O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Sete erros históricos sobre Runas e Magia Rúnica*


Imagens: jogo de runas contemporâneo (esquerda, alto); detalhe da inscrição de Rök (Ög 136), Suécia (esquerda, abaixo); pedra rúnica de Funbo (U 937), Suécia (centro); runomancia (direita, alto); pingente contemporâneo com a runa Algiz (direita, abaixo). Fonte das imagens: internet.




Imagem: pedra rúnica Skårby 1 (DR 280), Lund, Suécia.

Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)




As runas fascinam o homem moderno. Desde que o professor Otto Lindenbrock, na cidade de Hamburgo, deparou-se com inscrições rúnicas escritas por Arne Saknussemm e deu início a sua majestosa aventura (Viagem ao centro da Terra, Júlio Verne, 1864) a arte ocidental retoma a todo instante o universo rúnico. Tolkien também fez uso delas a partir de 1937 e os anos 1970, com o boom místico da Nova Era, retomaram elas com um intenso fervor. Atualmente encontramos runas em todo canto: na música, na televisão, no cinema, em eventos esotéricos, na mídia e na internet. Elas povoam nossos imaginários, mas ao mesmo tempo, possuem uma relação com o passado nórdico, muitas vezes repleto de fantasias e equívocos. Nossa intenção neste pequeno ensaio é desmistificar alguns aspectos ditos históricos na interpretação das runas presentes em autores modernos. Não estamos realizando nenhum ataque pessoal a nenhuma forma de crença ou misticismo – toda forma de saber é válida e lícita nos tempos atuais, não importando o seu conteúdo ou intenções. A função do historiador é tentar entender as formas com que um determinado conteúdo é recebido, ressignificado e interpretado no mundo contemporâneo, mas ao mesmo tempo, compreender como esse tema também foi entendido efetivamente no passado (antigo ou medieval). Muitas vezes, ideias religiosas atuais se baseiam em uma ancestralidade ou uma origem que não existiu – o discurso mítico moderno inventa tradições baseadas na História, tanto para criar uma legitimidade quanto impor valores e normas de comportamento no presente (Hobsbawm, 1997, p. 9-10). Com isso, ao analisarmos alguns aspectos que tenham relação com crenças pessoais nos dias de hoje, não estamos promovendo nenhum ataque ou discriminação religiosa e sim, procuramos entender porque elas existem e qual os seus significados sociais.
Para separar melhor a bibliografia para o leitor, os títulos de fontes primárias (obras esotéricas, religiosas, místicas, neopagãs, mágicas, espiritualistas, jornalísticas ou de popularização) são detalhados no corpus do texto, enquanto as fontes secundárias (obras acadêmicas para referenciais analíticos e críticos) são citadas como autor, data, paginação no corpus e detalhadas no final do ensaio. Nosso referencial de investigação e análise é baseado nestas fontes secundárias, adotando principalmente duas metodologias: o modelo de tradições inventadas (Hobsbawm, 1997) e a teoria da recepção nórdica (Ross, 2018).






Imagem 1: capa da edição original do livro Das Geheimnis der Runen (O segredo das runas), de Guido von List, 1908. List foi um dos responsáveis pela popularização do neopaganismo nórdico e a interpretação mágica das runas germânicas antigas.  O desenho do livro inclui 18 runas (selecionadas do futhark anglo-saxônico de 31 caracteres) e incluída uma suástica central, um símbolo antigo e medieval presente na recepção de intelectuais de línguas germânicas desde a segunda metade do século XIX, interpretada equivocadamente como um símbolo do deus Thor.



1     1.  As runas são inscrições mágicas

A ideia mais comum no imaginário de grande parte das pessoas é que toda runa seja algo mágico, ou seja, as inscrições rúnicas são míticas em si mesmas. Isso se deve basicamente a obras de popularização sobre o tema, fundindo as inscrições históricas com conteúdo da Edda Poética, como no primeiro livro publicado no Brasil sobre a temática nórdica: “Os sagrados caracteres dotados de prodigioso poder” (Dicionário de Mitologia Nórdica, Esopinho, s.d., p. 92, possivelmente publicado nos anos 1960). Mais recentemente, autores estrangeiros e nacionais perpetuam essa visão: “são um sistema que detém e transmite os poderes essenciais da natureza e seu uso tem como objetivo trazer equilíbrio e harmonia à vida” (Runas, Catherine J. Duane e Orla Duane, 1997); “Las runas  son caracteres mágicos, combinados según reglas tradicionales, com um fin pantacular” (Amuletos, talismanes y pantáculos, Jean Rivière, 1974, p. 323). A popular escritora esotérica Mirela Faur também referenda essa concepção: “A maioria das inscrições tinha finalidades mágicas e visava atrair a sorte, afastar o mal” (Ragnarök: o crepúsculo dos deuses, 2011, Mirella Faur, p. 72). Na realidade, de um ponto de vista puramente quantitativo, a grande maioria do conteúdo dos textos rúnicos da Era Viking (cerca de 3.000 inscrições) não tem relação direta com religião, mito ou magia, abordando questões puramente comemorativas, literárias, funerárias e laudatórias (Williams, 2008, p. 285-286). Sobre isso comentam também dois grandes especialistas em magia rúnica: “In fact surprisingly few of the practices associated with runic writing seem to be inherently magical” (MacLeod & Mees, 2006, p. 9). Quando abordam temas religiosos, muitas inscrições rúnicas da Era Viking são cristãs e algumas poucas relacionados com magia e paganismo (geralmente encantamentos e invocações para Thor: Sawyer, 2003, p. 125-18), encantamentos de cura (MacLeod & Mees, 2006, pp. 116-162) e maldições (Langer, 2014, pp. 36-42).

