O que os nórdicos antigos comiam e bebiam?
Profa. Dra. Luciana de Campos
NEVE/Northern Women Arts Collaborative
fadacelta@yahoo.com.br
Os hábitos alimentares – que envolvem
desde o cultivo de vegetais, criação de animais, o processamento destes até
chegar à mesa – sempre despertaram a curiosidade e o paladar. Conhecer os
alimentos bem como o seu modo de preparo é atualmente uma das grandes
curiosidades que leva desde jornalistas e até o mais renomado especialista a
buscar as informações mais precisas e, também, aventurar-se a “reconstituir” os
pratos apreciados pelos povos do passado.
A
Arqueologia Experimental da Alimentação em alguns centros de pesquisa como, por
exemplo a UCD School of Archaeology's Centre for Experimental Archaeology and Material Culture, no campus da University College Dublin, Irlanda, que além de outras pesquisas trabalha com a reconstituição da alimentação nórdica
antiga. Contamos hoje com a publicação de livros especializados como o An
Early Meal, de Daniel Serra, totalmente dedicado à alimentação na Era
Viking. Mas, mesmo com os experimentos, a
publicação de artigos científicos e de popularização, ainda restam muitas
dúvidas pois a mídia, o cinema e a literatura de fantasia muitas vezes fazem
“adaptações” um tanto quanto errôneas e aí vemos preparações de pratos que não
existiam em determinadas épocas.
1.
O uso do “Apple bacon” na Era
Viking
Um prato que nos últimos tempos
ganhou destaque nos eventos reconstrucionistas tanto nacionais como
internacionais foi o æbleflæsk -
conhecido também como “apple bacon”, que nada mais é do que carne de porco
defumada e salgada refogada com maçãs ácidas e, em algumas variações também
pode levar cebolas e alho-poró. Esse prato tem a sua origem nas zonas rurais
dinamarquesas do século XVIII. Durante os rigorosos invernos os camponeses não
podiam de maneira alguma abandonar seus afazeres, precisando de muitas calorias
para trabalhar e suportar o frio. A solução? Fazer uma refeição deliciosa e quente
misturando dois ingredientes que eram abundantes no inverno: maçãs e bacon!
Esse prato tornou-se popular em toda a Dinamarca e foram acrescentados
ingredientes conforme o paladar de quem o consumia. Se em uma região havia
muitas cebolas, elas eram incorporadas, se havia muito alho-poró era ele que se
mesclava à carne de porco e às maçãs. No século XIX muitos camponeses migraram
para as cidades em busca de uma vida melhor e na bagagem trouxeram essa receita
e a popularizaram. Esse prato ainda hoje é muito consumido principalmente no
inverno e é uma presença constantes nas mesas no almoço do dia de Natal.
Portanto os nórdicos da Era Viking não eram apreciadores dessa iguaria, pois
viveram alguns séculos antes dela ser inventada!
2.
“Arroz com amêndoas”
Um prato doce que é típico das festas
natalinas em toda a Escandinávia e que leva canela, açúcar, amêndoas, leite e
arroz em sua preparação e que começou a se popularizar no século XIX! Portanto,
os nórdicos da Era Viking não consumiam esse tipo de alimento, mas,
infelizmente esse prato aparece no menu de muitos restaurantes que querem
servir a “autêntica comida viking”, tanto aqui no Brasil como no exterior. Um
erro doce, mas ainda assim um erro!
3.
O hidromel era a bebida mais consumida entre os vikings!
Essa frase foi publicada em uma recente
reportagem em site e revista brasileira e é um outro equívoco. Em festivais,
feiras, mercados e banquetes, tanto os nacionais como os estrangeiros, o
hidromel é presença obrigatória! Existem os mais variados sabores que misturam
frutas e ervas bem como méis de diferentes floradas, armazenados em barris e
envelhecidos. Há hidromel para todos os gostos! Mas é preciso lembrar que essa
bebida na Era Viking era cara e destinada somente aos mais ricos e em ocasiões
especiais como a comemoração das vitórias em batalha, a celebração de alianças
entre famílias ou chefes guerreiros. A Edda Poética descreve como Odin, depois de
passar três dias deliciando-se com a bebida e os beijos e carícias de Gunnlod,
metamorfoseou-se em águia roubando o precioso licor da beldade para levá-lo
para os outros deuses. As gotas que caíram do bico da águia sobre a cabeça de
alguns afortunados lhes concedeu a dádiva de escreverem a boa poesia. Já o que
saiu pela cloaca, deu origem aos péssimos poetas. O hidromel possuía um caráter
sagrado e, aliado a sua difícil produção, tornou-se uma bebida atribuída às
divindades e aos seus eleitos. O hidromel não era abundante na Era Viking como
outra bebida, a cerveja.
A cerveja pode ser definida grosseiramente
como um fermentado rápido de cereais e ervas com uma baixa graduação alcoólica
para ser consumida no cotidiano substituindo assim, o consumo de água pura que
poderia transmitir doenças. O consumo de cerveja – fosse ela elaborada com os
mais diversos cereais ou mesmo ervas ou raízes – era uma maneira de hidratar-se
sem adoecer, daí a explicação para o seu consumo por todas as pessoas, dos mais
novos aos mais velhos, dos mais abastados aos mais pobres. Do aristocrata ao
servo todos consumiam cerveja no dia-a-dia: para acompanhar as refeições, para
saciar a sede depois de lavrar o campo, durante o tempo que durava colheita ou
nos barcos, enquanto se faziam as viagens. A cerveja foi, portanto, a bebida mais consumida na Era
Viking. Uma outra bebida também muito consumida que visava
aproveitar as frutas, principalmente peras e maçãs, que não serviam mais para o
consumo era a sidra que nada mais é do
quem fermentado do suco dessas frutas. Muitas vezes a sidra era consumida
aquecida principalmente durante o inverno.
