O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Nove erros sobre a Religião Nórdica da Era Viking



Nove erros sobre a Religião Nórdica da Era Viking



Prof. Dr.Johnni Langer (UFPB/NEVE)

Johnnilanger@yahoo.com.br


 Um dos temas mais populares sobre o mundo nórdico medieval é a respeito dos ritos e crenças pré-cristãs, mas infelizmente nos dias de hoje, também constitui um dos mais repletos de fantasias, anacronismos e interpretações equivocadas. Em parte isso se deve à intensa proliferação de matérias jornalísticas, esotéricas e mídias como o cinema e televisão, além da internet, que facilitam a propagação de estereótipos ou informações errôneas. Nossa intenção neste pequeno ensaio é desconstruir alguns destes equívocos e apontar alguns rumos das mais recentes investigações acadêmicas na área da religião nórdica.



Fotografia de culto do Asatru na Islândia.


1.      O Asatru é a religião dos nórdicos antigos

Uma idéia recentemente atualizada com a série do Netflix, Ragnarok. O Asatru é o nome moderno adotado de uma das variadas manifestações do neopaganismo, não sendo uma reconstituição fidedigna da religião nórdica que se praticava antes do cristianismo. Em primeiro lugar, não existia nem um termo na língua nórdica antiga para religião (provocando muitos debates); em segundo, utilizamos o termo religião em singular em um ponto de vista interpretativo usual, porém, termos que ter consciência de que não existia uniformidade e coesão nas crenças e práticas da Era Viking, havendo inúmeras variações a nível territorial, regional e social. Não existiam qualquer tipo de forma institucional, nem livro sagrado, corpus sacerdotal regular ou profissional. Não sobreviveram ritos, orações ou práticas detalhadas. A maior parte do que os neopagãos praticam hoje em dia, em parte se deve a interpretações pessoais, em parte a imaginação. Muitos acabam seguindo o modelo de outras religiões (muitas vezes, de forma inconsciente), como as várias formas do monoteísmo abraâmico. Isso é claro não invalida a legitimidade de suas crenças (como de qualquer outra manifestação religiosa atual), mas de um ponto de vista histórico é necessário diferenciar os contextos.


Estátua de Loki, Herman Freund, 1822. Ny Carslberg Glyptotek, Copenhague. Foto do autor.


2.      Loki e os gigantes eram cultuados na Era Viking

Mito não é a mesma coisa que rito. Um personagem constar nas narrativas míticas não significa que ele tinha algum tipo de importância ritual ou na prática cotidiana. Segundo as pesquisas toponímicas de Stefan Brink, entidades como Loki, Heimdall, Bragi e Idunna não ocorrem em registro toponímicos, sendo uma evidência de ausência de cultos. Mas ao contrário, deuses poucos mencionados nas fontes literárias, como Ullr, possuem fartos registros toponímicos (mostrando a dicotomia entre mito e rito, além de outras questões envolvendo as fontes escritas, como referenciais sociais).


Cena de ritual, Série Vikings.


3.      Os sacerdotes nórdicos eram sinistros e macabros

Em primeiro lugar, não existem evidências de sacerdotes profissionais e regulares no mundo nórdico, levando os especialistas a preferirem o termo “líderes de culto”. O cinema e a televisão popularizaram a visão de sacerdotes múltiplos, institucionalizados e muitas vezes até com hierarquia, sendo caracterizados como carecas, forte maquiagem e comportamento sinistro (a exemplo da série Vikings). Outras produções cinematográficas reforçam a visão cristocêntrica de sacerdotes nórdicos, tornando as crenças pré-cristãs como algo macabro e mesmo satânico.


Reconstituição do templo de Uppåkra, suécia. foto do autor.


4.      Não existiam templos nórdicos pré-cristãos

Um motivo de intenso debate na academia décadas atrás, sendo que a maioria dos pesquisadores acreditavam que as práticas religiosas da Era Viking seguiam um modelo aos moldes dos germanos antigos: foram praticadas ao ar livre, na paisagem. Mas recentes descobertas (como o sítio de Uppåkra na Suécia) vem demonstrando que existiam edificações fechadas construídas especialmente para práticas cultuais.