A própria distribuição dos alfabetos rúnicos na Antiguidade é refletida pelos autores místico-esotéricos como tendo sido propagado devido ao seu caráter supostamente sobrenatural: “O uso das runas com fins divinatórios e lançamentos de sortes facilitou a sua difusão. Teutões, Címbrios, Suábios, e sobretudo Érulos, estes últimos peritos em escrita rúnica, e adivinhação simultaneamente, contribuíram largamente para a formação de uma estável tradição rúnica” (A mitologia dos povos germânicos, Maria Lucília F. Meleiro, 1994, p. 72). Na verdade, a distribuição das runas na Antiguidade europeia foi relacionada ao seu uso como instrumento de comunicação gráfica, adaptando e evoluindo conforme as diferentes linguagens adotadas pelos povos germânicos (Marez, 2007, p. 11). Do mesmo modo, a origem das runas é concebida como tendo motivações puramente mágicas: “As runas surgiram da fusão entre esta antiga escrita mágica de magos e sacerdotes com um sistema fonético derivado dos etruscos da Itália” (As ciências secretas de Hitler, Nigel Pennick, 1994, p. 50), porém, os atuais runologistas estão mais propensos a pensar em uma influência grega, latina e do norte da Itália (etrusca) na formação de um sistema de registro gráfico, originalmente utilizado para comunicação, registro e criação de signos ideográficos (Marez, 2007, pp. 25-27).

Outra tendência muito comum nos escritores contemporâneos sobre runas é utilizar algum conceito advindo do simbolismo e da teoria psico-analítica de Jung para referendar algum aspecto sobrenatural ou místico delas: “As runas representam arquétipos atemporais e sutis, que servem como portais mágicos de percepção sutil e expansão da consciência humana” (Ragnarök: o crepúsculo dos deuses, 2011, Mirella Faur, p. 73). “Ao lançador de runas (...) suscetível de despertar os poderes latentes de percepção sensorial dos símbolos arquetipais, inscritos no inconsciente coletivo” (A mitologia dos povos germânicos, Maria Lucília F. Meleiro, 1994, p. 71). Em um artigo publicado na revista Rever, realizamos uma crítica sobre as teorias de base fenomenológicas aplicadas ao mundo nórdico, na qual o inconsciente coletivo e arquétipos se inserem: de forma resumida, elas não tem nenhuma base científica de demonstração, são universalistas e essencialistas, desprovidas de contexto histórico e social (Langer, 2018, p. 238-240).






Imagem 2: Pintura de Carl Emil Doepler, o jovem, baseado no relato de Tácito. Ilustração inserida na obra Walhall: Die Götterwelt der Germanen, de Wilhelm Ranisch, 1905. O pintor modificou o relato contido na Germânia e introduziu uma criança e uma mulher, tornando a cena muito mais familiar e tradicional (dentro dos moldes de uma sociedade alemã deste período, a mulher é totalmente passiva e submissa ao comando e decisões masculinas). Assim como os religiosos e místicos, os artistas ressignificam o passado histórico, adequando os conteúdos antigos aos propósitos do presente. Fonte da imagem. 



       2. As runas foram utilizadas como oráculos

Sem dúvida o aspecto mais popular das runas nos dias de hoje: o oracular. E também o mais desprovido de historicidade. Não há absolutamente nenhuma evidência histórica ou arqueológica de que runas foram utilizadas como instrumento de adivinhação ou oráculo na Era Viking. Para referendar este tipo de uso, geralmente os praticantes da runomancia citam o famoso trecho da Germânia de Tácito (98 d.C.), obviamente bem anterior ao período citado: “(...) cortam uma vergôntea retirada de uma árvore frutífera em pequenos ramos e estes, diferenciados por certos caracteres, eles espalham a esmo e fortuitamente sobre um tecido branco (..) apanha um a um dos pequenos ramos por três vezes. Feito isso, ele os interpreta segundo o sinal gravado neles anteriormente” (Andrade, 2011, p. 19). Segundo alguns especialistas, esta descrição de Tácito aplicada aos oráculos rúnicos é problemática, porque antecede a existência histórica do sistema de escrita germânico em pelo menos dois séculos, tornando muito duvidoso de que fossem runas os ditos sinais (caracteres) utilizados no oráculo (Davis, 2012, p. 2-3). O uso contemporâneo dos sistemas divinatórios rúnicos teve popularidade a partir da publicação do livro de Ralph Blum em 1987 (The Book of Runes), apesar dele nunca ter afirmado qualquer historicidade sobre seus métodos. Mas a partir deste livro, toda uma geração de pessoas vem utilizando métodos divinatórios sem qualquer tipo de questionamento sobre a antiguidade deste sistema (mesmo entre grupos neopagãos). Uma evidência contundente da origem moderna do oráculo rúnico é a runa branca (25ª. runa: denominada de Wyrd ou runa de Odin) introduzida por Blum: “is the final nail in the coffin to any ´traditionalist´” (Davis, 2012, p. 4). A variação do tipo de sistema rúnico utilizado também nunca foi explicada: por que manter alguns alfabetos e caracteres e eliminar outros? Isso não quer dizer que as pessoas não podem utilizar e acreditar nos sistemas divinatórios – isso faz parte da crença e da liberdade dos indivíduos. Mas quem pensa estar utilizando um sistema antigo dos povos germano-escandinavos está simplesmente equivocado. Esse tipo de conduta por parte dos ocultistas em estabelecer uma suposta antiguidade para suas práticas é muito recorrente, com o intuito de conseguir maior credibilidade e aceitação em sua comunidade ou para um público maior (Davis, 2012, p. 4, 5).

Os métodos de leitura (ou tiragem) das runas são também especulativos, produtos da imaginação ou então, retirados de outras fontes não relacionadas com a Antiguidade ou Medievo. Um dos meios mais utilizados é a aproximação com o Tarot, sistema de cartas originado de várias partes da Europa e produzida como oráculo durante o Setecentos, sem relação direta com as runas, entretanto para os adeptos da runomancia: “Ligada a noções de segredo e de mistério, a runa pode, portanto, comparar-se ao arcano do tarot (...) É preciso também lembrar que o sentido de uma runa é diferente quando estiver invertida” (O futuro pelas runas, Liliane Decker, 1997, p. 17, 115).  Esta última frase refere-se ao método do Tarot de analisar o simbolismo da carta pela sua posição. Outra aproximação com a tradição do tarot é a posse totalmente individual do objeto: “Essas runas agora são pessoais e não devem ser usadas, sob qualquer pretexto, por outra pessoa que não seja você” (Runas, Catherine Duane e Orla Duane, 1997, p. 19). Vários métodos de leitura são definidos por Faur: círculo tríplice representando as nornas; entrelaçamento de triângulos (valknut); nove mundos da Yggdrasil (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, pp. 311-314), ou seja, métodos desenvolvidos a partir da mitologia nórdica, também sem nenhuma base histórica. A mesma autora menciona também o método da “cruz rúnica” (Ibidem, p. 319), que nada mais é do que uma adaptação do tradicional método da “cruz celta” usada no tarot (O tarô mitológico, Juliet Sharman-Burke e Liz Greene, 1991, p. 228). Alguns escritores pagãos questionam o uso oracular das runas e sua associação com o Tarot e defendem estas como sendo um sistema divinatório, onde se realizaria perguntas ao divino e ele lhe responderia. Entretanto, acaba sendo do mesmo modo um método de adivinhar o futuro pelas runas, onde se invocam entidades e retiram-se algumas runas de um invólucro, respondendo a uma pergunta: “Qual o destino do nosso país, Óðinn, o senhor das runar?” (Runas e a espiritualidade nórdica, Programa Enigmas, 11/12/2018). Assim, esta alternativa não possui qualquer tipo de historicidade, do mesmo modo que as aludidas anteriormente.

