O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Sete erros históricos sobre Runas e Magia Rúnica*


Imagens: jogo de runas contemporâneo (esquerda, alto); detalhe da inscrição de Rök (Ög 136), Suécia (esquerda, abaixo); pedra rúnica de Funbo (U 937), Suécia (centro); runomancia (direita, alto); pingente contemporâneo com a runa Algiz (direita, abaixo). Fonte das imagens: internet.




Imagem: pedra rúnica Skårby 1 (DR 280), Lund, Suécia.

Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)




As runas fascinam o homem moderno. Desde que o professor Otto Lindenbrock, na cidade de Hamburgo, deparou-se com inscrições rúnicas escritas por Arne Saknussemm e deu início a sua majestosa aventura (Viagem ao centro da Terra, Júlio Verne, 1864) a arte ocidental retoma a todo instante o universo rúnico. Tolkien também fez uso delas a partir de 1937 e os anos 1970, com o boom místico da Nova Era, retomaram elas com um intenso fervor. Atualmente encontramos runas em todo canto: na música, na televisão, no cinema, em eventos esotéricos, na mídia e na internet. Elas povoam nossos imaginários, mas ao mesmo tempo, possuem uma relação com o passado nórdico, muitas vezes repleto de fantasias e equívocos. Nossa intenção neste pequeno ensaio é desmistificar alguns aspectos ditos históricos na interpretação das runas presentes em autores modernos. Não estamos realizando nenhum ataque pessoal a nenhuma forma de crença ou misticismo – toda forma de saber é válida e lícita nos tempos atuais, não importando o seu conteúdo ou intenções. A função do historiador é tentar entender as formas com que um determinado conteúdo é recebido, ressignificado e interpretado no mundo contemporâneo, mas ao mesmo tempo, compreender como esse tema também foi entendido efetivamente no passado (antigo ou medieval). Muitas vezes, ideias religiosas atuais se baseiam em uma ancestralidade ou uma origem que não existiu – o discurso mítico moderno inventa tradições baseadas na História, tanto para criar uma legitimidade quanto impor valores e normas de comportamento no presente (Hobsbawm, 1997, p. 9-10). Com isso, ao analisarmos alguns aspectos que tenham relação com crenças pessoais nos dias de hoje, não estamos promovendo nenhum ataque ou discriminação religiosa e sim, procuramos entender porque elas existem e qual os seus significados sociais.
Para separar melhor a bibliografia para o leitor, os títulos de fontes primárias (obras esotéricas, religiosas, místicas, neopagãs, mágicas, espiritualistas, jornalísticas ou de popularização) são detalhados no corpus do texto, enquanto as fontes secundárias (obras acadêmicas para referenciais analíticos e críticos) são citadas como autor, data, paginação no corpus e detalhadas no final do ensaio. Nosso referencial de investigação e análise é baseado nestas fontes secundárias, adotando principalmente duas metodologias: o modelo de tradições inventadas (Hobsbawm, 1997) e a teoria da recepção nórdica (Ross, 2018).






Imagem 1: capa da edição original do livro Das Geheimnis der Runen (O segredo das runas), de Guido von List, 1908. List foi um dos responsáveis pela popularização do neopaganismo nórdico e a interpretação mágica das runas germânicas antigas.  O desenho do livro inclui 18 runas (selecionadas do futhark anglo-saxônico de 31 caracteres) e incluída uma suástica central, um símbolo antigo e medieval presente na recepção de intelectuais de línguas germânicas desde a segunda metade do século XIX, interpretada equivocadamente como um símbolo do deus Thor.



