místico da Nova Era, retomaram elas com um intenso fervor. Atualmente
encontramos runas em todo canto: na música, na televisão, no cinema, em eventos
esotéricos, na mídia e na internet. Elas povoam nossos imaginários, mas ao
mesmo tempo, possuem uma relação com o passado nórdico, muitas vezes repleto de
fantasias e equívocos. Nossa intenção neste pequeno ensaio é desmistificar
alguns aspectos ditos históricos na interpretação das runas presentes em
autores modernos. Não estamos realizando nenhum ataque pessoal a nenhuma forma
de crença ou misticismo – toda forma de saber é válida e lícita nos tempos
atuais, não importando o seu conteúdo ou intenções. A função do historiador é
tentar entender as formas com que um determinado conteúdo é recebido,
ressignificado e interpretado no mundo contemporâneo, mas ao mesmo tempo,
compreender como esse tema também foi entendido efetivamente no passado (antigo
ou medieval). Muitas vezes, ideias religiosas atuais se baseiam em uma
ancestralidade ou uma origem que não existiu – o discurso mítico moderno
inventa tradições baseadas na História, tanto para criar uma
legitimidade quanto impor valores e normas de comportamento no presente
(Hobsbawm, 1997, p. 9-10). Com isso, ao analisarmos alguns aspectos que tenham relação com crenças pessoais nos dias de hoje, não estamos promovendo nenhum ataque ou discriminação religiosa e sim, procuramos entender porque elas existem e qual os seus significados sociais.
Para separar melhor a bibliografia para o leitor, os títulos de fontes primárias (obras esotéricas, religiosas, místicas, neopagãs, mágicas, espiritualistas, jornalísticas ou de popularização) são detalhados no corpus do texto, enquanto as fontes secundárias (obras acadêmicas para referenciais analíticos e críticos) são citadas como autor, data, paginação no corpus e detalhadas no final do ensaio. Nosso referencial de investigação e análise é baseado nestas fontes secundárias, adotando principalmente duas metodologias: o modelo de tradições inventadas (Hobsbawm, 1997) e a teoria da recepção nórdica (Ross, 2018).
Para separar melhor a bibliografia para o leitor, os títulos de fontes primárias (obras esotéricas, religiosas, místicas, neopagãs, mágicas, espiritualistas, jornalísticas ou de popularização) são detalhados no corpus do texto, enquanto as fontes secundárias (obras acadêmicas para referenciais analíticos e críticos) são citadas como autor, data, paginação no corpus e detalhadas no final do ensaio. Nosso referencial de investigação e análise é baseado nestas fontes secundárias, adotando principalmente duas metodologias: o modelo de tradições inventadas (Hobsbawm, 1997) e a teoria da recepção nórdica (Ross, 2018).
Imagem 1: capa da edição
original do livro Das Geheimnis der Runen (O segredo das runas), de
Guido von List, 1908. List foi um dos responsáveis pela popularização do
neopaganismo nórdico e a interpretação mágica das runas germânicas antigas. O desenho do livro inclui 18 runas (selecionadas
do futhark anglo-saxônico de 31 caracteres) e incluída uma suástica
central, um símbolo antigo e medieval presente na recepção de intelectuais de
línguas germânicas desde a segunda metade do século XIX, interpretada
equivocadamente como um símbolo do deus Thor.