As interpretações das runas são variáveis. Alguns apontam o Poema Rúnico anglo-saxão para compreensão do significado material e espiritual das runas (Runas, Catherine Duane e Orla Duane, 1997, p. 22). Em sua tradução acadêmica deste poema referido (além dos poemas rúnicos islandês, norueguês e Abecedarium nordmannicum), Elton Medeiros afirma que as interpretações modernas dos significados das letras rúnicas apresentam resquícios do romantismo oitocentista e dos impulsos esotéricos dos anos 1940 a 1970, necessitando de muito senso crítico e cautela ao se lidar com o tema (Medeiros, 2015, p. 13). Outra grande influência interpretativa nas obras tanto de neopagãos quanto escritores esotéricos são as publicações do norte-americano Stephen Flowers (pseudônimos: Edred Thorsson e Darban-i-Den). Flowers obteve doutorado em línguas germânicas em 1984 com o estudo Runes and Magic, muito criticado pelos acadêmicos (classificado como especulativo por MacLeod & Mees, 2006, p. 2). Faur cita nove obras de Edred Thorsson ao longo de seu livro Mistérios nórdicos, enquanto Paxson cita três livros, além do endereço e informações da Rune Gild, escola esotérico-pagã de Thorsson (Asatrú: um guia essencial para o paganismo nórdico, Diane Paxson, 2009, p. 200, 203). A Rune Gild (fundada em 1980) é tanto classificada como uma escola esotérica quanto paganista e tradicionalista radical. Ela foi originada pela herança de ímpetos românticos sobre o paganismo vigentes no final do século XIX (fascinação pela natureza e ideias de nação e raça), por uma reação esotérica de René Guénon questionando a modernidade, como também por ideias do satanismo da Igreja de Satã de Anton LaVey e o Templo de Set (Flowers fez parte de ambas). Assim, como em outras facetas do esoterismo, a Rune Gild se baseia em uma mistura de diferentes correntes (Granholm, 2010, pp. 95-115).

A interpretação oracular das runas ainda prepondera nos meios mais recentes. Mesmo livros supostamente com conteúdo mais “histórico” sobre o tema, são acompanhados com runas de brinde. Eventos místico-esotéricos como a I Conferência Brasileira de Runas (Hotel Estância Pilar, Ribeirão Pires, SP, 2017), além de trazer vários aspectos oraculares, também apresentou outras tendências mescladas ao interesse por runas, como o stadhgaldr (que comentaremos no ponto 7), runas e aromaterapia, runas e consciência, runas e xamanismo, além de aspectos de história da runologia (Johanes Bureus e as Nobres Runas). A utilização de aspectos históricos ou titulações acadêmicas é uma tendência nos meios esotéricos atuais. No livro Mistérios nórdicos (Mirella Faur, 2007) a identificação da autora, logo abaixo de uma foto ao lado de uma runestone europeia (orelha direita do livro), foi caracterizada como “com extensa formação científica e esotérica”. Vários integrantes do evento acima mencionado, identificam-se como graduados ou pós-graduados em História, ao mesmo tempo em que se proclamam como bruxas, wiccanas, terapeutas holistas, runemal, runólogo e/ou asatru: são elementos para legitimação de ideias, aceitação mais ampla da sociedade (e talvez mesmo na academia) ou validação de um legado supostamente baseado no passado histórico, mas que na realidade se tratam de tradições inventadas.

Um recente estudo inseriu a atual tradição rúnica oracular não em um passado histórico antigo ou medieval, mas em um tipo de revival gótico atrelado ao romantismo (final do Setecentos aos irmãos Grimm e Wagner até as ressignificações das runas pelos nazistas e por Tolkien). O discurso de antiguidade entre seus praticantes deriva de ideologias presentes nas modernas apropriações da cultura popular (do qual se inserem os neopagãos e derivados culturais da Nova Era). Estudando especificamente o período formativo dos guias oraculares rúnicos em inglês – anos 1980 e 1990 – até autores mais recentes, a pesquisa demonstra a extrema variabilidade de métodos e interpretações existentes em língua inglesa sobre o tema. Estes guias pretendem ajudar o leitor a operacionalizar forças ocultas e sobrenaturais que as ficções góticas representavam de forma literária, não sendo uma mera curiosidade histórica, mas elementos constantes na cultura popular (Mountfort, 2015, pp. 16-32).

Para concluir esta seção, retiramos uma frase de um site neopagão: “But ‘Modern’ does not have to mean ‘Fake’!” (Cyrus the Strong, The problem with most" Runic Divination" books and "experts", Real Runic Magic, 2014-2016). O objetivo deste texto não é desmerecer ou desqualificar qualquer forma de crença (cujos resultados podem ser reais ou imaginários, a critério dos crédulos). Vários neopagãos e esoteristas tem consciência de que certas tradições foram inventadas no mundo contemporâneo ou são produtos de seus próprios referenciais individuais (vide o site acima citado), o que não invalida as práticas em si (de um ponto de vista da liberdade religiosa). A função do historiador não é julgar ou discriminar, mas auxiliar na compreensão social do presente e do passado.






Imagem 3: Odin e as runas, pintura anônima contemporânea, fonte da imagem. O auto sacrifício de Odin segundo o Hávamál, mas inserindo as runas dentro de uma típica visão oracular moderna. A indumentária e os detalhes corporais lembram a figura de Cristo na arte cristã. A arte refletindo o cruzamento entre os valores atuais e os do passado.