1     1.  As runas são inscrições mágicas

A ideia mais comum no imaginário de grande parte das pessoas é que toda runa seja algo mágico, ou seja, as inscrições rúnicas são míticas em si mesmas. Isso se deve basicamente a obras de popularização sobre o tema, fundindo as inscrições históricas com conteúdo da Edda Poética, como no primeiro livro publicado no Brasil sobre a temática nórdica: “Os sagrados caracteres dotados de prodigioso poder” (Dicionário de Mitologia Nórdica, Esopinho, s.d., p. 92, possivelmente publicado nos anos 1960). Mais recentemente, autores estrangeiros e nacionais perpetuam essa visão: “são um sistema que detém e transmite os poderes essenciais da natureza e seu uso tem como objetivo trazer equilíbrio e harmonia à vida” (Runas, Catherine J. Duane e Orla Duane, 1997); “Las runas  son caracteres mágicos, combinados según reglas tradicionales, com um fin pantacular” (Amuletos, talismanes y pantáculos, Jean Rivière, 1974, p. 323). A popular escritora esotérica Mirela Faur também referenda essa concepção: “A maioria das inscrições tinha finalidades mágicas e visava atrair a sorte, afastar o mal” (Ragnarök: o crepúsculo dos deuses, 2011, Mirella Faur, p. 72). Na realidade, de um ponto de vista puramente quantitativo, a grande maioria do conteúdo dos textos rúnicos da Era Viking (cerca de 3.000 inscrições) não tem relação direta com religião, mito ou magia, abordando questões puramente comemorativas, literárias, funerárias e laudatórias (Williams, 2008, p. 285-286). Sobre isso comentam também dois grandes especialistas em magia rúnica: “In fact surprisingly few of the practices associated with runic writing seem to be inherently magical” (MacLeod & Mees, 2006, p. 9). Quando abordam temas religiosos, muitas inscrições rúnicas da Era Viking são cristãs e algumas poucas relacionados com magia e paganismo (geralmente encantamentos e invocações para Thor: Sawyer, 2003, p. 125-18), encantamentos de cura (MacLeod & Mees, 2006, pp. 116-162) e maldições (Langer, 2014, pp. 36-42).

A própria distribuição dos alfabetos rúnicos na Antiguidade é refletida pelos autores místico-esotéricos como tendo sido propagado devido ao seu caráter supostamente sobrenatural: “O uso das runas com fins divinatórios e lançamentos de sortes facilitou a sua difusão. Teutões, Címbrios, Suábios, e sobretudo Érulos, estes últimos peritos em escrita rúnica, e adivinhação simultaneamente, contribuíram largamente para a formação de uma estável tradição rúnica” (A mitologia dos povos germânicos, Maria Lucília F. Meleiro, 1994, p. 72). Na verdade, a distribuição das runas na Antiguidade europeia foi relacionada ao seu uso como instrumento de comunicação gráfica, adaptando e evoluindo conforme as diferentes linguagens adotadas pelos povos germânicos (Marez, 2007, p. 11). Do mesmo modo, a origem das runas é concebida como tendo motivações puramente mágicas: “As runas surgiram da fusão entre esta antiga escrita mágica de magos e sacerdotes com um sistema fonético derivado dos etruscos da Itália” (As ciências secretas de Hitler, Nigel Pennick, 1994, p. 50), porém, os atuais runologistas estão mais propensos a pensar em uma influência grega, latina e do norte da Itália (etrusca) na formação de um sistema de registro gráfico, originalmente utilizado para comunicação, registro e criação de signos ideográficos (Marez, 2007, pp. 25-27).

Outra tendência muito comum nos escritores contemporâneos sobre runas é utilizar algum conceito advindo do simbolismo e da teoria psico-analítica de Jung para referendar algum aspecto sobrenatural ou místico delas: “As runas representam arquétipos atemporais e sutis, que servem como portais mágicos de percepção sutil e expansão da consciência humana” (Ragnarök: o crepúsculo dos deuses, 2011, Mirella Faur, p. 73). “Ao lançador de runas (...) suscetível de despertar os poderes latentes de percepção sensorial dos símbolos arquetipais, inscritos no inconsciente coletivo” (A mitologia dos povos germânicos, Maria Lucília F. Meleiro, 1994, p. 71). Em um artigo publicado na revista Rever, realizamos uma crítica sobre as teorias de base fenomenológicas aplicadas ao mundo nórdico, na qual o inconsciente coletivo e arquétipos se inserem: de forma resumida, elas não tem nenhuma base científica de demonstração, são universalistas e essencialistas, desprovidas de contexto histórico e social (Langer, 2018, p. 238-240).






Imagem 2: Pintura de Carl Emil Doepler, o jovem, baseado no relato de Tácito. Ilustração inserida na obra Walhall: Die Götterwelt der Germanen, de Wilhelm Ranisch, 1905. O pintor modificou o relato contido na Germânia e introduziu uma criança e uma mulher, tornando a cena muito mais familiar e tradicional (dentro dos moldes de uma sociedade alemã deste período, a mulher é totalmente passiva e submissa ao comando e decisões masculinas). Assim como os religiosos e místicos, os artistas ressignificam o passado histórico, adequando os conteúdos antigos aos propósitos do presente. Fonte da imagem. 



