Nove
erros sobre a Religião Nórdica da Era Viking
Prof.
Dr.Johnni Langer (UFPB/NEVE)
Johnnilanger@yahoo.com.br
Um
dos temas mais populares sobre o mundo nórdico medieval é a respeito dos ritos
e crenças pré-cristãs, mas infelizmente nos dias de hoje, também constitui um
dos mais repletos de fantasias, anacronismos e interpretações equivocadas. Em
parte isso se deve à intensa proliferação de matérias jornalísticas, esotéricas
e mídias como o cinema e televisão, além da internet, que facilitam a propagação
de estereótipos ou informações errôneas. Nossa intenção neste pequeno ensaio é
desconstruir alguns destes equívocos e apontar alguns rumos das mais recentes
investigações acadêmicas na área da religião nórdica.
Fotografia de culto do Asatru na Islândia.
1. O
Asatru é a religião dos nórdicos antigos
Uma
idéia recentemente atualizada com a série do Netflix, Ragnarok. O Asatru é o
nome moderno adotado de uma das variadas manifestações do neopaganismo, não
sendo uma reconstituição fidedigna da religião nórdica que se praticava antes
do cristianismo. Em primeiro lugar, não existia nem um termo na língua nórdica
antiga para religião (provocando muitos debates); em segundo, utilizamos o
termo religião em singular em um ponto de vista interpretativo usual, porém,
termos que ter consciência de que não existia uniformidade e coesão nas crenças
e práticas da Era Viking, havendo inúmeras variações a nível territorial,
regional e social. Não existiam qualquer tipo de forma institucional, nem livro
sagrado, corpus sacerdotal regular ou profissional. Não sobreviveram ritos,
orações ou práticas detalhadas. A maior parte do que os neopagãos praticam hoje
em dia, em parte se deve a interpretações pessoais, em parte a imaginação.
Muitos acabam seguindo o modelo de outras religiões (muitas vezes, de forma
inconsciente), como as várias formas do monoteísmo abraâmico. Isso é claro não
invalida a legitimidade de suas crenças (como de qualquer outra manifestação
religiosa atual), mas de um ponto de vista histórico é necessário diferenciar
os contextos.
Estátua de Loki, Herman Freund, 1822. Ny Carslberg Glyptotek, Copenhague. Foto do autor.
2. Loki
e os gigantes eram cultuados na Era Viking
Mito
não é a mesma coisa que rito. Um personagem constar nas narrativas míticas não
significa que ele tinha algum tipo de importância ritual ou na prática
cotidiana. Segundo as pesquisas toponímicas de Stefan Brink, entidades como
Loki, Heimdall, Bragi e Idunna não ocorrem em registro toponímicos, sendo uma
evidência de ausência de cultos. Mas ao contrário, deuses poucos mencionados
nas fontes literárias, como Ullr, possuem fartos registros toponímicos
(mostrando a dicotomia entre mito e rito, além de outras questões envolvendo as
fontes escritas, como referenciais sociais).
Cena de ritual, Série Vikings.
3. Os
sacerdotes nórdicos eram sinistros e macabros
Em
primeiro lugar, não existem evidências de sacerdotes profissionais e regulares
no mundo nórdico, levando os especialistas a preferirem o termo “líderes de
culto”. O cinema e a televisão popularizaram a visão de sacerdotes múltiplos,
institucionalizados e muitas vezes até com hierarquia, sendo caracterizados
como carecas, forte maquiagem e comportamento sinistro (a exemplo da série
Vikings). Outras produções cinematográficas reforçam a visão cristocêntrica de
sacerdotes nórdicos, tornando as crenças pré-cristãs como algo macabro e mesmo
satânico.
Reconstituição do templo de Uppåkra, suécia. foto do autor.
4. Não
existiam templos nórdicos pré-cristãos
Um
motivo de intenso debate na academia décadas atrás, sendo que a maioria dos
pesquisadores acreditavam que as práticas religiosas da Era Viking seguiam um
modelo aos moldes dos germanos antigos: foram praticadas ao ar livre, na
paisagem. Mas recentes descobertas (como o sítio de Uppåkra na Suécia) vem
demonstrando que existiam edificações fechadas construídas especialmente para
práticas cultuais.