1 1. As
runas são inscrições mágicas
A
ideia mais comum no imaginário de grande parte das pessoas é que toda runa seja
algo mágico, ou seja, as inscrições rúnicas são míticas em si mesmas. Isso se
deve basicamente a obras de popularização sobre o tema, fundindo as inscrições
históricas com conteúdo da Edda Poética, como no primeiro livro
publicado no Brasil sobre a temática nórdica: “Os sagrados caracteres dotados
de prodigioso poder” (Dicionário de Mitologia Nórdica, Esopinho, s.d.,
p. 92, possivelmente publicado nos anos 1960). Mais recentemente, autores
estrangeiros e nacionais perpetuam essa visão: “são um sistema que detém e
transmite os poderes essenciais da natureza e seu uso tem como objetivo trazer
equilíbrio e harmonia à vida” (Runas, Catherine J. Duane e Orla Duane,
1997); “Las runas son caracteres
mágicos, combinados según reglas tradicionales, com um fin pantacular” (Amuletos,
talismanes y pantáculos, Jean Rivière, 1974, p. 323). A popular escritora
esotérica Mirela Faur também referenda essa concepção: “A maioria das inscrições
tinha finalidades mágicas e visava atrair a sorte, afastar o mal” (Ragnarök:
o crepúsculo dos deuses, 2011, Mirella Faur, p. 72). Na realidade, de um
ponto de vista puramente quantitativo, a grande maioria do conteúdo dos textos
rúnicos da Era Viking (cerca de 3.000 inscrições) não tem relação direta com
religião, mito ou magia, abordando questões puramente comemorativas,
literárias, funerárias e laudatórias (Williams, 2008, p. 285-286). Sobre isso
comentam também dois grandes especialistas em magia rúnica: “In fact
surprisingly few of the practices associated with runic writing seem to be
inherently magical” (MacLeod & Mees, 2006, p. 9). Quando abordam temas
religiosos, muitas inscrições rúnicas da Era Viking são cristãs e algumas poucas
relacionados com magia e paganismo (geralmente encantamentos e
invocações para Thor: Sawyer, 2003, p. 125-18), encantamentos de cura (MacLeod & Mees, 2006, pp. 116-162) e maldições (Langer, 2014, pp. 36-42).
A
própria distribuição dos alfabetos rúnicos na Antiguidade é refletida pelos
autores místico-esotéricos como tendo sido propagado devido ao seu caráter supostamente
sobrenatural: “O uso das runas com fins divinatórios e lançamentos de sortes
facilitou a sua difusão. Teutões, Címbrios, Suábios, e sobretudo Érulos, estes
últimos peritos em escrita rúnica, e adivinhação simultaneamente, contribuíram
largamente para a formação de uma estável tradição rúnica” (A mitologia dos povos
germânicos, Maria Lucília F. Meleiro, 1994, p. 72). Na verdade, a
distribuição das runas na Antiguidade europeia foi relacionada ao seu uso como
instrumento de comunicação gráfica, adaptando e evoluindo conforme as
diferentes linguagens adotadas pelos povos germânicos (Marez, 2007, p. 11). Do
mesmo modo, a origem das runas é concebida como tendo motivações puramente
mágicas: “As runas surgiram da fusão entre esta antiga escrita mágica de magos
e sacerdotes com um sistema fonético derivado dos etruscos da Itália” (As
ciências secretas de Hitler, Nigel Pennick, 1994, p. 50), porém, os atuais
runologistas estão mais propensos a pensar em uma influência grega, latina e do
norte da Itália (etrusca) na formação de um sistema de registro gráfico,
originalmente utilizado para comunicação, registro e criação de signos
ideográficos (Marez, 2007, pp. 25-27).
Outra
tendência muito comum nos escritores contemporâneos sobre runas é utilizar
algum conceito advindo do simbolismo e da teoria psico-analítica de Jung para
referendar algum aspecto sobrenatural ou místico delas: “As runas representam
arquétipos atemporais e sutis, que servem como portais mágicos de percepção
sutil e expansão da consciência humana” (Ragnarök: o crepúsculo dos deuses,
2011, Mirella Faur, p. 73). “Ao lançador de runas (...) suscetível de despertar
os poderes latentes de percepção sensorial dos símbolos arquetipais, inscritos
no inconsciente coletivo” (A mitologia dos povos germânicos, Maria
Lucília F. Meleiro, 1994, p. 71). Em um artigo publicado na revista Rever,
realizamos uma crítica sobre as teorias de base fenomenológicas aplicadas ao
mundo nórdico, na qual o inconsciente coletivo e arquétipos se inserem: de
forma resumida, elas não tem nenhuma base científica de demonstração, são universalistas
e essencialistas, desprovidas de contexto histórico e social (Langer, 2018, p.