       2. As runas foram utilizadas como oráculos

Sem dúvida o aspecto mais popular das runas nos dias de hoje: o oracular. E também o mais desprovido de historicidade. Não há absolutamente nenhuma evidência histórica ou arqueológica de que runas foram utilizadas como instrumento de adivinhação ou oráculo na Era Viking. Para referendar este tipo de uso, geralmente os praticantes da runomancia citam o famoso trecho da Germânia de Tácito (98 d.C.), obviamente bem anterior ao período citado: “(...) cortam uma vergôntea retirada de uma árvore frutífera em pequenos ramos e estes, diferenciados por certos caracteres, eles espalham a esmo e fortuitamente sobre um tecido branco (..) apanha um a um dos pequenos ramos por três vezes. Feito isso, ele os interpreta segundo o sinal gravado neles anteriormente” (Andrade, 2011, p. 19). Segundo alguns especialistas, esta descrição de Tácito aplicada aos oráculos rúnicos é problemática, porque antecede a existência histórica do sistema de escrita germânico em pelo menos dois séculos, tornando muito duvidoso de que fossem runas os ditos sinais (caracteres) utilizados no oráculo (Davis, 2012, p. 2-3). O uso contemporâneo dos sistemas divinatórios rúnicos teve popularidade a partir da publicação do livro de Ralph Blum em 1987 (The Book of Runes), apesar dele nunca ter afirmado qualquer historicidade sobre seus métodos. Mas a partir deste livro, toda uma geração de pessoas vem utilizando métodos divinatórios sem qualquer tipo de questionamento sobre a antiguidade deste sistema (mesmo entre grupos neopagãos). Uma evidência contundente da origem moderna do oráculo rúnico é a runa branca (25ª. runa: denominada de Wyrd ou runa de Odin) introduzida por Blum: “is the final nail in the coffin to any ´traditionalist´” (Davis, 2012, p. 4). A variação do tipo de sistema rúnico utilizado também nunca foi explicada: por que manter alguns alfabetos e caracteres e eliminar outros? Isso não quer dizer que as pessoas não podem utilizar e acreditar nos sistemas divinatórios – isso faz parte da crença e da liberdade dos indivíduos. Mas quem pensa estar utilizando um sistema antigo dos povos germano-escandinavos está simplesmente equivocado. Esse tipo de conduta por parte dos ocultistas em estabelecer uma suposta antiguidade para suas práticas é muito recorrente, com o intuito de conseguir maior credibilidade e aceitação em sua comunidade ou para um público maior (Davis, 2012, p. 4, 5).

Os métodos de leitura (ou tiragem) das runas são também especulativos, produtos da imaginação ou então, retirados de outras fontes não relacionadas com a Antiguidade ou Medievo. Um dos meios mais utilizados é a aproximação com o Tarot, sistema de cartas originado de várias partes da Europa e produzida como oráculo durante o Setecentos, sem relação direta com as runas, entretanto para os adeptos da runomancia: “Ligada a noções de segredo e de mistério, a runa pode, portanto, comparar-se ao arcano do tarot (...) É preciso também lembrar que o sentido de uma runa é diferente quando estiver invertida” (O futuro pelas runas, Liliane Decker, 1997, p. 17, 115).  Esta última frase refere-se ao método do Tarot de analisar o simbolismo da carta pela sua posição. Outra aproximação com a tradição do tarot é a posse totalmente individual do objeto: “Essas runas agora são pessoais e não devem ser usadas, sob qualquer pretexto, por outra pessoa que não seja você” (Runas, Catherine Duane e Orla Duane, 1997, p. 19). Vários métodos de leitura são definidos por Faur: círculo tríplice representando as nornas; entrelaçamento de triângulos (valknut); nove mundos da Yggdrasil (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, pp. 311-314), ou seja, métodos desenvolvidos a partir da mitologia nórdica, também sem nenhuma base histórica. A mesma autora menciona também o método da “cruz rúnica” (Ibidem, p. 319), que nada mais é do que uma adaptação do tradicional método da “cruz celta” usada no tarot (O tarô mitológico, Juliet Sharman-Burke e Liz Greene, 1991, p. 228). Alguns escritores pagãos questionam o uso oracular das runas e sua associação com o Tarot e defendem estas como sendo um sistema divinatório, onde se realizaria perguntas ao divino e ele lhe responderia. Entretanto, acaba sendo do mesmo modo um método de adivinhar o futuro pelas runas, onde se invocam entidades e retiram-se algumas runas de um invólucro, respondendo a uma pergunta: “Qual o destino do nosso país, Óðinn, o senhor das runar?” (Runas e a espiritualidade nórdica, Programa Enigmas, 11/12/2018). Assim, esta alternativa não possui qualquer tipo de historicidade, do mesmo modo que as aludidas anteriormente.