3      3. As runas das Sagas e Eddas provém da Era Viking

Uma grande parte do conhecimento esotérico, místico e neopagão sobre runas provém de leituras sobre as sagas islandesas e os poemas éddicos – dentro do referencial romântico de que todas as informações da literatura medieval são transposições objetivas advindas da Era Viking. Muitas pesquisas epigráficas mais recentemente, estudando as inscrições rúnicas anteriores à cristianização e comparando-as com o material literário, demonstram um panorama diferente: as runas destes textos são produto da percepção social e da experiência de sua própria época. Elas possuem um eco da tradição rúnica antiga, evidentemente. Temas (como referências a elfos) e métricas existentes nas inscrições também foram preservadas pela literatura. Um bastão de runas de Trondheim (A 142) é muito semelhante ao discurso de Egill Skallagrímsson contra os escultores incompetentes de runas. O problema que esse tipo de correspondência é dificilmente encontrado entre as fontes epigráficas e literárias, tornando o bastão de Trondheim uma peça única. Um caso famoso são as 36 runas inseridas na Bósa saga ok Herrauðs (Saga de Bosi e Herraud, c. 1300):


Imagem 4: MacLeod, 2000, p. 254.



É um exemplo de runas mágicas que não encontram suporte nas inscrições rúnicas “reais”, pois são monogramas que foram adicionados para ilustrar a narrativa presente no texto e demonstram que grande parte do conhecimento rúnico antigo já havia se perdido. Possivelmente a narrativa original da Saga de Bosi não continha runas ligadas (bind-runes) ou galdrastafir (MacLeod, 2000, pp. 253-255). Outros episódios rúnicos de sagas islandesas (como na Saga de Egil) são artificiais e adaptados de motivos literários estrangeiros e descrevem situações romantizadas de feitiçaria rúnica. Nem nas fontes epigráficas e nem nas sagas islandesas ocorria qualquer alusão a manipulação mágica de runas ligadas para fins ocultos (MacLeod, 2000, pp. 252-263).

Quanto aos poemas éddicos, o processo é o mesmo. De maneira geral, os poetas cristãos e escribas que estão por trás do processo de transmissão e registro da poesia éddica, não conheciam a escrita rúnica e nem a aliteração, sendo muitas vezes fantasias literárias. Mas o material não é todo igual: algumas passagens refletem mais a antiga prática rúnica do que outras. A famosa descrição de Sigrdrifa comentando sobre runas não é toda fabulosa, mas tem muito mais paralelos com o uso de runas na época da narrativa. As runas de Odin no Hávamál tem alguma relação com a métrica do canto rúnico de Ribe e a tradição sobre este deus. Apesar de grande quantidade de fontes literárias em inglês e nórdico antigo mencionarem runas escritas em espadas para fins mágicos, existem poucas espadas medievais com runas gravadas. No geral, os poemas éddicos informam o referencial contemporâneo (em relação ao texto literário) sobre o material rúnico (MacLeod & Mees, 2006, pp. 233-253).






Imagem 5: Inscrição de Maughold Stone (MAUGH/2), Ilha de Man, séc. XII d. C. Na parte superior, inscrições rúnicas e na parte inferior, inscrição oghâmica. Fonte da imagem. 



4      4. O ogham é uma escrita rúnica



Desde o Setecentos existe uma confusão linguística, cultural e mitológica entre celtas, germanos e nórdicos. Uma das que ainda persiste é a de que a escrita ogâmica das populações das ilhas britânicas seria uma forma de alfabeto rúnico: “ao lado de sua origem germânica, acredita-se que as runas estejam ligadas à escrita Ogham (...) Como no Futhark rúnico, as runas do escrito de Ogham possuem qualidades mágicas e misteriosas e eram usadas em escritos de feitiços e amuletos” (Runas, Catherine Duane e Orla Duane, 1997, pp. 50-51); “Ainda que os druidas irlandeses tivessem seu próprio alfabeto – o ogham – eles também utilizavam os sistemas rúnicos, em especial o dinamarquês, o sueco e as runas marcadas com pontos” (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, p. 23); “Las Runas Celtas y su Significado” (Símbolos Celtas). Apesar de alguns estudos apontarem a influência das runas e da escrita grega na formação inicial do Ogham, a maioria dos epigrafistas consideram o latim o modelo principal, resultado do contato das populações britânicas com monumentos romanos (Santos, 2016, pp. 35-50). As inscrições oghâmicas não foram utilizadas para magia ou adivinhação (como quer a dupla Duane) ou também, os druidas não utilizaram runas germânicas (como quer Mirella Faur). Os nórdicos e a escrita rúnica penetraram nas ilhas britânicas após o total desaparecimentos dos antigos druidas. Existem algumas poucas inscrições rúnicas que coexistem com a escrita oghâmica no mesmo monumento, mas possivelmente foram realizadas em épocas diferentes e por autores diferentes, todas posteriores ao século VIII d. C. (vide a imagem 5, inscrição de Maughold Stone, realizada por um sacerdote cristão, The Ogham Stones of the Isleof Man). Ou então inscrições rúnicas e oghâmicas esculpidas pela mesma pessoa, como na inscrição de Killaloe, Irlanda, séc. XI d.C. (Irish Archaeology).
Ainda sobre a escrita oghâmica, persistem equívocos: “(...) o Ogham não é um alfabeto de uso prático; não era usado para escrever contos ou notas. Sua utilização, ao que tudo indica, restringia-se às práticas rituais e aos oráculos” (O livro da Mitologia Celta, Claudio Crow Quintino, 2002, p. 88). A escrita oghâmica durante o irlandês arcaico (até o século VI d.C.) consistia majoritariamente em registros onomásticos; após o período de cristianização, ela torna-se eminentemente funerária. Na literatura irlandesa medieval, ao contrário, ela “surge nos textos lendários, é sempre com fins mágicos (...) Sob outra forma, a escrita está ausente (...) a escrita é uma aplicação prática da magia e os textos dependem do deus Ogmio” (Roux & Guyonvarc´h, 1999, p. 131). Aqui pode ter ocorrido uma confusão entre os registros epigráficos antigos e as representações literárias medievais, o que pode ter contribuído para a criação de oghamos oraculares mais recentemente (Ogham: o oráculo dos Druidas, Osvaldo R. Feres, 2018), e de modo muito semelhante aos rúnicos, não tem nenhuma base histórica.