238-240).
Imagem 2: Pintura de Carl
Emil Doepler, o jovem, baseado no relato de Tácito. Ilustração inserida na obra
Walhall: Die Götterwelt der Germanen, de Wilhelm Ranisch, 1905. O pintor
modificou o relato contido na Germânia e introduziu uma criança e uma
mulher, tornando a cena muito mais familiar e tradicional (dentro dos moldes de
uma sociedade alemã deste período, a mulher é totalmente passiva e submissa ao
comando e decisões masculinas). Assim como os religiosos e místicos, os
artistas ressignificam o passado histórico, adequando os conteúdos antigos aos
propósitos do presente. Fonte da imagem.
2. As
runas foram utilizadas como oráculos
Sem
dúvida o aspecto mais popular das runas nos dias de hoje: o oracular. E também
o mais desprovido de historicidade. Não há absolutamente nenhuma evidência
histórica ou arqueológica de que runas foram utilizadas como instrumento de
adivinhação ou oráculo na Era Viking. Para referendar este tipo de uso,
geralmente os praticantes da runomancia citam o famoso trecho da Germânia
de Tácito (98 d.C.), obviamente bem anterior ao período citado: “(...) cortam
uma vergôntea retirada de uma árvore frutífera em pequenos ramos e estes, diferenciados
por certos caracteres, eles espalham a esmo e fortuitamente sobre um tecido
branco (..) apanha um a um dos pequenos ramos por três vezes. Feito isso, ele
os interpreta segundo o sinal gravado neles anteriormente” (Andrade, 2011, p.
19). Segundo alguns especialistas, esta descrição de Tácito aplicada aos
oráculos rúnicos é problemática, porque antecede a existência histórica do
sistema de escrita germânico em pelo menos dois séculos, tornando muito
duvidoso de que fossem runas os ditos sinais (caracteres) utilizados no oráculo
(Davis, 2012, p. 2-3). O uso contemporâneo dos sistemas divinatórios rúnicos
teve popularidade a partir da publicação do livro de Ralph Blum em 1987 (The
Book of Runes), apesar dele nunca ter afirmado qualquer historicidade sobre
seus métodos. Mas a partir deste livro, toda uma geração de pessoas vem
utilizando métodos divinatórios sem qualquer tipo de questionamento sobre a
antiguidade deste sistema (mesmo entre grupos neopagãos). Uma evidência
contundente da origem moderna do oráculo rúnico é a runa branca (25ª.
runa: denominada de Wyrd ou runa de Odin) introduzida por Blum: “is the final
nail in the coffin to any ´traditionalist´” (Davis, 2012, p. 4). A variação do
tipo de sistema rúnico utilizado também nunca foi explicada: por que manter
alguns alfabetos e caracteres e eliminar outros? Isso não quer dizer que as
pessoas não podem utilizar e acreditar nos sistemas divinatórios – isso faz
parte da crença e da liberdade dos indivíduos. Mas quem pensa estar utilizando
um sistema antigo dos povos germano-escandinavos está simplesmente equivocado.
Esse tipo de conduta por parte dos ocultistas em estabelecer uma suposta
antiguidade para suas práticas é muito recorrente, com o intuito de conseguir
maior credibilidade e aceitação em sua comunidade ou para um público maior (Davis,
2012, p. 4, 5).
Os
métodos de leitura (ou tiragem) das runas são também especulativos, produtos da
imaginação ou então, retirados de outras fontes não relacionadas com a
Antiguidade ou Medievo. Um dos meios mais utilizados é a aproximação com o
Tarot, sistema de cartas originado de várias partes da Europa e produzida como
oráculo durante o Setecentos, sem relação direta com as runas, entretanto para
os adeptos da runomancia: “Ligada a noções de segredo e de mistério, a runa
pode, portanto, comparar-se ao arcano do tarot (...) É preciso também
lembrar que o sentido de uma runa é diferente quando estiver invertida” (O
futuro pelas runas, Liliane Decker, 1997, p. 17, 115). Esta última frase refere-se ao método do
Tarot de analisar o simbolismo da carta pela sua posição. Outra aproximação com
a tradição do tarot é a posse totalmente individual do objeto: “Essas runas
agora são pessoais e não devem ser usadas, sob qualquer pretexto, por outra
pessoa que não seja você” (Runas, Catherine Duane e Orla Duane, 1997, p.
