O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Cinco erros sobre bebidas e alimentos da Era Viking





O que os nórdicos antigos comiam e bebiam?


Profa. Dra. Luciana de Campos

NEVE/Northern Women Arts Collaborative

fadacelta@yahoo.com.br

 

Os hábitos alimentares – que envolvem desde o cultivo de vegetais, criação de animais, o processamento destes até chegar à mesa – sempre despertaram a curiosidade e o paladar. Conhecer os alimentos bem como o seu modo de preparo é atualmente uma das grandes curiosidades que leva desde jornalistas e até o mais renomado especialista a buscar as informações mais precisas e, também, aventurar-se a “reconstituir” os pratos apreciados pelos povos do passado.

  A Arqueologia Experimental da Alimentação em alguns centros de pesquisa como, por exemplo a UCD School of Archaeology's Centre for Experimental Archaeology and Material Culture, no campus da University College Dublin, Irlanda, que além de outras pesquisas trabalha com a reconstituição da alimentação nórdica antiga. Contamos hoje com a publicação de livros especializados como o An Early Meal, de Daniel Serra, totalmente dedicado à alimentação na Era Viking. Mas, mesmo com os experimentos, a publicação de artigos científicos e de popularização, ainda restam muitas dúvidas pois a mídia, o cinema e a literatura de fantasia muitas vezes fazem “adaptações” um tanto quanto errôneas e aí vemos preparações de pratos que não existiam em determinadas épocas.





1.                      O uso do “Apple bacon” na Era Viking

Um prato que nos últimos tempos ganhou destaque nos eventos reconstrucionistas tanto nacionais como internacionais foi o æbleflæsk - conhecido também como “apple bacon”, que nada mais é do que carne de porco defumada e salgada refogada com maçãs ácidas e, em algumas variações também pode levar cebolas e alho-poró. Esse prato tem a sua origem nas zonas rurais dinamarquesas do século XVIII. Durante os rigorosos invernos os camponeses não podiam de maneira alguma abandonar seus afazeres, precisando de muitas calorias para trabalhar e suportar o frio. A solução? Fazer uma refeição deliciosa e quente misturando dois ingredientes que eram abundantes no inverno: maçãs e bacon! Esse prato tornou-se popular em toda a Dinamarca e foram acrescentados ingredientes conforme o paladar de quem o consumia. Se em uma região havia muitas cebolas, elas eram incorporadas, se havia muito alho-poró era ele que se mesclava à carne de porco e às maçãs. No século XIX muitos camponeses migraram para as cidades em busca de uma vida melhor e na bagagem trouxeram essa receita e a popularizaram. Esse prato ainda hoje é muito consumido principalmente no inverno e é uma presença constantes nas mesas no almoço do dia de Natal. Portanto os nórdicos da Era Viking não eram apreciadores dessa iguaria, pois viveram alguns séculos antes dela ser inventada!





2.                      “Arroz com amêndoas”

Um prato doce que é típico das festas natalinas em toda a Escandinávia e que leva canela, açúcar, amêndoas, leite e arroz em sua preparação e que começou a se popularizar no século XIX! Portanto, os nórdicos da Era Viking não consumiam esse tipo de alimento, mas, infelizmente esse prato aparece no menu de muitos restaurantes que querem servir a “autêntica comida viking”, tanto aqui no Brasil como no exterior. Um erro doce, mas ainda assim um erro!





3.                      O hidromel era a bebida mais consumida entre os vikings!

Essa frase foi publicada em uma recente reportagem em site e revista brasileira e é um outro equívoco. Em festivais, feiras, mercados e banquetes, tanto os nacionais como os estrangeiros, o hidromel é presença obrigatória! Existem os mais variados sabores que misturam frutas e ervas bem como méis de diferentes floradas, armazenados em barris e envelhecidos. Há hidromel para todos os gostos! Mas é preciso lembrar que essa bebida na Era Viking era cara e destinada somente aos mais ricos e em ocasiões especiais como a comemoração das vitórias em batalha, a celebração de alianças entre famílias ou chefes guerreiros. A Edda Poética descreve como Odin, depois de passar três dias deliciando-se com a bebida e os beijos e carícias de Gunnlod, metamorfoseou-se em águia roubando o precioso licor da beldade para levá-lo para os outros deuses. As gotas que caíram do bico da águia sobre a cabeça de alguns afortunados lhes concedeu a dádiva de escreverem a boa poesia. Já o que saiu pela cloaca, deu origem aos péssimos poetas. O hidromel possuía um caráter sagrado e, aliado a sua difícil produção, tornou-se uma bebida atribuída às divindades e aos seus eleitos. O hidromel não era abundante na Era Viking como outra bebida, a cerveja.