As interpretações das runas são variáveis. Alguns apontam o Poema Rúnico anglo-saxão para compreensão do significado material e espiritual das runas (Runas, Catherine Duane e Orla Duane, 1997, p. 22). Em sua tradução acadêmica deste poema referido (além dos poemas rúnicos islandês, norueguês e Abecedarium nordmannicum), Elton Medeiros afirma que as interpretações modernas dos significados das letras rúnicas apresentam resquícios do romantismo oitocentista e dos impulsos esotéricos dos anos 1940 a 1970, necessitando de muito senso crítico e cautela ao se lidar com o tema (Medeiros, 2015, p. 13). Outra grande influência interpretativa nas obras tanto de neopagãos quanto escritores esotéricos são as publicações do norte-americano Stephen Flowers (pseudônimos: Edred Thorsson e Darban-i-Den). Flowers obteve doutorado em línguas germânicas em 1984 com o estudo Runes and Magic, muito criticado pelos acadêmicos (classificado como especulativo por MacLeod & Mees, 2006, p. 2). Faur cita nove obras de Edred Thorsson ao longo de seu livro Mistérios nórdicos, enquanto Paxson cita três livros, além do endereço e informações da Rune Gild, escola esotérico-pagã de Thorsson (Asatrú: um guia essencial para o paganismo nórdico, Diane Paxson, 2009, p. 200, 203). A Rune Gild (fundada em 1980) é tanto classificada como uma escola esotérica quanto paganista e tradicionalista radical. Ela foi originada pela herança de ímpetos românticos sobre o paganismo vigentes no final do século XIX (fascinação pela natureza e ideias de nação e raça), por uma reação esotérica de René Guénon questionando a modernidade, como também por ideias do satanismo da Igreja de Satã de Anton LaVey e o Templo de Set (Flowers fez parte de ambas). Assim, como em outras facetas do esoterismo, a Rune Gild se baseia em uma mistura de diferentes correntes (Granholm, 2010, pp. 95-115).

A interpretação oracular das runas ainda prepondera nos meios mais recentes. Mesmo livros supostamente com conteúdo mais “histórico” sobre o tema, são acompanhados com runas de brinde. Eventos místico-esotéricos como a I Conferência Brasileira de Runas (Hotel Estância Pilar, Ribeirão Pires, SP, 2017), além de trazer vários aspectos oraculares, também apresentou outras tendências mescladas ao interesse por runas, como o stadhgaldr (que comentaremos no ponto 7), runas e aromaterapia, runas e consciência, runas e xamanismo, além de aspectos de história da runologia (Johanes Bureus e as Nobres Runas). A utilização de aspectos históricos ou titulações acadêmicas é uma tendência nos meios esotéricos atuais. No livro Mistérios nórdicos (Mirella Faur, 2007) a identificação da autora, logo abaixo de uma foto ao lado de uma runestone europeia (orelha direita do livro), foi caracterizada como “com extensa formação científica e esotérica”. Vários integrantes do evento acima mencionado, identificam-se como graduados ou pós-graduados em História, ao mesmo tempo em que se proclamam como bruxas, wiccanas, terapeutas holistas, runemal, runólogo e/ou asatru: são elementos para legitimação de ideias, aceitação mais ampla da sociedade (e talvez mesmo na academia) ou validação de um legado supostamente baseado no passado histórico, mas que na realidade se tratam de tradições inventadas.

Um recente estudo inseriu a atual tradição rúnica oracular não em um passado histórico antigo ou medieval, mas em um tipo de revival gótico atrelado ao romantismo (final do Setecentos aos irmãos Grimm e Wagner até as ressignificações das runas pelos nazistas e por Tolkien). O discurso de antiguidade entre seus praticantes deriva de ideologias presentes nas modernas apropriações da cultura popular (do qual se inserem os neopagãos e derivados culturais da Nova Era). Estudando especificamente o período formativo dos guias oraculares rúnicos em inglês – anos 1980 e 1990 – até autores mais recentes, a pesquisa demonstra a extrema variabilidade de métodos e interpretações existentes em língua inglesa sobre o tema. Estes guias pretendem ajudar o leitor a operacionalizar forças ocultas e sobrenaturais que as ficções góticas representavam de forma literária, não sendo uma mera curiosidade histórica, mas elementos constantes na cultura popular (Mountfort, 2015, pp. 16-32).

Para concluir esta seção, retiramos uma frase de um site neopagão: “But ‘Modern’ does not have to mean ‘Fake’!” (Cyrus the Strong, The problem with most" Runic Divination" books and "experts", Real Runic Magic, 2014-2016). O objetivo deste texto não é desmerecer ou desqualificar qualquer forma de crença (cujos resultados podem ser reais ou imaginários, a critério dos crédulos). Vários neopagãos e esoteristas tem consciência de que certas tradições foram inventadas no mundo contemporâneo ou são produtos de seus próprios referenciais individuais (vide o site acima citado), o que não invalida as práticas em si (de um ponto de vista da liberdade religiosa). A função do historiador não é julgar ou discriminar, mas auxiliar na compreensão social do presente e do passado.






Imagem 3: Odin e as runas, pintura anônima contemporânea, fonte da imagem. O auto sacrifício de Odin segundo o Hávamál, mas inserindo as runas dentro de uma típica visão oracular moderna. A indumentária e os detalhes corporais lembram a figura de Cristo na arte cristã. A arte refletindo o cruzamento entre os valores atuais e os do passado.



3      3. As runas das Sagas e Eddas provém da Era Viking

Uma grande parte do conhecimento esotérico, místico e neopagão sobre runas provém de leituras sobre as sagas islandesas e os poemas éddicos – dentro do referencial romântico de que todas as informações da literatura medieval são transposições objetivas advindas da Era Viking. Muitas pesquisas epigráficas mais recentemente, estudando as inscrições rúnicas anteriores à cristianização e comparando-as com o material literário, demonstram um panorama diferente: as runas destes textos são produto da percepção social e da experiência de sua própria época. Elas possuem um eco da tradição rúnica antiga, evidentemente. Temas (como referências a elfos) e métricas existentes nas inscrições também foram preservadas pela literatura. Um bastão de runas de Trondheim (A 142) é muito semelhante ao discurso de Egill Skallagrímsson contra os escultores incompetentes de runas. O problema que esse tipo de correspondência é dificilmente encontrado entre as fontes epigráficas e literárias, tornando o bastão de Trondheim uma peça única. Um caso famoso são as 36 runas inseridas na Bósa saga ok Herrauðs (Saga de Bosi e Herraud, c. 1300):


Imagem 4: MacLeod, 2000, p. 254.



É um exemplo de runas mágicas que não encontram suporte nas inscrições rúnicas “reais”, pois são monogramas que foram adicionados para ilustrar a narrativa presente no texto e demonstram que grande parte do conhecimento rúnico antigo já havia se perdido. Possivelmente a narrativa original da Saga de Bosi não continha runas ligadas (bind-runes) ou galdrastafir (MacLeod, 2000, pp. 253-255). Outros episódios rúnicos de sagas islandesas (como na Saga de Egil) são artificiais e adaptados de motivos literários estrangeiros e descrevem situações romantizadas de feitiçaria rúnica. Nem nas fontes epigráficas e nem nas sagas islandesas ocorria qualquer alusão a manipulação mágica de runas ligadas para fins ocultos (MacLeod, 2000, pp. 252-263).

Quanto aos poemas éddicos, o processo é o mesmo. De maneira geral, os poetas cristãos e escribas que estão por trás do processo de transmissão e registro da poesia éddica, não conheciam a escrita rúnica e nem a aliteração, sendo muitas vezes fantasias literárias. Mas o material não é todo igual: algumas passagens refletem mais a antiga prática rúnica do que outras. A famosa descrição de Sigrdrifa comentando sobre runas não é toda fabulosa, mas tem muito mais paralelos com o uso de runas na época da narrativa. As runas de Odin no Hávamál tem alguma relação com a métrica do canto rúnico de Ribe e a tradição sobre este deus. Apesar de grande quantidade de fontes literárias em inglês e nórdico antigo mencionarem runas escritas em espadas para fins mágicos, existem poucas espadas medievais com runas gravadas. No geral, os poemas éddicos informam o referencial contemporâneo (em relação ao texto literário) sobre o material rúnico (MacLeod & Mees, 2006, pp. 233-253).






Imagem 5: Inscrição de Maughold Stone (MAUGH/2), Ilha de Man, séc. XII d. C. Na parte superior, inscrições rúnicas e na parte inferior, inscrição oghâmica. Fonte da imagem. 



4      4. O ogham é uma escrita rúnica



Desde o Setecentos existe uma confusão linguística, cultural e mitológica entre celtas, germanos e nórdicos. Uma das que ainda persiste é a de que a escrita ogâmica das populações das ilhas britânicas seria uma forma de alfabeto rúnico: “ao lado de sua origem germânica, acredita-se que as runas estejam ligadas à escrita Ogham (...) Como no Futhark rúnico, as runas do escrito de Ogham possuem qualidades mágicas e misteriosas e eram usadas em escritos de feitiços e amuletos” (Runas, Catherine Duane e Orla Duane, 1997, pp. 50-51); “Ainda que os druidas irlandeses tivessem seu próprio alfabeto – o ogham – eles também utilizavam os sistemas rúnicos, em especial o dinamarquês, o sueco e as runas marcadas com pontos” (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, p. 23); “Las Runas Celtas y su Significado” (Símbolos Celtas). Apesar de alguns estudos apontarem a influência das runas e da escrita grega na formação inicial do Ogham, a maioria dos epigrafistas consideram o latim o modelo principal, resultado do contato das populações britânicas com monumentos romanos (Santos, 2016, pp. 35-50). As inscrições oghâmicas não foram utilizadas para magia ou adivinhação (como quer a dupla Duane) ou também, os druidas não utilizaram runas germânicas (como quer Mirella Faur). Os nórdicos e a escrita rúnica penetraram nas ilhas britânicas após o total desaparecimentos dos antigos druidas. Existem algumas poucas inscrições rúnicas que coexistem com a escrita oghâmica no mesmo monumento, mas possivelmente foram realizadas em épocas diferentes e por autores diferentes, todas posteriores ao século VIII d. C. (vide a imagem 5, inscrição de Maughold Stone, realizada por um sacerdote cristão, The Ogham Stones of the Isleof Man). Ou então inscrições rúnicas e oghâmicas esculpidas pela mesma pessoa, como na inscrição de Killaloe, Irlanda, séc. XI d.C. (Irish Archaeology).
Ainda sobre a escrita oghâmica, persistem equívocos: “(...) o Ogham não é um alfabeto de uso prático; não era usado para escrever contos ou notas. Sua utilização, ao que tudo indica, restringia-se às práticas rituais e aos oráculos” (O livro da Mitologia Celta, Claudio Crow Quintino, 2002, p. 88). A escrita oghâmica durante o irlandês arcaico (até o século VI d.C.) consistia majoritariamente em registros onomásticos; após o período de cristianização, ela torna-se eminentemente funerária. Na literatura irlandesa medieval, ao contrário, ela “surge nos textos lendários, é sempre com fins mágicos (...) Sob outra forma, a escrita está ausente (...) a escrita é uma aplicação prática da magia e os textos dependem do deus Ogmio” (Roux & Guyonvarc´h, 1999, p. 131). Aqui pode ter ocorrido uma confusão entre os registros epigráficos antigos e as representações literárias medievais, o que pode ter contribuído para a criação de oghamos oraculares mais recentemente (Ogham: o oráculo dos Druidas, Osvaldo R. Feres, 2018), e de modo muito semelhante aos rúnicos, não tem nenhuma base histórica.






Imagem 6: Mosaico com Sol Negro, 1934, castelo de Wewelsburg, Büren, Alemanha,








5      5. O Sol Negro é de origem nórdica antiga

Há vários anos recebemos continuamente a indagação, de várias partes do Brasil, se o Schwarze Sonne (Sol Negro) provém do medievo ou é uma invenção moderna. A resposta é sim para esta última, trata-se de um símbolo criado no século XX: um círculo solar formado por 12 runas Sig, dispostas radialmente, criado em 1934 pelos membros da SS de Heinrich Himmler. O local era uma escola para os membros da organização estudarem a herança germânica e a religião nórdica antiga e também local para celebrações e cultos esotérico-religiosos. Himmler considerava o castelo o centro do mundo germânico (Goodrick-Clarke, 2004, p. 190-191).






Imagem 7: tatuagem rúnica, foto anônima da internet. Fonte da imagem




6      6. Tatuagens rúnicas

Existem poucas evidências de que os nórdicos da Era Viking utilizaram tatuagens ou qualquer tipo de pinturas ou marcações corporais. O cinema e a televisão popularizaram a ideia de tatuagens entre guerreiros nórdicos. Um estudo relacionou a presença de tatuagens rúnicas na atualidade como um reflexo de orientações, espiritualidade e tendências provindas da Nova Era e no Neopaganismo. Especialmente as relações com Odin são destacadas nas tatuagens, reforçando a associação das runas como mágicas. Sentimentos nacionalistas e/ou extremismos políticos também foram detectados. No geral, as tatuagens rúnicas são formas de expressões de identidade social e de pertencimento a determinados grupos ou comunidades bem amplas de aficionados e interessados no mundo nórdico medieval, muito mais do que reconstituições históricas (Bennett & Wilkins, 2019, pp. 1-14).






Imagem 8: quadro das posturas meditativas do sistema Stadhgaldr (yoga rúnica). Fonte daimagem 



7      7. Yoga rúnica

Mais amplamente difundida no Brasil há poucos anos, o sistema Stadhgaldr foi criado na Alemanha da década de 1930. Em 1920 Friedrich Marby desenvolveu um sistema chamado de Runengymnastik, que foi aperfeiçoado mais tarde para a denominação de Runenyoga e depois Stadhgaldr. A suposta base histórica para esses tipos de posturas corporais no mundo nórdico, seriam provenientes dos desenhos contidos no chifre de Gallehus “em que encontramos relevos em forma de runas e figuras antropomórficas em posições semelhantes às runas” (As moradas secretas de Odin, Valquíria Valhalladur, 2007, p. 19). O seu uso na atualidade é vinculado à espiritualidade e crenças mágicas: “(...) divulgada pelas obras de Edred Thorsson (...) é um sistema de magia que se utiliza de posturas, gestos e sons para projetar a energia das runas e causar efeitos mágicos sobre o vitki (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, p. 399).




Imagem 9: Cópia dos chifres de Gallehus encontrados na Dinamarca. Museu Nacional da Dinamarca, Copenhague. Fonte da imagem



Os chifres de Gallehus são dois objetos encontrados na Dinamarca no Setecentos e Oitocentos, do qual só restam cópias na atualidade (foram criminosamente fundidos em 1802). Os especialistas nunca chegaram a um consenso sobre a interpretação dos desenhos, que são figuras humanas, antropomórficas, animais e vários símbolos geométricos não figurativos. Alguns desenhos tem correspondência com representações gráficas encontrada na Escandinávia da Era Viking (como uma mulher portando corno de bebidas) ou Idade do Ferro (um guerreiro chifrudo semelhante ao caldeirão de Gundestrup, constante do acervo do Museu Nacional da Dinamarca), outras são únicas (serpentes sendo atacadas por outras serpentes?). O contexto ritualístico dos objetos é considerado quase certo, mas outras interpretações são puramente especulativas (as figurações formam um alfabeto; interpretações arqueoastronômicas) ou parcialmente corretas (interpretações baseadas na Mitologia Nórdica) (Nielsen, 2016, pp. 209-213). Não existe absolutamente nenhuma evidência de que as figuras humanas presentes nos dois caldeirões de Gallehus remetam a posições corporais realizadas por humanos na Antiguidade escandinava, seja imitando as runas ou para realização de qualquer tipo de magia, prática religiosa ou misticismo.

Nota: 

* Este ensaio faz parte da pesquisa Simbolismo religioso nórdico em monumentos da Era Viking e na Europa Medieval (Lattes/PPGCR-UFPB).



Referências bibliográficas:


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