19). Vários métodos de leitura são definidos por Faur: círculo tríplice
representando as nornas; entrelaçamento de triângulos (valknut); nove mundos da
Yggdrasil (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, pp. 311-314), ou
seja, métodos desenvolvidos a partir da mitologia nórdica, também sem nenhuma
base histórica. A mesma autora menciona também o método da “cruz rúnica”
(Ibidem, p. 319), que nada mais é do que uma adaptação do tradicional método da
“cruz celta” usada no tarot (O tarô mitológico, Juliet Sharman-Burke e
Liz Greene, 1991, p. 228). Alguns escritores pagãos questionam o uso oracular
das runas e sua associação com o Tarot e defendem estas como sendo um sistema
divinatório, onde se realizaria perguntas ao divino e ele lhe responderia. Entretanto,
acaba sendo do mesmo modo um método de adivinhar o futuro pelas runas, onde se
invocam entidades e retiram-se algumas runas de um invólucro, respondendo a uma
pergunta: “Qual o destino do nosso país, Óðinn, o senhor das runar?” (Runas e a espiritualidade nórdica, Programa Enigmas, 11/12/2018). Assim, esta alternativa não possui qualquer tipo de historicidade, do mesmo
modo que as aludidas anteriormente.
As
interpretações das runas são variáveis. Alguns apontam o Poema Rúnico
anglo-saxão para compreensão do significado material e espiritual das runas
(Runas, Catherine Duane e Orla Duane, 1997, p. 22). Em sua tradução
acadêmica deste poema referido (além dos poemas rúnicos islandês, norueguês
e Abecedarium nordmannicum), Elton Medeiros afirma que as interpretações
modernas dos significados das letras rúnicas apresentam resquícios do
romantismo oitocentista e dos impulsos esotéricos dos anos 1940 a 1970,
necessitando de muito senso crítico e cautela ao se lidar com o tema (Medeiros,
2015, p. 13). Outra grande influência interpretativa nas obras tanto de
neopagãos quanto escritores esotéricos são as publicações do norte-americano
Stephen Flowers (pseudônimos: Edred Thorsson e Darban-i-Den). Flowers obteve
doutorado em línguas germânicas em 1984 com o estudo Runes and Magic,
muito criticado pelos acadêmicos (classificado como especulativo por MacLeod
& Mees, 2006, p. 2). Faur cita nove obras de Edred Thorsson ao longo de seu
livro Mistérios nórdicos, enquanto Paxson cita três livros, além do
endereço e informações da Rune Gild, escola esotérico-pagã de Thorsson (Asatrú:
um guia essencial para o paganismo nórdico, Diane Paxson, 2009, p. 200,
203). A Rune Gild (fundada em 1980) é tanto classificada como uma escola
esotérica quanto paganista e tradicionalista radical. Ela foi originada pela
herança de ímpetos românticos sobre o paganismo vigentes no final do século XIX
(fascinação pela natureza e ideias de nação e raça), por uma reação esotérica
de René Guénon questionando a modernidade, como também por ideias do satanismo
da Igreja de Satã de Anton LaVey e o Templo de Set (Flowers fez parte de ambas).
Assim, como em outras facetas do esoterismo, a Rune Gild se baseia em uma mistura
de diferentes correntes (Granholm, 2010, pp. 95-115).
A
interpretação oracular das runas ainda prepondera nos meios mais recentes.