Thor, ilustração de Lorenz Frølich, 1895

Thor, estátua de Carl Johan Bonnesen, Cervejaria Carlsberg, Copenhague. Foto do autor (a suástica localiza-se nas rodas).



5.      A suástica é um símbolo do deus Thor

Uma ideia ainda muito consolidada na academia. Desde o século XIX, com a popularização artística deste deus nórdico, seus estudos e análises se intensificaram, do mesmo jeito que os estudos do símbolo euroasiático mais pesquisado durante o Oitocentos: a suástica. Na área nórdica, não existe nenhuma fonte literária medieval sobre este símbolo, levando os pesquisadores a procurarem materiais de outra época, como os grimórios islandeses do Renascimento, onde a suástica é denominada de “martelo de Thor”. Isso levou a alguns acadêmicos da primeira metade do século XIX a acreditar que a suástica tinha a mesma conotação durante a Era Viking, a exemplo de Finnur Magnússon no livro Runamo og runerne (Kjobenhavn: Trykt i Bianco Lunos Bogtrykkeri, 1841, p. 161). Na década seguinte, os pesquisadores de bracteatas supostamente identificaram o deus Thor associado com suásticas, mas na realidade, eram representações do deus Odin (Bente Magnus, Men, gods and masks in Nordic Iron Age Art, Köln: Buchhandlung Walther König, 2005, p. 54). Os artistas passam a conhecer estas pesquisas e começam a produzir obras mesclando a deidade com o símbolo, a exemplo da pintura Tors strid med jättarna de Mårten Eskil Winge (1872), várias ilustrações de Lorenz Frølich (1895) e a escultura de Carl Johan Bonnesen para a cervejaria Carlsberg, realizada em 1901 (ainda pode ser vislumbrada no alto deste edifício em Copenhague). No século XX diversos acadêmicos continuaram essa associação, a exemplo de Hilda Davidson.

Recentemente fizemos um levantamento e análise iconográfica de vários símbolos nórdicos, presente no final da Antiguidade até a Idade Média Central: bracteatas, pedras rúnicas, tapeçarias, monumentos anglo-daneses, igrejas, cruzes e concluímos que não existem evidências objetivas desta associação. Todas as manifestações visuais da suástica no contexto nórdico até o momento da cristianização da Escandinávia estavam vinculadas unicamente ao deus Odin. Para terminar, vários sites brasileiros estão afirmando que o termo nórdico para suástica é fylfot, mas este é anglo-saxão. O termo em nórdico antigo não é conhecido.


Fotografia de tatuagem, internet.


6.      O Ægishjálmur é viking

Um dos mais populares e conhecidos símbolos nórdicos na atualidade é o Ægishjálmur, muito utilizado para tatuagens entre os jovens, que acreditam que ele seja um símbolo viking. Já escrevemos outro ensaio desmistificando essa idéia (pois ele é de origem tardo-medieval) e outra, a de que ele teria algum vínculo com símbolos das religiões afro-brasileiras: Símbolos vikings e umbandistas: cópia ou coincidência? 


Mandala astrológica rúnica, internet.


7.      Os vikings conheciam a astrologia, o zodíaco e os signos

Já demonstrei em um estudo anterior que não existem evidências históricas de que os nórdicos da Era Viking conheciam qualquer tipo de concepção astrológica ou o conceito da eclíptica (O zodíaco viking: reflexões sobre etnoastronomia e mitologia escandinava).

 Dezenas de sites atualmente proliferam coisas como astrologia rúnica, o que é um grande engodo. O péssimo livro esotérico populista de Mirella Faur (Mistérios nórdicos) associa as runas com astros que não eram conhecidos antes do século XIX, como os asteroides Ceres e Vesta e os planetas Urano, Netuno e Plutão (p. 143, 151, 164).


Detalhe da pedra gotlandesa de Stenkyrka Lillbjärs III, internet.