Imagem 6: Mosaico com Sol Negro, 1934, castelo de Wewelsburg, Büren, Alemanha,








5      5. O Sol Negro é de origem nórdica antiga

Há vários anos recebemos continuamente a indagação, de várias partes do Brasil, se o Schwarze Sonne (Sol Negro) provém do medievo ou é uma invenção moderna. A resposta é sim para esta última, trata-se de um símbolo criado no século XX: um círculo solar formado por 12 runas Sig, dispostas radialmente, criado em 1934 pelos membros da SS de Heinrich Himmler. O local era uma escola para os membros da organização estudarem a herança germânica e a religião nórdica antiga e também local para celebrações e cultos esotérico-religiosos. Himmler considerava o castelo o centro do mundo germânico (Goodrick-Clarke, 2004, p. 190-191).






Imagem 7: tatuagem rúnica, foto anônima da internet. Fonte da imagem




6      6. Tatuagens rúnicas

Existem poucas evidências de que os nórdicos da Era Viking utilizaram tatuagens ou qualquer tipo de pinturas ou marcações corporais. O cinema e a televisão popularizaram a ideia de tatuagens entre guerreiros nórdicos. Um estudo relacionou a presença de tatuagens rúnicas na atualidade como um reflexo de orientações, espiritualidade e tendências provindas da Nova Era e no Neopaganismo. Especialmente as relações com Odin são destacadas nas tatuagens, reforçando a associação das runas como mágicas. Sentimentos nacionalistas e/ou extremismos políticos também foram detectados. No geral, as tatuagens rúnicas são formas de expressões de identidade social e de pertencimento a determinados grupos ou comunidades bem amplas de aficionados e interessados no mundo nórdico medieval, muito mais do que reconstituições históricas (Bennett & Wilkins, 2019, pp. 1-14).






Imagem 8: quadro das posturas meditativas do sistema Stadhgaldr (yoga rúnica). Fonte daimagem 



7      7. Yoga rúnica

Mais amplamente difundida no Brasil há poucos anos, o sistema Stadhgaldr foi criado na Alemanha da década de 1930. Em 1920 Friedrich Marby desenvolveu um sistema chamado de Runengymnastik, que foi aperfeiçoado mais tarde para a denominação de Runenyoga e depois Stadhgaldr. A suposta base histórica para esses tipos de posturas corporais no mundo nórdico, seriam provenientes dos desenhos contidos no chifre de Gallehus “em que encontramos relevos em forma de runas e figuras antropomórficas em posições semelhantes às runas” (As moradas secretas de Odin, Valquíria Valhalladur, 2007, p. 19). O seu uso na atualidade é vinculado à espiritualidade e crenças mágicas: “(...) divulgada pelas obras de Edred Thorsson (...) é um sistema de magia que se utiliza de posturas, gestos e sons para projetar a energia das runas e causar efeitos mágicos sobre o vitki (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, p. 399).




Imagem 9: Cópia dos chifres de Gallehus encontrados na Dinamarca. Museu Nacional da Dinamarca, Copenhague. Fonte da imagem



Os chifres de Gallehus são dois objetos encontrados na Dinamarca no Setecentos e Oitocentos, do qual só restam cópias na atualidade (foram criminosamente fundidos em 1802). Os especialistas nunca chegaram a um consenso sobre a interpretação dos desenhos, que são figuras humanas, antropomórficas, animais e vários símbolos geométricos não figurativos. Alguns desenhos tem correspondência com representações gráficas encontrada na Escandinávia da Era Viking (como uma mulher portando corno de bebidas) ou Idade do Ferro (um guerreiro chifrudo semelhante ao caldeirão de Gundestrup, constante do acervo do Museu Nacional da Dinamarca), outras são únicas (serpentes sendo atacadas por outras serpentes?). O contexto ritualístico dos objetos é considerado quase certo, mas outras interpretações são puramente especulativas (as figurações formam um alfabeto; interpretações arqueoastronômicas) ou parcialmente corretas (interpretações baseadas na Mitologia Nórdica) (Nielsen, 2016, pp. 209-213). Não existe absolutamente nenhuma evidência de que as figuras humanas presentes nos dois caldeirões de Gallehus remetam a posições corporais realizadas por humanos na Antiguidade escandinava, seja imitando as runas ou para realização de qualquer tipo de magia, prática religiosa ou misticismo.

Nota: 

* Este ensaio faz parte da pesquisa Simbolismo religioso nórdico em monumentos da Era Viking e na Europa Medieval (Lattes/PPGCR-UFPB).



Referências bibliográficas:


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ROUX, Françoise Le & GUYONVARC´H, Christian.J. A civilização celta. Lisboa: Publicações Europa-América, 1999.

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Leia também:


























terça-feira, 7 de abril de 2020

O pintor alemão que popularizou Wagner e os Vikings





Ferdinand Leeke, A valquíria, pintura em óleo, s.d.





Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)




Hoje, dia 7 de abril, completam-se 161 anos do nascimento de Ferdinand Leeke, o genial pintor responsável por popularizar as óperas de Richard Wagner, além de executar várias obras que também disseminaram muito o imaginário sobre a mitologia germânica e os Vikings.

Leeke nasceu em Burg (Magdeburgo) em 1859 e morreu em Nurembergue em 1937. Estudou na Academia de Belas Artes de Munique. Em 1889-1898 ele foi comissionado por Siegfried Wagner (filho do famoso compositor) para realizar dez pinturas sobre o Anel do Nibelungo. As obras foram reproduzidas pelo então revolucionário processo de reprodução fotográfica de Franz Hanfstaengel, gerando uma grande popularidade destas imagens até o início do século XX. Lembramos que os libretos de óperas durante o Oitocentos não continham imagens, algo que só veio a ocorrer (no caso wagneriano) com o ilustrador Arthur Rackham em 1910 (na Inglaterra).

Leeke se torna o artista alemão mais famoso vinculado à representações visuais do ciclo nibelungiano, levando em 2016 o Museu Richard Wagner (Bayreuth, Alemanha, a “meca” dos wagnerianos) a realizar uma grande exposição sobre suas obras.

Além das óperas wagnerianas, as pinturas de Leeke tiveram como tema a Mitologia Germânica, o folclore e a História da Alemanha, a literatura arturiana, a Mitologia clássica, temas e mitos medievais, o cotidiano e a vida dos germanos antigos e também cenas relacionadas aos Vikings.

Primeiramente, comentaremos de forma breve algumas obras envolvendo o Anel do Nibelungo e depois suas telas com temática nórdica.