Mesmo livros supostamente com conteúdo mais “histórico” sobre o tema, são
acompanhados com runas de brinde. Eventos místico-esotéricos como a I Conferência
Brasileira de Runas (Hotel Estância Pilar, Ribeirão Pires, SP, 2017), além
de trazer vários aspectos oraculares, também apresentou outras tendências
mescladas ao interesse por runas, como o stadhgaldr (que comentaremos no
ponto 7), runas e aromaterapia, runas e
consciência, runas e xamanismo, além de aspectos de história da runologia (Johanes
Bureus e as Nobres Runas). A utilização de aspectos históricos ou titulações
acadêmicas é uma tendência nos meios esotéricos atuais. No livro Mistérios
nórdicos (Mirella Faur, 2007) a identificação da autora, logo abaixo de uma
foto ao lado de uma runestone europeia (orelha direita do livro), foi caracterizada
como “com extensa formação científica e esotérica”. Vários integrantes do
evento acima mencionado, identificam-se como graduados ou pós-graduados em
História, ao mesmo tempo em que se proclamam como bruxas, wiccanas, terapeutas
holistas, runemal, runólogo e/ou asatru: são elementos para legitimação de
ideias, aceitação mais ampla da sociedade (e talvez mesmo na academia) ou
validação de um legado supostamente baseado no passado histórico, mas que na
realidade se tratam de tradições inventadas.
Um
recente estudo inseriu a atual tradição rúnica oracular não em um passado
histórico antigo ou medieval, mas em um tipo de revival gótico atrelado
ao romantismo (final do Setecentos aos irmãos Grimm e Wagner até as ressignificações
das runas pelos nazistas e por Tolkien). O discurso de antiguidade entre seus
praticantes deriva de ideologias presentes nas modernas apropriações da cultura
popular (do qual se inserem os neopagãos e derivados culturais da Nova Era).
Estudando especificamente o período formativo dos guias oraculares rúnicos em
inglês – anos 1980 e 1990 – até autores mais recentes, a pesquisa demonstra a extrema
variabilidade de métodos e interpretações existentes em língua inglesa sobre o
tema. Estes guias pretendem ajudar o leitor a operacionalizar forças ocultas e
sobrenaturais que as ficções góticas representavam de forma literária, não
sendo uma mera curiosidade histórica, mas elementos constantes na cultura
popular (Mountfort, 2015, pp. 16-32).
Para
concluir esta seção, retiramos uma frase de um site neopagão: “But ‘Modern’
does not have to mean ‘Fake’!” (Cyrus the Strong, The problem with most" Runic Divination" books and "experts", Real Runic Magic,
2014-2016).
O objetivo deste texto não é desmerecer ou desqualificar qualquer forma de
crença (cujos resultados podem ser reais ou imaginários, a critério dos crédulos).
Vários neopagãos e esoteristas tem consciência de que certas tradições foram
inventadas no mundo contemporâneo ou são produtos de seus próprios referenciais
individuais (vide o site acima citado), o que não invalida as práticas em si
(de um ponto de vista da liberdade religiosa). A função do historiador não é
julgar ou discriminar, mas auxiliar na compreensão social do presente e do
passado.
Imagem 3: Odin e as runas, pintura anônima
contemporânea, fonte da imagem. O auto sacrifício
de Odin segundo o Hávamál, mas inserindo as runas dentro de uma típica
visão oracular moderna. A indumentária e os detalhes corporais lembram a figura
de Cristo na arte cristã. A arte refletindo o cruzamento entre os valores
atuais e os do passado.
3 3. As
runas das Sagas e Eddas provém da Era Viking
Uma
grande parte do conhecimento esotérico, místico e neopagão sobre runas provém
de leituras sobre as sagas islandesas e os poemas éddicos – dentro do
referencial romântico de que todas as informações da literatura medieval são
transposições objetivas advindas da Era Viking. Muitas pesquisas epigráficas mais
recentemente, estudando as inscrições rúnicas anteriores à cristianização e
comparando-as com o material literário, demonstram um panorama diferente: as
runas destes textos são produto da percepção social e da experiência de sua
própria época. Elas possuem um eco da tradição rúnica antiga, evidentemente.