8.      O valknut é uma fraude



Há alguns anos um ensaio na internet brasileira causou certa comoção, ao questionar a etimologia e o significado de um dos símbolos nórdicos mais populares, o valknut (O “Valknútr” não existe). A inexistência de um nome original não invalida o termo usado (como suástica, que é de origem hindu) como sendo inútil, ele apenas é uma terminologia limitada. A matéria tem o mérito de questionar o uso geral do significado simbólico – assim como outros símbolos (a suástica, o triskelion, a espiral) só podemos realizar algum tipo de interpretação em alguns contextos iconográficos (como as pedras gotlandesas). Um valknut em um anel, em um pente, em um vestido ou em outro objeto móvel, é um ornamento ou um símbolo? Não sabemos. Qual o seu significado nestes objetos? Não sabemos. Porque na narrativa de Hrungnir (a única fonte medieval a mencionar nominalmente algum tipo de símbolo gráfico), Hrungnis hjarta, aparece relacionado a Thor e não a Odin? Isso é polêmico. Eu acredito que seja devido a variações nas crenças. Assim como a imagem celeste de uma carruagem (identificada a constelação da Ursa Maior) foi tanto vinculada a Thor quanto a Odin na Islândia medieval, creio que com o valknut ocorreu o mesmo (mas não com a suástica, como vimos anteriormente).

A matéria mencionada alude que o valknute ornamental (também conhecido como sankthanskors, o nó quadrado norueguês ) não tem qualquer tipo de vínculo com a morte, mas na tapeçaria de Oseberg (em que funeral, morte, sacrifícios humanos e Yggdrasill são representadas), este símbolo também aparece, ao lado de suásticas. Não podemos ser categóricos e afirmar que TODOS os objetos e monumentos em que o valknut foi representado tem algum significado de morte, mas em diversas pedras gotlandesas (e não apenas em uma, a de Hammars I, como a matéria alude que seria uma “exceção”) esse significado é bem óbvio: Stenkyrka Lillbjärs I, Stenkyrka Lillbjärs III, Lärbro Tängelgårda I, Buttle Änge V, Stenkyrka Smiss I.

O estudo dos simbolismos religiosos na Era Viking ainda é muito escasso na academia, ainda depende de muitas pesquisas. A conexão entre vários símbolos é presente em diversos monumentos, como a suástica, valknut, sankthanskors, espiral, triskelion e o triplo corno – muitas vezes aparecem em conjunto, todos remetendo a vínculos com Odin. O mais bem documentado e brilhante estudo sobre o valknut até o momento (The Valknut: Heart of the Slain?) conclui que em alguns monumentos (como os aludidos acima) o dito símbolo teve significados relacionados com a morte, referencial com o qual concordamos.


Cena de ioga rúnica, youtube.


9 – Stadhagaldr: A ioga rúnica

Uma das mais recentes tendências em se aplicar um referencial esotérico ao mundo nórdico pré-cristão é o Stadhagaldr: uma série de posturas baseadas nas runas, muito popularizado no Brasil com a obra As moradas secretas de Odin (a exemplo das obras de Mirella Faur, não recomendamos). Não existe nenhum tipo de evidência histórica sobre esse tema, uma variante contemporânea da tendência em fundir tradições totalmente diferentes em uma nova prática (crenças asiáticas com ocidentais).



Bibliografia


BRINK, Stefan. How uniform was the Old Norse Religion?  In: QUINN, Judy et al (ed.). Learning and understanding in the Old Norse World. Brepols, 2017, p. 105-136.

LANGER, Johnni. Religião. In: LANGER, Johnni (Ed.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2017.

LANGER, Johnni. A Religião Nórdica Antiga: conceitos e métodos de pesquisa (The Old Norse Religion: concepts and methods of research), Rever: Revista de Estudos da Religião, PUC-SP, 16(2), 2016.




SUNDQVIST, Olof. Cult leaders, rulers and religion. In: BRINK, Stefan (ed.). The viking world. New York: Routledge, 2012, p. 223-226.