A cerveja pode ser definida grosseiramente como um fermentado rápido de cereais e ervas com uma baixa graduação alcoólica para ser consumida no cotidiano substituindo assim, o consumo de água pura que poderia transmitir doenças. O consumo de cerveja – fosse ela elaborada com os mais diversos cereais ou mesmo ervas ou raízes – era uma maneira de hidratar-se sem adoecer, daí a explicação para o seu consumo por todas as pessoas, dos mais novos aos mais velhos, dos mais abastados aos mais pobres. Do aristocrata ao servo todos consumiam cerveja no dia-a-dia: para acompanhar as refeições, para saciar a sede depois de lavrar o campo, durante o tempo que durava colheita ou nos barcos, enquanto se faziam as viagens. A cerveja foi, portanto, a bebida mais consumida na Era Viking. Uma outra bebida também muito consumida que visava aproveitar as frutas, principalmente peras e maçãs, que não serviam mais para o consumo era a sidra que nada mais é do quem fermentado do suco dessas frutas. Muitas vezes a sidra era consumida aquecida principalmente durante o inverno.





4.                      A canela era usada pelos nórdicos da Era Viking

Um outro item que também merece destaque no que diz respeito à alimentação é o uso da canela. Essa especiaria não era consumida pelos nórdicos antigos! A canela passou a fazer parte da dieta escandinava somente a partir do século XVI quando o comércio de especiarias do Oriente já estava definitivamente consolidado em toda a Europa. E, foi entre os séculos XVII e XVIII que surgiu uma receita que até hoje é presença obrigatória tanto no café da manhã como nos lanches da tarde: o kanelsnegl (em dinamarquês, kanelbulle em sueco, em norueguês skillingsboller, korvapuusti e em finlandês). Trata-se de um pãozinho não muito doce que leva farinha, açúcar, manteiga e, claro muita canela em sua preparação e é muito apreciado por pessoas de todas a idades e é delicioso!Uma dica: os melhores kanelsnegl da Dinamarca são feitos em uma confeitaria que funciona no mesmo local desde o final do século XIX em Lejre e, os segundos melhores são feitos em Ribe, em uma padaria que funciona desde o século XVIII. A receita do kanelsnegl tem forte influência da culinária alemã e adentrou os receituários escandinavos entre os séculos XVII e XVIII, portanto é uma receita da Idade Moderna.Recentemente alguns reconstrucionistas dinamarqueses divulgaram um vídeo com a receita do kanelsnegl como sendo uma comida da Era Viking. Alguns especialistas fizeram uma correção imediata, solicitando a retirada do material online bem como uma retração que foi imediatamente feita desfazendo assim possíveis equívocos.




5. Os vikings só consumiam carne assada

Os filmes e as séries de TV imortalizaram a imagens dos nórdicos da Era Viking como ávidos comedores de carnes assadas. A imagem do porco no espeto girando sobre brasas é clássica! Mas as carnes – de aves, bovina, suína, ovina e caprina – eram mais consumidas em ocasiões especiais, como as celebrações e banquetes esporádicos, por exemplo. As refeições cotidianas continham uma quantidade muito grande de vegetais – legumes, verduras e frutas -, cereais e peixes secos. A carne quando era consumida no cotidiano era em forma de ensopado sempre misturada com uma grande quantidade de vegetais. O consumo de carne existia mas não era cotidiano, pois os animais tinham mais valor vivos não só pelos produtos que ofereciam – leite e  lã – mas também pelo seu trabalho como animais de tração.


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Quando nos dedicamos a reconstituição de um prato, seja ela integrando um estudo de arqueologia experimental da alimentação ou para ser servido em um evento reconstrucionista é preciso ter o cuidado de pesquisar muito bem os ingredientes e o seu consumo na época e, acima de tudo saber que se está elaborando uma receita antiga com ingredientes contemporâneos e que muitas vezes o sabor, cor, textura pode se assemelhar ao prato original mas que será bem diferente daquele devido a uma série de fatores que interferem diretamente na composição do alimento.



Bibliografia:




BLACK, Maggie. The medieval cookbook. London: The British Museum Press, 2015.




CAMPOS, Luciana de. Alimentação. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2017, pp. 30-34.

CAMPOS, Luciana de. Cerveja. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2017, pp. 140-142.

CAMPOS, Luciana de. Hidromel. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2017, pp. 376-378.

KRASNA-KORYCINSKA, Malgorzata. Viking and Slavic cuisine. Szczevin: Triglav, 2011.

NIELSEN, Peter. Food of the Vikings: Vikingernes mad. Copenhagen: Koustrop & Co, 2017.

TUNBERG, Hanna & SERRA, Daniel. An early meal: a Viking Age cookbook & Culinary odyssey. ChronoCopia Publishing, 2013.