Temas (como referências a elfos) e métricas existentes nas inscrições também
foram preservadas pela literatura. Um bastão de runas de Trondheim (A 142) é
muito semelhante ao discurso de Egill Skallagrímsson contra os escultores
incompetentes de runas. O problema que esse tipo de correspondência é
dificilmente encontrado entre as fontes epigráficas e literárias, tornando o
bastão de Trondheim uma peça única. Um caso famoso são as 36 runas inseridas na
Bósa saga ok Herrauðs (Saga de Bosi e Herraud, c. 1300):
Imagem 4: MacLeod, 2000, p. 254.
É
um exemplo de runas mágicas que não encontram suporte nas inscrições rúnicas
“reais”, pois são monogramas que foram adicionados para ilustrar a narrativa presente
no texto e demonstram que grande parte do conhecimento rúnico antigo já havia
se perdido. Possivelmente a narrativa original da Saga de Bosi não
continha runas ligadas (bind-runes) ou galdrastafir (MacLeod, 2000, pp.
253-255). Outros episódios rúnicos de sagas islandesas (como na Saga de Egil)
são artificiais e adaptados de motivos literários estrangeiros e descrevem
situações romantizadas de feitiçaria rúnica. Nem nas fontes epigráficas e nem
nas sagas islandesas ocorria qualquer alusão a manipulação mágica de runas
ligadas para fins ocultos (MacLeod, 2000, pp. 252-263).
Quanto
aos poemas éddicos, o processo é o mesmo. De maneira geral, os poetas cristãos
e escribas que estão por trás do processo de transmissão e registro da poesia
éddica, não conheciam a escrita rúnica e nem a aliteração, sendo muitas vezes
fantasias literárias. Mas o material não é todo igual: algumas passagens
refletem mais a antiga prática rúnica do que outras. A famosa descrição de
Sigrdrifa comentando sobre runas não é toda fabulosa, mas tem muito mais
paralelos com o uso de runas na época da narrativa. As runas de Odin no Hávamál
tem alguma relação com a métrica do canto rúnico de Ribe e a tradição sobre
este deus. Apesar de grande quantidade de fontes literárias em inglês e nórdico
antigo mencionarem runas escritas em espadas para fins mágicos, existem poucas
espadas medievais com runas gravadas. No geral, os poemas éddicos informam o
referencial contemporâneo (em relação ao texto literário) sobre o material
rúnico (MacLeod & Mees, 2006, pp. 233-253).
Imagem 5: Inscrição de
Maughold Stone
(MAUGH/2), Ilha de Man, séc. XII d. C. Na parte superior, inscrições rúnicas e
na parte inferior, inscrição oghâmica. Fonte da imagem.
4 4. O
ogham é uma escrita rúnica
Desde o Setecentos
existe uma confusão linguística, cultural e mitológica entre celtas, germanos e
nórdicos. Uma das que ainda persiste é a de que a escrita ogâmica das
populações das ilhas britânicas seria uma forma de alfabeto rúnico: “ao lado de
sua origem germânica, acredita-se que as runas estejam ligadas à escrita Ogham
(...) Como no Futhark rúnico, as runas do escrito de Ogham possuem qualidades
mágicas e misteriosas e eram usadas em escritos de feitiços e amuletos” (Runas,
Catherine Duane e Orla Duane, 1997, pp. 50-51); “Ainda que os druidas
irlandeses tivessem seu próprio alfabeto – o ogham – eles também utilizavam os
sistemas rúnicos, em especial o dinamarquês, o sueco e as runas marcadas com
pontos” (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, p. 23); “Las Runas Celtas y su Significado” (Símbolos Celtas).