Wotan e Brunhilde, 1889 a 1898;

Siegfried e Fafnir, 1889 a 1898;

Valquírias, 1889 a 1898.



As pinturas de Leeke reproduzem um visual criado primeiramente por Carl Emil Doepler ainda nas primeiras apresentações das óperas de Wagner do ciclo nibelungiano, nos anos 1870: elmos com grandes asas laterais, escudos de metal, placas de armadura e detalhes anelares (influenciados pelas descobertas de objetos da Idade do Bronze, mesclados fantasiosamente com o período da Idade do Ferro). Tanto os elmos com asas (surgidos na arte escandinava em 1830) quanto o elmo com chifres (surgido na arte alemão em 1852) sugeriam uma liderança de alguns heróis germano-escandinavos (como Frithiof ou Arminius) quanto do poder de deuses (como Tyr). Mas na obra wagneriana, eles são genericamente incorporados aos deuses e valquírias. O tema das guerreiras ocupa uma posição central na obra de Leeke: ele executou várias pinturas de Wotan junto a Brunhilde, com fortes cores e intensa tragicidade romântica. Outro tema também muito retratado por este artista é Siegfried, geralmente opondo-se ao dragão, com vestimentas grosseiras e em ambiente primitivo (uma ideia geralmente associada aos germanos antigos), expressando o poder ancestral dos tempos passados.






Uma invasão viking, 1908 (pintura a óleo).



A pintura mais famosa de Leeke retratando vikings. A exemplo de diversas imagens depois dos anos 1880, a embarcação nórdica possui detalhes bem fidedignos, devido à descoberta do navio Gokstad em 1880 e de Oseberg em 1903. Os nórdicos aqui foram representados nas formas clássicas dos estereótipos relacionados aos Vikings no Oitocentos (em sua forma negativa): piratas predadores, queimando, roubando e estuprando. O detalhe da abdução/estupro é o mais relevante: três mulheres são capturadas e uma delas aparece em primeiro plano. O estereótipo fantasioso do estupro (ver Langer, 2017a) foi popularizado anteriormente na arte pelo francês Évariste Vital Luminais em seu famoso quadro Pirates Normandes (1894). Outro detalhe muito interessante de observar neste quadro é a ausência de asas ou chifres laterais nos elmos (algo que Leeke havia inserido em suas pinturas nibelungianas). Neste caso, o pintor preferiu seguir a tendência dos pintores escandinavos em geral, que dos anos 1850 a 1900 seguiram esta tendência de elmos sem protuberâncias, ficando para os pintores ingleses e norte-americanos a continuidade do famoso estereótipo dos chifres.






Vikings saqueando, 1911.



Nesta pintura, menos conhecida e reproduzida que a anterior, Leeke retorna ao tema dos nórdicos saqueando e abduzindo mulheres – novamente, com cabelos escuros e vestimentas brancas, destacando-as na tela. Também a embarcação volta a ser um dos elementos principais da pintura.






Germanos bebendo debaixo de um carvalho, 1920.



Germanos (Vikings?) jogando dados, 1925.



Ferdinand Leek também realizou várias pinturas retratando cenas cotidianas dos antigos germanos, especialmente bebendo cornos de hidromel (ou cerveja) abaixo de carvalhos. Como em suas representações de Siegfried, os germanos são retratados com vestimentas grosseiras e peles animais – sugerindo uma idéia de primitivismo, mas também, de um povo festivo e idílico – sugerindo uma conexão com os tempos modernos da Alemanha. Uma curiosidade é que esta última pintura, em sites alemães especializados em arte, ela tanto é denominada como sendo de germanos (Germanen beim Würfelspiel) quando de Vikings (Ein Wikinger Spiel). Não conseguimos saber qual realmente é o título original, mas em todo caso indica que a tela pode ter sofrido alguma influência do pangermanismo oitocentista – onde as fronteiras culturais entre os germanos antigos e os Vikings eram muito tênues, sobrevivente na época em que a pintura foi realizada ou após a morte de Leeke, pelos sites especializados. Um tema para futuros pesquisadores em recepção nórdica na arte.



Bibliografia:


CÓRDOBA, Daniel Salinas. Vikings nas artes plásticas. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2017.

LANGER, Johnni. Estupro. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2017a.

LANGER, Johnni. Viking. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2017b.

Sites: 





sexta-feira, 3 de abril de 2020

Quando os Vikings foram cavaleiros medievais!




Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

Johnnilanger@yahoo.com.br


Na história dos nórdicos na recepção artística moderna, um dos momentos mais interessantes é a sua associação com a cavalaria medieval, um fenômeno cultural que ocorreu durante o início do século XIX.

Dentro do referencial em que a arte elaborou suas representações (num sentido militar: profissionais da cavalaria pesada; num sentido nobiliário: estritamente aristocrática e nobre), todo medievalista sabe que a cavalaria medieval possuem conotações associadas ao período que vai do século XII ao XV, tendo a França como epicentro sócio-cultural. Mas então, como teria surgido esse imaginário artístico moderno?

Em primeiro lugar temos que perceber que os artistas visuais e os escritores modernos não tinham contato com uma visão histórica da cavalaria medieval, ao contrário, eles consumiam obras medievais onde foram elaboradas as idealizações, fantasias e ideologias sobre a cavalaria. Especialmente as obras arturianas eram as preferidas, um mundo onde os cavaleiros medievais, acima de tudo, eram perfeitos modelos de virtude e comportamento, de paixão e aventura – é o que o historiador Jean Flori denomina de “mito da cavalaria” (2002, p. 196): a literatura medieval em língua vulgar celebra e transforma a cavalaria em mitos, onde os personagens são heróis ideais, valentes, sábios, intrépidos, virtuosos. Um ideal cavaleiresco, profano e ambíguo (p. 197).

No contexto da segunda metade do século XVIII, a origem da retomada europeia da literatura medieval, os artistas buscavam elementos para fugir ao Neoclassicismo que imperava nas artes em geral, mas também buscavam escapar do racionalismo iluminista que se impunha no momento. Logo, o período pré-romântico viu nascer um movimento que vai incendiar os intelectuais europeus. Ele vai buscar nos antigos mitos, epopeias e folclore, elementos que possam fornecer temas para uma arte contestadora do racionalismo (o sublime e a melancolia, que vão ser alguns dos temas preferidos do posterior Romantismo) e para fortalecer uma identidade nacional, que busca suas origens.

Paralelamente temos alguns movimentos literários que caminham numa direção semelhante a esse movimento estético referido, como o Sturm und Drang na Alemanha. E em 1762 o poema Ossian de James Macpherson torna-se uma febre na Europa, levando cada país a procurar suas próprias tradições mítico-folclóricas em particular, mas elevando o passado celta a um patamar absoluto – muitas obras posteriores vão confundir germânicos antigos com Celtas e nórdicos, seja na literatura ou nas artes visuais. Por exemplo, até final do século XIX os druidas serão o referencial estético de sacerdotes para todos estes povos antigos da Europa. A própria noção de “Norte” aqui precisa ser matizada – não se trata somente da Escandinávia, mas de todo o norte europeu que se mescla indiferentemente a um passado Celta e Germânico, tanto historicamente quanto linguisticamente. As fronteiras não são bem demarcadas, originando as “confusões” deste período.

Em 1755 inicia-se na Dinamarca o denominado Revival Nórdico (ou Renascimento Nórdico) que vai ser muito influente na França e nos países de línguas germânicas em geral. As Sagas e as Eddas passam a ser traduzidas, estudadas e recebem novas versões, mas mãos de jovens escritores empolgados. Mas como representar os antigos deuses e deusas? Como representar visualmente os antigos nórdicos? Não se conheciam nesta época as fontes visuais antigas e o estudo da cultura material do medievo era muito precário. Então, os pintores e escultores apelavam para a sua imaginação e os recursos que dispunham neste momento – e a cavalaria medieval filtrada pela literatura era uma excelente opção.

Acompanhar todos os estereótipos criados em torno dos nórdicos e suas conexões é complexo. Elaboramos uma tabela com dez estereótipos positivos e negativos sobre os vikings (a ser publicada na próxima edição da revista Scandia: “A invenção romântica do Viking”), que vão do medievo até o século XX, destacando os seguintes elementos: Aventura, Comportamento, Sociedade, Equipamentos, Guerra, Nacionalismo, Origem nacional, Abdução, Mulher nórdica, Ambiente e Comportamento. O que nos interessa diretamente aquí, a construção do Viking como um cavaleiro medieval, tem relação como o último elemento: o comportamento.

O estereótipo primeiramente teve inicio na França: “Tout ce que nous appelons esprit chevaleresque, nous le devons aux Scandinaves” (Cherade-Montbron, 1801, p. 266).* Em 1825 o escritor sueco Esaias Tégner publicava a sua versão de Frithiof, onde o herói protagonista possui diversos elementos de um cavaleiro medieval. No mesmo ano, na França criou-se a idéia de que foi no Norte europeu que teria nascido a cavalaria: “Ce qui prouve d´une manière incontestable que la chevalerie est venue du Nord”. (Lerebours, 1825, p. 176). A partir daí, varios outros intelectuais franceses continuaram a defender essa noção:

 “Oi aime à reconnaître que l´esprit de galanterie des Européens modernes est un héritage des Scandinaves, et que l´odinisme a été le berceau de la chevalerie” (Saint-Genies, 1824, p. XII)

“Il faut savoir que la Scandinavie, d´où sont sortis les Normands, est le véritable berceau de la chevalerie” (Hagberg, 1835, p. 245).

“L´Europe Méridionale et occidentale n´avait pas l´esprit de chevalerie avant l´invasion gothique et germanique” (Gräber, 1838, p. 85).

Desta maneira, o nórdico/normando torna-se não somente um herói do romantismo, mas também um modelo de virtude e bom comportamento dos tempos passados: “On a pu voir qu´il y avait dans les moeurs scandinaves, toutes rudes et barbares qu´elles étaient, quelque chose  de chevaleresque; pour l´exaltation de la bravoure, l´avidité de la glorie, la fraternité des armes, l´amour du beau sexe, le goût de la poésie héroique, enfin pour toutes les passions fortes, ils étaient chevaliers”. (Depping, 1826, p. 367)

Mesmo para os leitores de sagas islandesas, essas características cavalheirescas parecem dominar as antigas ações dos nórdicos, onde o espírito de galenteria estaría atrelado aos valores de conduta, fraternidade, respeito pelas mulheres e o apreço pelo combate honroso.** Até mesmo o duelo (hólmganga) é visto a partir de uma nostalgia de uma Idade Média dos torneios. Nem mesmo o famoso filósofo e poeta, Arthur de Gobineau, escapou a essa irressistivel visão: “(…) Rollon et sa bande hardie (…) De marins qu´ils étaient devinrent chevaliers” (Gobineau, 1838, p. 165). Não se trata aqui de interpretações fiéis aos textos medievais nórdicos, claro, mas de filtragens que iam de encontro à recepção daquele momento. E nada poderia exemplificar melhor do que as artes visuais. Nesse caso, tudo começou em 1826.

      


Frithiof dreper to troll på havet (Frithiof matando dois trolls no mar), pintura de Carl Peter Lehmann, 1826, óleo sobre tela, 86 x 115 cm, acervo do KODE (Museu de Artes de Bergen, Noruega).


Quase tudo nesta pintura de Carl Lehmann é fantástico. Não se conheciam muito bem as embarcações nórdicas, por isso o barco de Frithiof mantém quatro mastros e velas latinas e a proa contém uma especie de esporão. O herói está de armadura completa – apesar dos cavaleiros medievais começarem a utilizar armaduras completas somente a partir do século XIV (e seu uso foi extensivo até o século XVII) - o imaginario artístico generalizou sua utilização para todo o medievo. Frithiof se mantém altivo e viril na proa da embarcação, destacando seu papel de herói e guerreiro.



    
Ilustrações de Hugo Hamilton, Teckningar ur Skandinaviens Äldre Historia. Stockholm: Gjöthström & Magnusson, 1830.



Nestas duas imagens de Hugo Hamilton representando o mundo nórdico da Era Viking, percebemos o uso da espada longa tardo medieval e a armadura completa. Mas um detalhe salta aos olhos: o segundo cavaleiro porta um elmo com asas, que posteriormente vai tornar-se uma imagem icônica associada aos Vikings (os chifres surgem apenas depois de 1890), no qual elaboramos três teorias de origem iconográfica paralelas ou consecutivas (a serem detalhadas no estudo: “Barbarian warriors, romantic heroes: the visual invention of the Vikings through Western art, 1831-1910”).



  
Ilusrações de Johan Holmbergsson para a quinta edição da Frithiof saga, de Esaias Tégner. Stockholm: Tryckt Hos PA Norstedt & Soner, 1831.



Nas ilustrações de Johan Holmbergsson percebemos a elaboração visual definitiva do nórdico como cavaleiro medieval: ele se destaca pelo porte de uma armadura majestosa e brilhante: na primeira imagem, ele dialoga com um guerreiro e na segunda, com uma donzela. O seu elmo alado o destaca como líder e somente Frithiof porta-o como equipamento. Ele se impõe pelos gestos e comportamentos: honrado, nobre, valente. Ele não se destaca somente por ser um audacioso guerreiro, mas de ser um homem que tem amor pelas damas e suas virtudes na corte (como os cavaleiros corteses no medievo, Flori, 2005, p. 158-163).

A partir dos anos 1830 as representações visuais dos Vikings na Europa abandonam paulatinamente o referencial do cavaleiro medieval, permanecendo apenas o elmo com asas. As vestimentas e os equipamentos tornam-se cada vez mais nórdicos. Mas do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, essa representação vai sobreviver até o século vinte.

Em 1832 foi descoberto nos EUA um esqueleto junto a uma suposta armadura, inaugurando o mito nórdico naquele país (detalhes foram abordados em nosso estudo anterior: Langer, 2012). Alguns anos depois, em 1841, o escritor Henry Wadsworth Longfellow publicou o poema “The Skeleton in Armor”, influenciado pela descoberta. Neste poema, foi mencionado pela primeira vez o termo Viking no continente amerricano, mas as primeiras imagens associando essa narrativa com a idealização da cavalaria medieval ocorreram somente em 1856.


Ilustração de John Gilbert para a edição inglesa do poema The Skeleton in Armour, de Longfellow. Londres: George Routledge & Co., 1856. 



Na imagem de John Gilbert percebemos a arte vitoriana em seu esplendor: O esqueleto dentro da armadura permanece de pé, impassível e olhando e apontando a sua mão para o espectador, onde um manto e uma longa espada criam uma atmosfera misteriosa e romântica.






 

Alice M.A. Baumgartner, The Skeleton in Armour, aquarela, 1870-1890, coleção particular.



No final do Oitocentos, a artista norte-americana Alice Baumgartner recria a imagen de John Gilbert, dando vida ao personagem de Longfellow. Vários outros ilustradores, já no século XX, vão prosseguir com a representação do Viking como um cavaleiro medieval, mas também os escritores, a exemplo de Louis de Saint-Pierre: “Le chevalier – cette réincarnation chrétienne du Viking” (Saint-Pierre, 1949, p. 9).

Os Vikings ainda são extremamente interessantes tanto para os escandinavistas quanto para os medievalistas e historiadores da arte perceberem que o tema da recepção é repleto de possibilidades investigativas.*** Esperamos que no futuro outros pesquisadores abordem esse tema da fusão entre o Viking e o cavaleiro medieval, tanto na literatura quanto na arte e mídia em geral.



*Nota: comprovando a recepção do ideal cavaleresco medieval na França nesta mesma época, Napoleão Bonaparte criou em 1802 a Legião da Honra (Le Goff, 2009, p. 124).


**Nota: O historiador Dominique Barthélemy comenta que a literatura cavaleiresca em francês do século XII poderia ter sido uma forma de canalizar e moralizar a brutalidade da cavalaria “real” (2010, p. 460). Questionamos: a recepção francesa no inicio do Oitocentos – ao fundir a imagem do cavaleiro medieval com a do Viking/Normando – não estaría também tentando “civilizar” ou “moralizar” a anterior imagem barbárica e brutal dos nórdicos, comum entre alguns escritores no final do Setecentos?

***Nota: O quadrinho Príncipe Valente de Hall Foster (1937) pode conter alguns dos últimos ecos destas fusão: na narrativa, o personagem principal é descendente de Vikings da Noruega e se torna um dos cavaleiros do rei Arthur em Camelot (em plena Alta Idade Média).

Agradecimentos:

Kesia Eidesen (KODE Art Museums and Composer Homes), pelo envio de informações. 
Luciana de Campos (NEVE) por esclarecer algumas dúvidas sobre a língua francesa.


Bibliografía:

Fontes primárias:

GOBINEAU, Arthur de. Manfrédine, 1838 (poema inacabado). In: AMBRI, Paola Berselli. Poemi inediti di Arthur de Gobineau. Firenze: Lee S. Olschki, 1965.

HAGBERG, Charles-Auguste. Mémoires de la littérature en Suède. Journal de l'Institut historique, tome troisième, deuxième année, Paris, 1835, pp. 240-247.

CHERADE-MONTBRON, Joseph. Les Scandinaves: poème traduit du swéo-gothique; suivi d'observations sur les moeurs et la religion des anciens peuples de l'Europe barbare. Paris: An IX, 1801.

DEPING, D.P. Histoire des expéditions maritimes des Normands, et de leur établissement en France au dixième siècle. París: Didier, 1826.

GRÄBER DE HEMSÖ, J. La Scandinavie vengée de l´accusation d´avoir produit les peuples barbares qui détruisirent l´Empire de Rome. Lyon: J.B. Kindelem, 1822.

LEREBOURS, Pierre Victor. Harald ou les Scandinaves. Paris: Barba, 1825.

MARMIER, Xavier. Langue et littérature islandaises: Histoire de l'Islande depuis sa découverte jusqu'à nos jours. Paris: A. Bertrand, 1838.

SAINT-GENES, L. de. Balder, fils d'Odin: poëme scandinave en six chants; suivi de notes sur l'histoire, la religion et les moeurs des nations celtiques. Paris: L'Editeur, 1824.

SAINT-PIERRE, L. de. Rollon devant l´Histoire. Paris: Peyronnet, 1949.


Fontes secundárias:


BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII. Campins: Editora da Unicamp, 2010.

BOYER, Régis. Les Vikings: idées reçues. Paris: Le Cavalier Bleu, 2002.

BOYER, Régis. Le mythe viking dans les letres françaises. Paris: Editions du Porte Glaive, 1986.

FLORI, Jean. A cavalaria: a origen dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005.

FLORI, Jean. Cavalaria. In: LE GOFF & SCHMITT (Org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002, pp. 185-200.


LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.