Thor, ilustração de Lorenz Frølich, 1895
Thor, estátua de Carl Johan Bonnesen, Cervejaria Carlsberg, Copenhague. Foto do autor (a suástica localiza-se nas rodas).
5. A
suástica é um símbolo do deus Thor
Uma
ideia ainda muito consolidada na academia. Desde o século XIX, com a
popularização artística deste deus nórdico, seus estudos e análises se
intensificaram, do mesmo jeito que os estudos do símbolo euroasiático mais
pesquisado durante o Oitocentos: a suástica. Na área nórdica, não existe nenhuma
fonte literária medieval sobre este símbolo, levando os pesquisadores a
procurarem materiais de outra época, como os grimórios islandeses do
Renascimento, onde a suástica é denominada de “martelo de Thor”. Isso levou a
alguns acadêmicos da primeira metade do século XIX a acreditar que a suástica
tinha a mesma conotação durante a Era Viking, a exemplo de Finnur Magnússon no
livro Runamo og runerne (Kjobenhavn: Trykt i Bianco Lunos Bogtrykkeri, 1841,
p. 161). Na década seguinte, os pesquisadores de bracteatas supostamente
identificaram o deus Thor associado com suásticas, mas na realidade, eram
representações do deus Odin (Bente Magnus, Men, gods and masks in Nordic Iron
Age Art, Köln: Buchhandlung Walther König, 2005, p. 54). Os artistas passam a
conhecer estas pesquisas e começam a produzir obras mesclando a deidade com o
símbolo, a exemplo da pintura Tors strid med jättarna de Mårten Eskil Winge (1872),
várias ilustrações de Lorenz Frølich (1895) e a escultura de Carl Johan
Bonnesen para a cervejaria Carlsberg, realizada em 1901 (ainda pode ser
vislumbrada no alto deste edifício em Copenhague). No século XX diversos
acadêmicos continuaram essa associação, a exemplo de Hilda Davidson.
Recentemente
fizemos um levantamento e análise iconográfica de vários símbolos nórdicos,
presente no final da Antiguidade até a Idade Média Central: bracteatas, pedras
rúnicas, tapeçarias, monumentos anglo-daneses, igrejas, cruzes e concluímos que
não existem evidências objetivas desta associação. Todas as manifestações
visuais da suástica no contexto nórdico até o momento da cristianização da Escandinávia estavam vinculadas unicamente ao deus Odin. Para
terminar, vários sites brasileiros estão afirmando que o termo nórdico para
suástica é fylfot, mas este é anglo-saxão. O termo em nórdico antigo não é
conhecido.
Fotografia de tatuagem, internet.
6. O
Ægishjálmur é viking
Um
dos mais populares e conhecidos símbolos nórdicos na atualidade é o Ægishjálmur,
muito utilizado para tatuagens entre os jovens, que acreditam que ele seja um
símbolo viking. Já escrevemos outro ensaio desmistificando essa idéia (pois ele
é de origem tardo-medieval) e outra, a de que ele teria algum vínculo com
símbolos das religiões afro-brasileiras: Símbolos vikings e umbandistas: cópia ou coincidência?
Mandala astrológica rúnica, internet.
7. Os
vikings conheciam a astrologia, o zodíaco e os signos
Já
demonstrei em um estudo anterior que não existem evidências históricas de que
os nórdicos da Era Viking conheciam qualquer tipo de concepção astrológica ou o
conceito da eclíptica (O zodíaco viking: reflexões sobre etnoastronomia e mitologia escandinava).
Dezenas
de sites atualmente proliferam coisas como astrologia rúnica, o que é um grande
engodo. O péssimo livro esotérico populista de Mirella Faur (Mistérios nórdicos) associa
as runas com astros que não eram conhecidos antes do século XIX, como os
asteroides Ceres e Vesta e os planetas Urano, Netuno e Plutão (p. 143, 151,
164).
Detalhe da pedra gotlandesa de Stenkyrka Lillbjärs III, internet.
8. O
valknut é uma fraude
Há alguns anos um
ensaio na internet brasileira causou certa comoção, ao questionar a etimologia
e o significado de um dos símbolos nórdicos mais populares, o valknut (O “Valknútr” não existe). A inexistência de um nome original não invalida o termo usado (como
suástica, que é de origem hindu) como sendo inútil, ele apenas é uma
terminologia limitada. A matéria tem o mérito de questionar o uso geral do
significado simbólico – assim como outros símbolos (a suástica, o triskelion, a
espiral) só podemos realizar algum tipo de interpretação em alguns contextos
iconográficos (como as pedras gotlandesas). Um valknut em um anel, em um pente,
em um vestido ou em outro objeto móvel, é um ornamento ou um símbolo? Não
sabemos. Qual o seu significado nestes objetos? Não sabemos. Porque na
narrativa de Hrungnir (a única fonte medieval a mencionar nominalmente algum
tipo de símbolo gráfico), Hrungnis hjarta, aparece relacionado
a Thor e não a Odin? Isso é polêmico. Eu acredito que seja devido a variações
nas crenças. Assim como a imagem celeste de uma carruagem (identificada a
constelação da Ursa Maior) foi tanto vinculada a Thor quanto a Odin na Islândia
medieval, creio que com o valknut ocorreu o mesmo (mas não com a suástica, como
vimos anteriormente).
A
matéria mencionada alude que o valknute ornamental (também conhecido como sankthanskors, o nó quadrado norueguês ⌘)
não tem qualquer tipo de vínculo com a morte, mas na tapeçaria de Oseberg (em
que funeral, morte, sacrifícios humanos e Yggdrasill são representadas), este
símbolo também aparece, ao lado de suásticas. Não podemos ser categóricos e
afirmar que TODOS os objetos e monumentos em que o valknut foi representado tem
algum significado de morte, mas em diversas pedras gotlandesas (e não apenas em
uma, a de Hammars I, como a matéria alude que seria uma “exceção”) esse
significado é bem óbvio: Stenkyrka Lillbjärs I, Stenkyrka Lillbjärs III, Lärbro
Tängelgårda I, Buttle Änge V, Stenkyrka Smiss I.
O
estudo dos simbolismos religiosos na Era Viking ainda é muito escasso na academia, ainda depende
de muitas pesquisas. A conexão entre vários símbolos é presente em diversos
monumentos, como a suástica, valknut, sankthanskors, espiral, triskelion e o
triplo corno – muitas vezes aparecem em conjunto, todos remetendo a vínculos
com Odin. O mais bem documentado e brilhante estudo sobre o valknut até o
momento (The Valknut: Heart of the Slain?)
conclui que em alguns monumentos (como os aludidos acima) o dito símbolo teve
significados relacionados com a morte, referencial com o qual concordamos.
Cena de ioga rúnica, youtube.
9
– Stadhagaldr: A ioga rúnica
Uma
das mais recentes tendências em se aplicar um referencial esotérico ao mundo
nórdico pré-cristão é o Stadhagaldr: uma série de posturas baseadas nas runas,
muito popularizado no Brasil com a obra As moradas secretas de Odin (a exemplo das obras de Mirella Faur, não recomendamos). Não existe
nenhum tipo de evidência histórica sobre esse tema, uma variante contemporânea
da tendência em fundir tradições totalmente diferentes em uma nova prática
(crenças asiáticas com ocidentais).
Bibliografia
BRINK, Stefan. How uniform was the Old
Norse Religion? In: QUINN, Judy et al
(ed.). Learning and understanding in the Old Norse World. Brepols, 2017, p.
105-136.
LANGER, Johnni. Religião. In: LANGER,
Johnni (Ed.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra,
2017.
LANGER, Johnni. A Religião Nórdica Antiga: conceitos e métodos de pesquisa (The Old Norse Religion: concepts and methods of research), Rever: Revista de Estudos da Religião, PUC-SP, 16(2), 2016.
LANGER, Johnni. A Religião Nórdica Antiga: conceitos e métodos de pesquisa (The Old Norse Religion: concepts and methods of research), Rever: Revista de Estudos da Religião, PUC-SP, 16(2), 2016.
LANGER, Johnni. Símbolos religiosos dos vikings: guia iconográfico. História, imagem e narrativas 11, 2000.
LANGER, Johnni. Runas e magia. Brathair 8(1), 2008.
SUNDQVIST, Olof. Cult leaders, rulers and
religion. In: BRINK, Stefan (ed.). The viking world. New York: Routledge, 2012,
p. 223-226.
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