Apesar de alguns estudos apontarem a influência das runas e da escrita grega na
formação inicial do Ogham, a maioria dos epigrafistas consideram o latim o
modelo principal, resultado do contato das populações britânicas com monumentos
romanos (Santos, 2016, pp. 35-50). As inscrições
oghâmicas não foram utilizadas para magia ou adivinhação (como quer a dupla
Duane) ou também, os druidas não utilizaram runas germânicas (como quer Mirella
Faur). Os nórdicos e a escrita rúnica penetraram nas ilhas britânicas após o
total desaparecimentos dos antigos druidas. Existem algumas poucas inscrições
rúnicas que coexistem com a escrita oghâmica no mesmo monumento, mas
possivelmente foram realizadas em épocas diferentes e por autores diferentes,
todas posteriores ao século VIII d. C. (vide a imagem 5, inscrição de Maughold
Stone, realizada por um sacerdote cristão, The Ogham Stones of the Isleof Man). Ou então inscrições rúnicas e oghâmicas esculpidas pela mesma pessoa, como na inscrição de Killaloe, Irlanda, séc. XI d.C. (Irish Archaeology).
Ainda sobre a escrita oghâmica, persistem equívocos: “(...) o Ogham não é um alfabeto de uso prático; não era usado para escrever contos ou notas. Sua utilização, ao que tudo indica, restringia-se às práticas rituais e aos oráculos” (O livro da Mitologia Celta, Claudio Crow Quintino, 2002, p. 88). A escrita oghâmica durante o irlandês arcaico (até o século VI d.C.) consistia majoritariamente em registros onomásticos; após o período de cristianização, ela torna-se eminentemente funerária. Na literatura irlandesa medieval, ao contrário, ela “surge nos textos lendários, é sempre com fins mágicos (...) Sob outra forma, a escrita está ausente (...) a escrita é uma aplicação prática da magia e os textos dependem do deus Ogmio” (Roux & Guyonvarc´h, 1999, p. 131). Aqui pode ter ocorrido uma confusão entre os registros epigráficos antigos e as representações literárias medievais, o que pode ter contribuído para a criação de oghamos oraculares mais recentemente (Ogham: o oráculo dos Druidas, Osvaldo R. Feres, 2018), e de modo muito semelhante aos rúnicos, não tem nenhuma base histórica.
Ainda sobre a escrita oghâmica, persistem equívocos: “(...) o Ogham não é um alfabeto de uso prático; não era usado para escrever contos ou notas. Sua utilização, ao que tudo indica, restringia-se às práticas rituais e aos oráculos” (O livro da Mitologia Celta, Claudio Crow Quintino, 2002, p. 88). A escrita oghâmica durante o irlandês arcaico (até o século VI d.C.) consistia majoritariamente em registros onomásticos; após o período de cristianização, ela torna-se eminentemente funerária. Na literatura irlandesa medieval, ao contrário, ela “surge nos textos lendários, é sempre com fins mágicos (...) Sob outra forma, a escrita está ausente (...) a escrita é uma aplicação prática da magia e os textos dependem do deus Ogmio” (Roux & Guyonvarc´h, 1999, p. 131). Aqui pode ter ocorrido uma confusão entre os registros epigráficos antigos e as representações literárias medievais, o que pode ter contribuído para a criação de oghamos oraculares mais recentemente (Ogham: o oráculo dos Druidas, Osvaldo R. Feres, 2018), e de modo muito semelhante aos rúnicos, não tem nenhuma base histórica.
Imagem
6:
Mosaico com Sol Negro,
1934, castelo de Wewelsburg, Büren, Alemanha,
5 5. O
Sol Negro é de origem nórdica antiga
Há
vários anos recebemos continuamente a indagação, de várias partes do Brasil, se
o Schwarze Sonne (Sol Negro) provém do medievo ou é uma invenção
moderna. A resposta é sim para esta última, trata-se de um símbolo criado no
século XX: um círculo solar formado por 12 runas Sig, dispostas radialmente,
criado em 1934 pelos membros da SS de Heinrich Himmler. O local era uma escola
para os membros da organização estudarem a herança germânica e a religião
nórdica antiga e também local para celebrações e cultos esotérico-religiosos.
Himmler considerava o castelo o centro do mundo germânico (Goodrick-Clarke,
2004, p. 190-191).