4.
A canela era usada pelos nórdicos da Era Viking
Um outro item que também merece destaque no
que diz respeito à alimentação é o uso da canela. Essa especiaria não era
consumida pelos nórdicos antigos! A canela passou a fazer parte da dieta
escandinava somente a partir do século XVI quando o comércio de especiarias do
Oriente já estava definitivamente consolidado em toda a Europa. E, foi entre os
séculos XVII e XVIII que surgiu uma receita que até hoje é presença obrigatória
tanto no café da manhã como nos lanches da tarde: o kanelsnegl (em dinamarquês, kanelbulle em sueco, em norueguês skillingsboller, korvapuusti e em finlandês). Trata-se de um pãozinho não muito doce que leva farinha, açúcar, manteiga e, claro muita canela em sua preparação e é muito apreciado por pessoas de todas a idades e é delicioso!Uma dica: os melhores kanelsnegl da Dinamarca são feitos em uma confeitaria que funciona no mesmo local desde o final do século XIX em Lejre e, os segundos melhores são feitos em Ribe, em uma padaria que funciona desde o século XVIII. A receita do kanelsnegl tem forte influência da culinária alemã e adentrou os receituários escandinavos entre os séculos XVII e XVIII, portanto é uma receita da Idade Moderna.Recentemente alguns reconstrucionistas dinamarqueses divulgaram um vídeo com a receita do kanelsnegl como sendo uma comida da Era Viking. Alguns especialistas fizeram uma correção imediata, solicitando a retirada do material online bem como uma retração que foi imediatamente feita desfazendo assim possíveis equívocos.
5. Os vikings só consumiam carne assada
Os filmes e as séries de TV imortalizaram a imagens dos nórdicos da Era Viking como ávidos comedores de carnes assadas. A imagem do porco no espeto girando sobre brasas é clássica! Mas as carnes – de aves, bovina, suína, ovina e caprina – eram mais consumidas em ocasiões especiais, como as celebrações e banquetes esporádicos, por exemplo. As refeições cotidianas continham uma quantidade muito grande de vegetais – legumes, verduras e frutas -, cereais e peixes secos. A carne quando era consumida no cotidiano era em forma de ensopado sempre misturada com uma grande quantidade de vegetais. O consumo de carne existia mas não era cotidiano, pois os animais tinham mais valor vivos não só pelos produtos que ofereciam – leite e lã – mas também pelo seu trabalho como animais de tração.
Quando nos dedicamos a reconstituição de um prato, seja ela integrando um estudo de arqueologia experimental da alimentação ou para ser servido em um evento reconstrucionista é preciso ter o cuidado de pesquisar muito bem os ingredientes e o seu consumo na época e, acima de tudo saber que se está elaborando uma receita antiga com ingredientes contemporâneos e que muitas vezes o sabor, cor, textura pode se assemelhar ao prato original mas que será bem diferente daquele devido a uma série de fatores que interferem diretamente na composição do alimento.
Os filmes e as séries de TV imortalizaram a imagens dos nórdicos da Era Viking como ávidos comedores de carnes assadas. A imagem do porco no espeto girando sobre brasas é clássica! Mas as carnes – de aves, bovina, suína, ovina e caprina – eram mais consumidas em ocasiões especiais, como as celebrações e banquetes esporádicos, por exemplo. As refeições cotidianas continham uma quantidade muito grande de vegetais – legumes, verduras e frutas -, cereais e peixes secos. A carne quando era consumida no cotidiano era em forma de ensopado sempre misturada com uma grande quantidade de vegetais. O consumo de carne existia mas não era cotidiano, pois os animais tinham mais valor vivos não só pelos produtos que ofereciam – leite e lã – mas também pelo seu trabalho como animais de tração.
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Quando nos dedicamos a reconstituição de um prato, seja ela integrando um estudo de arqueologia experimental da alimentação ou para ser servido em um evento reconstrucionista é preciso ter o cuidado de pesquisar muito bem os ingredientes e o seu consumo na época e, acima de tudo saber que se está elaborando uma receita antiga com ingredientes contemporâneos e que muitas vezes o sabor, cor, textura pode se assemelhar ao prato original mas que será bem diferente daquele devido a uma série de fatores que interferem diretamente na composição do alimento.
Bibliografia:
BLACK, Maggie. The medieval cookbook. London: The British Museum Press, 2015.
CAMPOS, Luciana de. Alimentação. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2017, pp. 30-34.
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CAMPOS, Luciana de.
Cerveja. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra,
2017, pp. 140-142.
CAMPOS, Luciana de.
Hidromel. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra,
2017, pp. 376-378.
KRASNA-KORYCINSKA, Malgorzata. Viking and Slavic cuisine. Szczevin: Triglav, 2011.
NIELSEN, Peter. Food of the Vikings: Vikingernes mad. Copenhagen: Koustrop & Co, 2017.
TUNBERG, Hanna & SERRA, Daniel. An early meal: a Viking Age cookbook & Culinary odyssey. ChronoCopia Publishing, 2013.
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