Imagem
7:
tatuagem rúnica, foto anônima da internet. Fonte da imagem
6 6. Tatuagens
rúnicas
Existem
poucas evidências de que os nórdicos da Era Viking utilizaram tatuagens ou
qualquer tipo de pinturas ou marcações corporais. O cinema e a televisão
popularizaram a ideia de tatuagens entre guerreiros nórdicos. Um estudo
relacionou a presença de tatuagens rúnicas na atualidade como um reflexo de
orientações, espiritualidade e tendências provindas da Nova Era e no
Neopaganismo. Especialmente as relações com Odin são destacadas nas tatuagens,
reforçando a associação das runas como mágicas. Sentimentos nacionalistas e/ou
extremismos políticos também foram detectados. No geral, as tatuagens rúnicas
são formas de expressões de identidade social e de pertencimento a determinados
grupos ou comunidades bem amplas de aficionados e interessados no mundo nórdico
medieval, muito mais do que reconstituições históricas (Bennett & Wilkins,
2019, pp. 1-14).
Imagem 8: quadro das
posturas meditativas do sistema Stadhgaldr (yoga rúnica). Fonte daimagem
7 7. Yoga
rúnica
Mais amplamente difundida no Brasil há
poucos anos, o sistema Stadhgaldr foi criado na Alemanha da década de
1930. Em 1920 Friedrich Marby desenvolveu um sistema chamado de Runengymnastik,
que foi aperfeiçoado mais tarde para a denominação de Runenyoga e depois
Stadhgaldr. A suposta base histórica para esses tipos de posturas
corporais no mundo nórdico, seriam provenientes dos desenhos contidos no chifre
de Gallehus “em que encontramos relevos em forma de runas e figuras
antropomórficas em posições semelhantes às runas” (As moradas secretas de Odin,
Valquíria Valhalladur, 2007, p. 19). O seu uso na atualidade é vinculado à
espiritualidade e crenças mágicas: “(...) divulgada pelas obras de Edred Thorsson
(...) é um sistema de magia que se utiliza de posturas, gestos e sons para
projetar a energia das runas e causar efeitos mágicos sobre o vitki (Mistérios
nórdicos, Mirella Faur, 2007, p. 399).
Imagem 9: Cópia dos
chifres de Gallehus encontrados na Dinamarca. Museu Nacional da Dinamarca,
Copenhague. Fonte da imagem
Os
chifres de Gallehus são dois objetos encontrados na Dinamarca no Setecentos e
Oitocentos, do qual só restam cópias na atualidade (foram criminosamente
fundidos em 1802). Os especialistas nunca chegaram a um consenso sobre a
interpretação dos desenhos, que são figuras humanas, antropomórficas, animais e
vários símbolos geométricos não figurativos. Alguns desenhos tem correspondência
com representações gráficas encontrada na Escandinávia da Era Viking (como uma
mulher portando corno de bebidas) ou Idade do Ferro (um guerreiro chifrudo
semelhante ao caldeirão de Gundestrup, constante do acervo do Museu Nacional da
Dinamarca), outras são únicas (serpentes sendo atacadas por outras serpentes?).
O contexto ritualístico dos objetos é considerado quase certo, mas outras
interpretações são puramente especulativas (as figurações formam um alfabeto; interpretações
arqueoastronômicas) ou parcialmente corretas (interpretações baseadas na
Mitologia Nórdica) (Nielsen, 2016, pp. 209-213). Não existe absolutamente
nenhuma evidência de que as figuras humanas presentes nos dois caldeirões de
Gallehus remetam a posições corporais realizadas por humanos na Antiguidade
escandinava, seja imitando as runas ou para realização de qualquer tipo de
magia, prática religiosa ou misticismo.
Nota:
Referências bibliográficas:
* Este
ensaio faz parte da pesquisa Simbolismo religioso nórdico em monumentos da
Era Viking e na Europa Medieval (Lattes/PPGCR-UFPB).
Referências bibliográficas:
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também: