O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Reconstituindo receitas da França Medieval



                                                                                                                                         

Luciana de Campos (NEVE)
Mestre em História pela UNESP 
Pós doutoranda em Ciências das Religiões pela UFPB 
fadacelta@yahoo.com.br

No dia 21 de fevereiro, foi realizado um "exercício de arqueologia experimental", onde preparamos um peixe típico das casas aristocráticas francesas dos séculos XIV e XV. A receita foi reconstituída com base no documentário Let's Cook History: The Medieval Feast.

Escolhemos um peixe que mais se assemelhava ao proposto pela receita, no caso, o Salmonete (Mullus suruletus) como ele não é encontrado no Brasil, utilizamos o Pargo (Pagrus pagrus) que deu um ótimo resultado muito semelhante ao original. 

Os ingredientes da receita medieval: farinha, manteiga, limão, temperos e peixe


Foram utilizados quatro filés, pois a receita original leva filés de salmonete temperados apenas com sal e algumas gotas de limão siciliano. Com pouco tempero, fica realçado o sabor natural do peixe. 


O filé de peixe sendo grelhado na fogueira


Depois de temperados, os peixes foram grelhados dos dois lados em um frigideira bem quente com um pouco de manteiga e retirados do fogo. 


Os "envelopes" de massa com os peixes em seu interior


Os filés já bem cozidos foram colocados em um espécie de envelope de massa e foram levados novamente ao fogo. A massa que envolve os filés de peixe é feita com farinha de trigo, manteiga, sal e um pouco de água. Ela é aberta não muito fina e o filé é colocado sobre a massa e coberto com ela e, depois fechado usando um garfo para apertar bem as bordas. O experimento original foi realizado em uma cozinha com forno a lenha, enquanto a nossa recriação empregou fogo de chão.


O envelope de massa é colocado para assar no fogo, fechado e coberto com cinzas

O envelope de massa é colocado na frigideira e, depois coberto com outra frigideira e algumas brasas são colocadas por cima para que a massa cozinhe por igual. Depois de uns 10 a 15 minutos as frigideiras são retiradas do fogo, o filé recoberto com a massa é colocado em um prato e, sobre ele é espalhado um pouco de manteiga com um pouco do suco de limão siciliano. 


O prato finalizado e aberto

A massa, no caso serve como o papel alumínio moderno que é muito comum em várias preparações assadas. O filé é servido e deve ser comido junto com a massa. 

O experimento exigiu tempo e paciência pois o peixe é feito em duas etapas que requerem cuidado no seu preparo - mas o resultado final é muito bom e, apesar dos poucos temperos, o peixe fica muito saboroso e com uma excelente textura, combinando a maciez da carne com o tostado da massa. 

Esse prato utiliza apenas o filé do peixe e não o peixe inteiro e, portanto, remete a um paladar mais refinado como o da aristocracia tardo medieval, que comia muitas vezes em pequenas porções podendo assim desfrutar de várias iguarias em uma mesma refeição. E um detalhe importante: esse prato era servido sobre um prato, geralmente de metal ou, nas casas mais refinadas de louça e era acompanhado de talheres: o garfo e a casa que passaram a frequentar as casas e as mesas mais abastadas que facilitavam a refeição dos comensais e também eram sinais de poder e prestígio. Bem diferente das populações rurais que eram proprietários de pequenas porções terras e que precisam aproveitar integralmente os alimentos e necessitavam muitas vezes de grandes porções, principalmente em ocasiões especiais como os casamentos e os nascimentos.



Reconstituição de receita medieval de peixe envolto com massa e assado na brasa em 2016

Essa receita lembra um outro prato medieval em que a massa, feita apenas com água e farinha e não serve para ser comida é utilizada apenas como um envelope para assar o peixe. Geralmente, esse método é utilizado para assar peixes grandes ou então filés grandes. No nosso experimento de 2016 (baseado em reconstituição do documentário A vida Medieval) utilizamos um filé grande de salmão e ervas frescas como alecrim, tomilho e manjericão além do sal. 


Ingredientes e reconstituição de hipocraz


Para acompanhar, o peixe fizemos também uma outra receita essa datada do século XIV (Almodóvar, 2007, p. 35), que é o hipocraz, uma espécie de vinho adocicado e aromatizado com ervas doces e mel, comum na França e Espanha. Para o preparo do hipocraz foi utilizado uma xícara de vinho tinto seco, meia xícara de água, quatro cravos, uma fatia de gengibre, uma colher de café de alfazema, uma pau de canela, um anis estrelado e uma colher de sopa de mel. Tudo foi misturado e levado ao fogo até começar a ferver. Depois foi tirado do fogo e deixado descansar antes de ser coado e servido. 


Ingredientes e reconstituição de Pomada  


E, claro não podia faltar uma sobremesa! A receita escolhida também é medieval e está presente em vários receituários europeus desde o século XIII (Robert, 2010, p. 53). É um doce de maçã chamado "Pomada" (de pomo, pommes, maçã). Quatro maçãs médias foram descascadas e cortadas em fatias finas e colocadas em uma panela com um pau de canela, uma colher de sopa de mel e duas colheres de sopa de água, levadas ao fogo baixo até desmancharem e, depois de fria é servida. 

Bibliografia:

ALMODÓVAR, Miguel Ángel. La cocina del Cid: Historia de los yantares y banquetes de los caballeros medievales. Madrid: Nowtilus, 2007.

ROBERT, Mestre. Livro do cozinheiro (libre del coch): manual de receitas medievais. São Paulo: Instituto Ramon Llull, 2010.


Leia também:


NEVE reconstitui peixe assado da Era Viking


Cinco erros sobre bebidas e alimentos da Era Viking




quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

História, anacronismos e ficção na série Vikings (2013-2020)

 

Figura 1: Arte promocional da quarta temporada, apresentando os personagens principais na época: Ragnar, Lagertha, Rollo, Bjorn, Floki e Aslaug.

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Leandro Vilar Oliveira (NEVE) 

Doutor em Ciências das Religiões pela UFPB

vilarleandro@hotmail.com

 

Após sete anos de produção, seis temporadas e 89 episódios, a série Vikings criada e produzida por Michael Hirst e distribuída pelo History Channel, chegou ao fim, passando por altos e baixos, encerrando a aventura de Ragnar Lothbrok e seus filhos em meio a mistura de acontecimentos históricos, lendas e anacronismos.

A série apesar de não ter ganho prêmios de destaque ou ter tido uma altíssima audiência, ainda assim, conseguiu cativar o público com sua trama. Algo que inclusive nos primeiros anos gerou a noção incorreta de que se tratava de uma narrativa baseada em fatos históricos. Essencialmente Vikings é um drama histórico, que consiste numa trama baseada em acontecimentos ou personagens reais os quais são utilizados para se criar uma narrativa.

Embora a série baseia-se em fatos históricos, ela está recheada de anacronismos, deliberadamente adotados para a construção do enredo e seu desenvolvimento. Além disso, em determinados momentos, Hirst introduziu elementos sobrenaturais na trama, como aparições de Odin, o avistamento de Jormungand, a aparição de uma valquíria, Ragnar sonhando com Valhala, assim como, paralelos entre Floki e Loki.

Sendo assim, o presente texto é uma resenha crítica de toda a série, com o objetivo de abordar os aspectos históricos e culturais desta produção televisiva, destacando os anacronismos, estereótipos e elementos ficcionais. Não adentrando a comentar sobre atuações e partes específicas do enredo.

 

1.           Introdução

Séries sobre vikings não são novas, embora sejam produções pouco conhecidas, como Tales of Vikings (1959-1960), sendo um seriado em preto e branco e produzido por Kirk Douglas. Outras produções consistem em desenhos animados ou séries cômicas envolvendo os vikings como a minisérie britânica There’s a Viking in my bed (2001) e a série sueca Hem Till Midgard (2003-2004).

 

Em geral, os vikings estiveram mais presentes no cinema e na literatura. Todavia, no começo da década de 2010, o roteirista e showrunner Michael Hirst que é conhecido por seus dramas históricos como os filmes sobre a rainha Elizabeth I e a série The Tudors (2007-2010), teve a ideia de escrever sobre os vikings, especialmente sobre as invasões nórdicas à Inglaterra.

O canal History Channel apresentou interesse no projeto e em 2012 a produção teve início na Irlanda. Originalmente planejada como minissérie, condição essa que a primeira temporada possui nove episódios e termina com Ragnar Lothbrok tornando-se jarl, a temporada que estreou em 2013, fez relativo sucesso na época e o History Channel e demais estúdios produtores, decidiram dar seguimento a essa história.

A trama de Vikings é inspirada nas narrativas sobre o lendário rei Ragnar Lothbrok, o qual as diferentes obras que narram sua vida, apresentam informações divergentes, ora apontando Ragnar como rei da Noruega, da Dinamarca ou da Suécia, tendo tido três esposas, vários filhos e realizados outras façanhas, as quais ficaram de fora do seriado. Apesar dessas variações, Michael Hirst disse em algumas entrevistas que se baseou principalmente nas versões contidas no Gesta Danorum (séc. XII), na Saga de Ragnar Lothbrok (séc. XIII) e na Saga dos Filhos de Ragnar (séc. XIII).

Entretanto, o autor à medida que ia escrevendo as demais temporadas disse que a série não era apenas sobre Ragnar, sua família e amigos, mas também procurou apresentar os descobrimentos e conquistas empreendidos pelos vikings. Algo apresentado a partir da terceira temporada e continuado até o final. Do qual falaremos neste texto.

Mas além desse foco sobre expedições, a série também deu bastante atenção as batalhas, pois afinal, os vikings ainda hoje são conhecidos como um povo bélico. Fato esse que em todas as temporadas há conflitos, sendo que a partir da terceira temporada, as batalhas se tornaram maiores. Mas não necessariamente foram conflitos históricos, dos quais comentamos adiante.  

 

2.           Sinopse das temporadas

Para facilitar a compreensão dos temas históricos e anacronismos que serão comentados adiante, neste tópico foi apresentado uma sinopse de cada temporada, destacando os acontecimentos centrais.

 

Temporada 1 (2013): inicia-se apresentado Ragnar, Lagertha, Rollo, Floki, Bjorn e outros personagens que vivem em Kattegat, no sul da Noruega. A temporada foca no início das incursões vikings à Inglaterra, inclusive dando destaque a pilhagem do Mosteiro de Lindisfarne, onde Ragnar conhece o monge Athelstan (George Blagden), personagem importante nas primeiras temporadas. Depois segue as desavenças entre Ragnar e o jarl Haraldson (Gabriel Byrne).

 

Temporada 2 (2014): a narrativa salta alguns anos, já mostrando Ragnar casado com a princesa Aslaug (Alyssa Sutherland), tendo novos filhos: Ubbe, Sigurd, Ivar e Hvirstek. Lagertha e Bjorn retornam para Kattegat, e Rollo começa a tramar contra o irmão. Neste ponto o foco continua sendo os ataques aos reinos anglo-saxões, já apresentando reis históricos como Egberto de Wessex (Linus Roache) e Aella da Nortúmbria (Ivan Kaye). À medida que a fama de Ragnar cresce, isso atraí novos inimigos, incluindo o rei Horik da Dinamarca (Donal Logue).

 

Temporada 3 (2015): a terceira temporada muda o foco da narrativa, deixando os anglo-saxões e centrando-se agora no Império Carolíngio na França. Tendo como destaque o cerco à Paris e a ascensão de Ragnar como rei de Kattegat.

 

Temporada 4 (2016-2017): a quarta temporada se apresenta como um divisor, encerrando a fase 1 e iniciando a fase 2 da série. A primeira parte dá continuidade aos planos de Ragnar, agora apoiado por novos aliados como Haroldo Cabelo Belo (Peter Franzén), para empreender novo ataque à Paris. Mas com o fracasso do segundo cerco, Ragnar abandona o trono e some. Anos depois ele retorna velho e moribundo, reencontrando seus filhos com Aslaug que agora estão adolescentes. Bjorn realiza sua viagem ao Mediterrâneo. A temporada termina com a morte de Ragnar Lothbrok.

 

Temporada 5 (2018-2019): a temporada inicia-se com a vingança dos Ragnarson, que teria dado origem a invasão do Grande Exército Pagão. A primeira parte centra-se no desenrolar desse conflito vingativo. A segunda parte já apresenta os confrontos dos Ragnarson e as ambições de cada um. Floki inicia a colonização da Islândia.

 

Temporada 6 (2019-2020): a primeira parte continua as disputas entre Bjorn, Ivar e Haroldo Cabelo Belo pela Noruega, como também apresenta a despedida de Lagertha. No entanto, a novidade está no novo núcleo dramático, os rus de Kiev, apresentando o conflito dos príncipes Oleg (Danila Kozlovsky) e Dir (Lenn Kudrjawizki), os quais disputam a guarda do jovem príncipe Igor (Oran Glynn O'Donovan), herdeiro do trono. Entretanto, Ivar incentiva Oleg a invadir a Noruega, acreditando que poderia assim reassumir o trono de Kattegat. A segunda parte conclui o núcleo dos rus, e divide-se em acompanhar a jornada de Ubbe para descobrir novas terras, e a escolha de Ivar, Hvristek e Haroldo de invadir Wessex.

 

3.           Acontecimentos históricos e anacronismos

 

Como dito no início da resenha, alguns dos fãs passaram a defender que Vikings era uma série histórica, retratando inclusive acontecimentos históricos de forma fidedigna. No entanto, isso é um equivoco comum que normalmente o público que consome essas produções cinematográficas, televisivas, literárias e digitais possuem. Tais pessoas consideram que somente pela condição de uma produção ser baseada em fatos históricos, isso lhe forneceria um “atestado” de que quase tudo apresentado naquela narrativa, realmente ocorreu.

Produções de dramas históricos ou romances históricos no caso da literatura, seguem a prática da verossimilhança, ou seja, conceder elementos narrativos que transmitam a ideia de que aquele enredo, poderia ter acontecido daquela forma. Que os personagens históricos ali retratados teriam aquelas atitudes. E essa prática é antiga na literatura e no cinema. E no caso de produções sobre temática medieval, existe o termo medievalidade, que é usado para se referir ao imaginário contemporâneo que se possui da ideia de como seria a Idade Média.

A medievalidade dependendo da forma como é utilizada nas produções artísticas e midiáticas, pode seguir um caminho mais voltado para a verossimilhança, como o caso do livro Devoradores de mortos (1976) do Michael Crichton, em que o escritor baseado no relato de Ahmed ibn Fadlan – do qual abordaremos adiante –, inventou uma narrativa de aventura, vendo o livro como se fosse uma “tradução de viagem real”. Por outro lado, há vários casos em que a medievalidade segue uma tendência mais voltada para o fantástico, retratando grandes castelos, cavaleiros de armaduras brilhantes, feiticeiros, bruxas, magia, monstros, ou adotar o estereótipo de “idade das trevas”.

Macedo e Mongelli (2009) assinalam que as produções cinematográficas sobre a Idade Média, devam ser consideradas antes de tudo como produtos de entretenimento. Neste aspecto, os autores citam Marc Ferro, o qual assinalava que um filme histórico não é a representação do passado em si, mas a forma como interpretamos o passado.

Com isso, a série Vikings apresenta essa característica de medievalidade, condição essa que ela adota estereótipos dos quais comentaremos alguns adiante, utiliza-se de anacronismos, e até mesmo inseres elementos fantásticos como a aparição de monstros e de divindades, mesmo que sejam casos pontuais.

E a respeito dos anacronismos, o seriado ficou notável por mesclar fatos históricos ocorridos nos séculos VIII, IX e X. Ou seja, Hirst aglutinou de forma engenhosa e com bastante liberdade criativa, três séculos de história, retratando seus acontecimentos num período de 30-40 anos durante o século IX, época em que a trama da série se passa.

A respeito dos fatos históricos apresentados, estes seguem três condições: personagens, batalhas e viagens.

 

3.1       Personagens históricos

No caso dos personagens que existiram, estes foram retratados principalmente na figura dos monarcas e governantes, dividindo-os nos núcleos anglo-saxão, franco, escandinavo e eslavo.

Entretanto, a série foca-se principalmente nos monarcas anglo-saxões como Egberto de Wessex (770-839), Etevulfo (795-859) e Alfredo, o Grande (849-899). Além deles citamos Aella II da Nortúmbria (?-867), o qual pouco se sabe sobre seu reinado e nada sobre sua vida. E Judith de Flandres (844-870), primeira esposa de Etevulfo, que na série possui papel importante na temporada 3. Outros nobres anglo-saxões que existiram também são citados, mas possuem participação menor na trama.

Por sua vez, no núcleo franco, temos o rei Carlos, o Simples (879-929). Aqui acrescenta-se o rei Odo (c. 852-898), que no seriado foi retratado como Conde Odo, ignorando inclusive o fato de que ele governou antes de Carlos, o Simples. Destaca-se também a princesa Gisla (Morgane Polanski), que se torna esposa de Rollo (c. 860-932), que na série tornou-se o irmão de Ragnar Lothbrok, embora que historicamente ele tenha sido o primeiro conde da Normandia, algo retratado na quarta temporada.

Do núcleo dos rus temos os príncipes Oleg de Kiev (c. 845-912) e Igor I (c. 877/888-945), os quais aparecem na sexta temporada, a qual aborda a disputa de poder de Oleg com seus irmãos, para manter sua autoridade sobre o jovem príncipe Igor, que era o herdeiro de fato do trono de Kiev. Nessa temporada, Oleg é retratado como um homem ambicioso, manipulador e megalomaníaco. No entanto, sublinha-se que os personagens deste núcleo são os que apresentam mais diferenças com suas contrapartes históricas, já que o enredo do seriado alterou vários aspectos desse conflito.

 

Já no núcleo escandinavo, na segunda temporada apareceu o rei Horik da Dinamarca. Aqui temos um problema. Houve dois monarcas com este nome, e o da série mescla a história deles dois. O segundo personagem histórico deste núcleo é o rei Haraldo Cabelo Belo (c. 850-943), o qual teve sua história totalmente alterada no seriado. Já os outros reis noruegueses que participam da eleição do único rei geral, os jarlar dinamarqueses e o rei Olavo da Suécia, são personagens fictícios.

Apresentado os principais personagens históricos que aparecem na série Vikings, embora haja outros com menor destaque, comentaremos um pouco sobre as batalhas, outro tema recorrente do seriado.

 

3.2       As batalhas:

 

Primeiro é preciso salientar que muitas das batalhas retratadas na série são ficcionais, mesmo que algumas citem localidades, como conflitos ocorridos na Inglaterra e na Noruega, no entanto, somente algumas destas batalhas realmente foram inspiradas em acontecimentos históricos, como segue a lista abaixo.

Ataque ao mosteiro de Lindisfarne (793): é retratado no começo da primeira temporada e é usada pela historiografia britânica como marco para o início da Era Viking. Não há descrições desse conflito, apenas informa-se que os vikings invadiram, saquearam, mataram os monges e incendiaram o local. Algo que pode ser lido nas Crônicas Anglo-saxãs (Chronicle Anglo-saxon). Na série o saque a Lindisfarne é a primeira vitória de Ragnar, marcando o início da sua fama.

Cercos à Paris (845, 856-857, 888): historicamente há registros de três principais ataques realizados a capital carolíngia. No seriado tais acontecimentos são retratados nas temporadas 3 e 4. No entanto, Michael Hirst baseou-se nestes três cercos para criar sua própria versão. Por exemplo, no cerco de 845 diz que Ragnar teria participado dele, porém, Bjorn teria participado do cerco de 856-857. Além disso, dois jarl que aparecem no seriado, Sigurd e Gorm, participaram do cerco de 888, o qual inclusive foi neste que o personagem Conde Odo vivenciou. Por sua vez, o rei Carlos, o Simples que aparece na série, era criança durante o terceiro cerco. No entanto, a escolha pelo monarca se deve a condição que foi ele quem ofereceu um acordo para Rollo se tornar seu aliado, lhe concedendo o título de conde. Algo retratado na série.

 

 


Figura 3: Cena da terceira temporada mostrando o cerco viking na cidade de Paris. Historicamente a capital francesa não teria essa grande catedral de pedra e proeminentes fortificações no século IX.

 

Início da invasão do Grande Exército Pagão (866): a invasão foi o estopim para um período de doze anos de conflitos até que o Danelaw fosse formalizado. Na série apresenta-se apenas o início deste conflito, onde os Ragnarson e seus aliados invadem a Ânglia Oriental para dar início a vingança pela morte de Ragnar Lothbrok. Tal informação é citada nas crônicas e sagas sobre o personagem, mas historicamente não se sabe os motivos por essa grande empreitada. Além disso, outras batalhas que são retratadas na quinta temporada, são fictícias, apesar de ser informado que fariam parte dos conflitos iniciados da invasão.

Captura de York (867): a tomada desta cidade esteve ligada as campanhas do Grande Exército Pagão. No seriado isso é mostrado com a derrota do rei Aella II e depois com Ivar (Alex Høgh Andersen) disputando o controle da cidade com Haroldo Cabelo Belo e outros chefes. Historicamente não se sabe detalhes sobre como essa cidade foi conquistada, mas York se tornou um importante polo manufatureiro e centro comercial sob domínio nórdico, tornando-se capital de um novo reino. No entanto, tais aspectos não aparecem no seriado.

 

3.3       Expedições:

 

Expedição de Bjorn e Halfdan (859-860): poucas crônicas mencionam este relato, havendo dúvidas se o Bjorn mencionado seria Bjorn Flanco de Ferro ou outra pessoa. As informações a respeito são escassas e mencionam ataques a Al-Andalus (região espanhola sob domínio mouro), além de possíveis ataques ao sul da França e noroeste da Itália. No seriado mostra-se a expedição na quarta temporada, atacando uma cidade não identificada, em Al-Andalus e depois Bjorn e os demais viajam até Creta, ficando à mercê do emir Zidete e depois viajam para o norte da África, como parte de uma comitiva do emir. Aqui observa-se que vários aspectos dessa expedição foram inventados para o seriado.

 

Descoberta da Islândia (c. 860-870): não se sabe exatamente quando a Islândia foi descoberta, mas data de 874 relatos de colonos ali já vivendo. No seriado é creditado a Floki essa descoberta e o início da colonização. No Landnámabók (livro sobre a colonização islandesa), é informado que a ilha teria tido três descobridores, sendo um deles Floki Vilgerdarson. Entretanto, não se sabe se tais descobridores realmente existiram e quando realizaram suas descobertas. No caso da série, o personagem de Floki é inspirado em Vilgerdarson.

 

Descoberta da Groenlândia (c. 985): historicamente é creditado a Eric, o Vermelho a descoberta desta ilha e o início de sua colonização, algo ocorrido por volta de 985. Embora haja margem para que Eric tenha se baseado em relatos de outros navegadores para poder chegar à Groenlândia, a série Vikings tira proveito disso. No seriado um misterioso homem chamado Othere (Ray Stevenson), que já foi guerreiro e virou missionário cristão, diz que avistou terras no oeste, algo que atiça a curiosidade de Ubbe (Jordan Patrick Smith). E este decide ir atrás deste lugar. Entretanto, a expedição se perde e acaba encontrando por acaso a Groenlândia, dando início a sua colonização que se mostra problemática devido à falta de alimentos, água e recursos. Embora que numa tomada aérea mostre cabanas e casas já erguidas após algumas semanas, o que contradiz a ideia de inviabilidade de assentamento naquele lugar. Isso é retratado na parte 2 da sexta temporada.

 

Descoberta de Vinland (c. 1000): Nas últimas décadas do século X, navegadores partindo da Groenlândia relataram terem avistado terras a oeste da ilha. Esses lugares foram chamados de Helluland, Markland e por fim Vinland. No caso de Vinland é creditado a Leif Ericsson, o filho mais velho de Eric, o Vermelho, a descoberta daquela terra e o início de um assentamento ali estabelecido por volta do ano 1000. No entanto, no seriado isso tudo é ignorado. Novamente Ubbe e sua expedição que estava perdida, chega por acaso a costa canadense. O personagem de Othere diz que aquele lugar era a terra verdejante que ele tinha avistado anteriormente. Assim, Othere torna-se um dos navegadores que “descobriram” aquele “novo mundo”. Nesta parte da série, apresentada nos últimos episódios da sexta temporada, temos os vikings em contato com os indígenas (skraelings).  

 

 


Figura 4: Cena da sexta temporada, apresentando os vikings cercados por indígenas na América do Norte.

 

4.           Estereótipos e ficção

 

Em algumas entrevistas para as primeiras temporadas, Michael Hirst disse que quando escreveu Vikings quis retratar a cultura e sociedade deles de forma historicamente mais precisa, evitando reproduzir estereótipos clássicos que existem desde o século XIX. De fato, a primeira temporada contou com a consultoria do arqueólogo Neil Price.

Apesar disso, a primeira temporada apresenta problemas quanto ao vestuário, armamento, casas, objetos e cultura material. Embora Price tenha fornecido consultoria, a produção da série seguiu com sua liberdade criativa, alterando elementos para encaixá-los melhor numa estética mais adequada para o entretenimento. Na edição 10 do Notícias Asgardianas, há algumas análises a respeito. O link está no final do texto.

 

a)          Vestuário e aparência

 

Embora alguns fãs citem a série como referência para se fazer roupas, acessórios e habitações, é preciso ter cautela ao fazer essa recomendação. Nem tudo que foi mostrado realmente é preciso mesmo. Vikings é um seriado voltado para o entretenimento.  

Neste caso, realmente não se ver elmos com chifres, crânios como taças, pessoas usando roupas de origem greco-romana, ou todo homem sendo barbudo. Mas embora o seriado conseguiu evitar estes estereótipos, ele adotou outros, como estilos de corte de cabelo inexistentes, uso de tranças nagô e não de origem nórdica, uso de tatuagens, algo inclusive que gera dúvidas. Historicamente pouco se sabe sobre as tatuagens e não há imagens de como elas seriam. Logo, as tatuagens vistas no seriado são todas ficcionais. Além disso, não sabe se todas as pessoas usavam tatuagens ou havia restrições para isso.

 

 

Figura 5: O ator Peter Franzén com o visual de Haroldo Cabelo Belo. Na série o personagem é marcado por suas tatuagens no rosto.

 

Além das tatuagens chama atenção também o uso de delineadores para os olhos e pinturas faciais. A presença dos delineadores é mais comum em personagens como Floki, ou nas mulheres como Lagertha, Torvi, Astrid, entre outras guerreiras. O que passa a falsa ideia de que seria algo real da época. Além desse delineador, em alguns episódios temos homens e mulheres usando pintura facial com cores branca, vermelha, preta e até azul, como se fossem pinturas religiosas ou militares. Sabe-se que alguns povos germânicos e celtas faziam uso de pinturas marciais, mas entre os vikings isso não era prática comum.

A vestimenta nem sempre é algo preciso. Em geral os vikings ao guerrear, usavam cota de malha, gibões e túnicas acolchoadas. Mas na série em alguns momentos vemos eles usando armaduras com placas de metal, couro endurecido, armaduras com cota de malha e no caso das mulheres, elas aparecem usando roupas justas, delineando suas formas, algo visto principalmente com Lagertha e Torvi (Georgia Hirst), as guerreiras de maior destaque na produção.  

 

 

Figura 6: A atriz Katheryn Winnick, vestida como Lagertha. Nota-se o uso de uma armaura estilizada e fictícia.

 

Além desse vestuário bélico impreciso, em algumas temporadas em que havia episódios durante o inverno, via-se homens e mulheres usando trajes comuns, como se não estivesse fazendo frio. Isso era mais comum com as mulheres, as quais os vestidos que usavam dentro de casa, eram o mesmo que usavam na rua. Além disso, temos cenas de homens sem camisa ou usando roupas de períodos quentes, durante os meses de frio.

O figurino dos anglo-saxões, francos e rus também não está isento de anacronismos e alterações deliberadas para efeitos estéticos. Por exemplo, a corte carolíngia apresenta uma pompa somente vista a partir do século XII, o que inclui o castelo onde vive o imperador Carlos, Simples. Sendo que no século IX, não havia castelos como aquele. Já a corte dos rus, também apresenta trajes bastante belos e luxuosos, de estilos não comuns a época.

 

 

Figura 7: O ator Danila Kozlovsky como o príncipe Oleg. Embora seu traje seja visualmente belo, mas para o século IX, os nobres rus usavam vestes de padrão liso e com mais cores. A adoção deste visual é proposital para apresentar a corte de Kiev como luxuosa.

 

b)         Práticas religiosas

 

Outra condição em que estereótipos são bem fortes, além do visual dos personagens, se encontra em suas práticas religiosas. A chamada Religião Nórdica Antiga não possuía dogmas e doutrinas, e as menções aos seus ritos, crenças e práticas são sucintas não havendo muitos detalhes de como sacrifícios, cerimônias, ritos, consagrações, etc. eram realizados.

Entretanto, no seriado duas coisas chamam atenção: o visual sombrio dos sacerdotes, retratados como carecas e usando uma pesada maquiagem branca e preta, trajando longas túnicas; algo inspirado em filmes antigos sobre vikings e outros povos “bárbaros”. Este visual aparece na primeira temporada e é mantido pelo restante da série. E essa maquiagem também foi compartilhada por outros personagens como Lagertha, Aslaug, Torvi e Ivar, os quais em algumas cerimônias aparecem com os rostos maquiados ou até lambujados com sangue.

 

 

Figura 8: O personagens Ivar, Sem-Ossos (Alex Hogh Andersen) e Freydis (Alicia Agneson) durante uma cerimônia na quinta temporada, onde Ivar é reconhecido como um deus. Além do visual sombrio do casal, nota-se que os sacerdotes atrás deles, trazem maquiagem similar.

 

Já a segunda característica está presente no uso recorrente e excessivo de sangue nos ritos. Em diferentes ritos, vemos sacerdotes usando sangue para benzer ou os personagens bebendo sangue, algo que invoca o estereótipo do viking bárbaro. E isso é tão marcante na série, que até mesmo em cerimônias de coroação, casamento, aliança e festivais, aparece o uso de sangue como se fosse elemento comum, o que historicamente não era. Embora os vikings praticassem sacrifício de animais e até de humanos, não significa que em todos seus ritos e cerimônias houvesse sangue.

 

Figura 9: Cena da terceira temporada, mostrando Lagertha passando sangue em seu queixo e garganta, durante o sacrifício de uma vaca. Atrás dela nota-se uma estátua de alguma divindade, com a face salpicada com sangue.

 

Um terceiro aspecto diz respeito ao Vidente (John Kavanagh), o qual aparece em todas as temporadas. Ele é bastante lembrado por sua aparência sombria, com sua pele pálida, lábios roxos, ser cego e ter um rosto deformado. Nas sagas e Eddas geralmente a vidência era realizada por mulheres, as advinhas (völva). Todavia, para a série escolheu-se colocar um homem, e concedendo a ele o estereótipo de ser uma pessoa misteriosa e sinistra. Condição essa também baseada em produções cinematográficas, as quais costumam associar a adivinhação com a bruxaria ou a “magia negra”.  

Na primeira temporada e segunda temporadas destaca-se o templo de Gamla Uppsala. O qual se conhece menções pontuais sobre ele, sendo uma das mais famosas, descritas pelo clérigo Adam de Bremen, que nunca visitou o lugar. Legando um relato impreciso e influenciado por outros referenciais. Apesar disso, na série a produção tomou alguns elementos da descrição de Adam para retratar este templo, como a presença das estátuas de Odin, Thor e Freyr, mesa de sacrifício, altares, árvores em volta com animais e pessoas enforcadas. E acrescentando-se algumas liberdades criativas para se pensar como seria o rito de sacrifício humano, que é retratado no seriado. Embora não haja descrições detalhadas sobre isso, sabe-se que os sacrifícios humanos poderiam em alguns casos serem voluntários, onde alguém se oferecia para o bem da comunidade.

Um quinto aspecto a ser tratado é quanto ao Cristianismo. Ao longo da série percebemos o embate dos vikings em adotar a nova fé ou manter-se fiel aos seus deuses. Em muitos casos a série tende a mostrar uma grande resistência a conversão e trata-la como se fosse algo apenas estrangeiro, onde os nórdicos somente tinham contato com essa religião ao visitarem a Inglaterra ou a França. Somente na temporada seis, há menção de que a Dinamarca estava sendo cristianizada.

De fato, a Dinamarca foi o primeiro reino nórdico a declarar o cristianismo como religião oficial. Todavia, missionários já frequentavam a Noruega e Suécia no século IX, período no qual a narrativa de Vikings, ocorre. Porém, por escolha de roteiro, este missionarismo foi removido destes territórios, dando a impressão de que o cristianismo não tivesse ainda chegado nestas terras.

Outro aspecto a ser mencionado, diz respeito ao Anjo da Morte (Karen Conell), sacerdotisa que aparece na sexta temporada, que é incumbida de sacrificar uma donzela de escudo para acompanhar sua mestra Lagertha. A ideia por trás dessa sacerdotisa sinistra e do sacrifício foi retirada diretamente do relato de Ahmed ibn Fadlan, que relatou no século X, ter encontrado vikings na região do Volga (hoje sul da Rússia), na ocasião ele testemunho o funeral de um chefe.

 

 

Figura 10: A atriz Karen Conell caraterizada como o Anjo da Morte, na sexta temporada da série.

 

No caso, Hirst pegou vários elementos desse relato para criar sua versão sobre um sacrifício humano. Mas embora ele tenha se baseado numa fonte histórica, é preciso ter cautela, pois Ahmed desconhecia as práticas funerárias nórdicas, inclusive as considerando bárbaras e desrespeitosas. O próprio termo “anjo da morte” foi dado por ele. Além disso, no seriado, a sacerdotisa visualmente lembra o aspecto de uma bruxa, novamente um estereótipo associado aos sacerdotes nórdicos e até de outros povos europeus, pois séries que retratam celtas e germânicos, tendem a seguir esse estereótipo também.

 

c)           Ser viking

 

A partir da terceira temporada começou a se tornar mais habitual que os escandinavos se referissem como sendo vikings. Naquela época a palavra viking era usada para se referir a ocupação de pirataria, onde os homens se lançavam ao mar em busca de locais para serem saqueados. O problema é que não se sabe se o uso desse termo era regular ou havia prerrogativas para ser usado.

Na série o termo viking é usado em alguns contextos como “povo”, no entanto, os anglo-saxões se referiam a eles normalmente como daneses. Já os francos os chamavam de normandos. Os eslavos e bizantinos se referiam a eles como rus ou varegues. O emprego da palavra viking no sentido de povo é uma prática posterior.

Outro aspecto é que tanto homens quanto mulheres na série dizem ser vikings, aqui no sentido de serem guerreiros. No entanto, nem todo guerreiro necessariamente seria um viking, já que eles não estariam indo praticar ações de pirataria. Além disso, a palavra é até usada como elogio por alguns personagens. Por conotar uma espécie de “classe”.

 

d)         Donzelas do escudo

 

Este é um tema que gera polêmica também. As donzelas de escudo (skjaldmö) geralmente são citadas em sagas, mas não aparecendo em grupos, geralmente atuam sozinhas como Lagertha, Hervor e Brunilda. São menções breves sobre estas guerreiras, as quais dispomos. Além disso, salienta-se que o fato de serem donzelas, significava que eram virgens e solteiras. A própria Lagertha quando se casa com Ragnar, como relatado no Gesta Danorum, deixa de ser uma donzela de escudo.

 

 

Figura 11: Lagertha e suas donzelas do escudo em cena da quarta temporada.

 

Todavia, na série, Hirst e a produção transformaram essas mulheres que aparecem em sagas, como sendo uma prática comum. Já na segunda temporada observa-se Lagertha acompanhada de sua guarda formada apenas por mulheres, algo que se torna recorrente nas temporadas seguintes. Isso levou a falsa ideia de que realmente haveria tropas femininas, embora que historicamente não haja comprovação disso. E até as crônicas históricas, escritas por anglo-saxões e francos, também nada relatam a respeito de haver mulheres no campo de batalha.

 

e)          Bigamia

 

Na temporada 6, Bjorn e Haroldo Cabelo Belo casam-se com duas esposas e isso é aceito como hábito comum na trama da série. Historicamente não seria assim, pois a bigamia e poligamia eram ilegais entre os nórdicos. Um homem ou mulher poderia manter amantes, mas jamais poderiam ter mais de um cônjuge. Logo, a série tomou liberdade em criar essa condição que favorece uma subtrama dessa temporada, onde mostra-se a disputa de poder de uma das esposas contra a outra.

 

f)           Rainhas governando sozinhas

 

Na série temos o caso de Aslaug, Lagertha e Ingrid como governantes viúvas, as quais inclusive se negam a casar-se novamente para não terem que dividir o trono com seus novos maridos. E no caso de Aslaug, essa até mesmo negou-se passar o trono para um dos filhos, mesmo que pudesse agir como corregente. Já Lagertha cogitou oferecer o trono a Bjorn, mas este não estava interessado em governar no início.

Na História não se conhece relatos de que alguma rainha tenha feito isso nos reinos nórdicos, já que a política era um campo predominantemente masculino, e a sucessão real nem sempre era hereditária, havendo casos de complôs para se derrubar monarcas e assumir o trono.

Por tal viés, dificilmente mulheres governariam reinos sozinhas, pois elas seriam derrubadas imediatamente. Além disso, haja vista que as rainhas e esposas de jarl poderiam até ter tido algum grau de autoridade, mas respaldado por seus maridos ou filhos, não por elas mesmo.

O que se observa na série é uma escolha de empoderamento feminino para a construção do enredo. Em que personagens como Lagertha, Aslaug, Ingrid, mas também Astrid, Gisla, Judith e Freydis, todas são retratadas com algum grau de influência, manipulação e controle sobre seus maridos, filhos ou na sociedade. Algo recorrente ao longo da série.

 

g)          Homossexualismo

 

Esse é um tema pouco abordado na série, basicamente o único caso explícito mesmo foi a relação de Lagertha com Astrid (Josefin Asplund), cujo relacionamento ocorre entre as temporadas 4 e 5. Astrid que é uma das donzelas de escudo sob comando de Lagertha, apaixona-se por sua senhora e ambas mantém um relacionamento público.

 

Historicamente isso dificilmente teria ocorrido, pois o homossexualismo entre os vikings era tabu. Nas sagas e Eddas, a homossexualidade era tratada como deboche. Inclusive fator de menosprezo. O próprio Loki ofende Odin e Bragi, fazendo insinuações sobre sua masculinidade, pois Odin praticava seidr escondido, magia associada apenas as mulheres, e Bragi era considerado afeminado e covarde como uma mulher.

Homens que praticassem seidr também era algo mal visto. Já em leis posteriores a Era Viking, havia leis que proibiam comportamentos desviantes, em que homens não poderiam agir de forma afeminada e mulheres não deveriam agir como homens. Sendo assim, naquela época e contexto, um homossexual e bissexual, teria que manter oculto sua orientação sexual para não sofrer represálias da sociedade, diferente do seriado, onde uma rainha mantém publicamente seu relacionamento com uma amante.

 

h)         Os Rus

 

Se os anacronismos entre os anglo-saxões e francos podem até passar despercebidos para espectadores menos familiarizado com aquelas culturas, não é o mesmo caso que ocorre com os rus. Mesmo o espectador que conheça pouco a respeito, notará certas estranhezas. A começar pelo fato que as cidades de Kiev e Novgorod aparecem na maioria das vezes durante um inverno pesado, um estereótipo associado com a Rússia. E o interessante que enquanto neva forte nestas cidades, nas cenas ocorridas na Noruega, no mesmo período, nem aparece neve. Um relapso da produção.

Os soldados do príncipe Oleg, usam trajes orientais, que lembram vestes dos tártaros e mongóis. Diferente da cota de malha, gibão e elmos de ferro. Sobre isso, tais guerreiros usariam trajes de forma bem parecida com outros eslavos, germânicos, nórdicos e francos.

 

 

Figura 12: Embora lembrem guerreiros mongóis ou tártaros, este é o visual dos guerreiros rus na série Vikings.

 

Outro marco bem caricato desse núcleo, diz respeito ao passeio de balão que Ivar e Oleg realizam. A cena bastante exagerada serve de incremento para mostrar a megalomania do personagem de Oleg. Se os monarcas anglo-saxões e franco foram apresentados de forma mais comedida, o príncipe rus é o oposto disso. Ele é exagerado, temperamental, sarcástico.

Enquanto a cidade de Kiev é apresentada como uma urbe maior, densamente construída, povoada e cercada por muralhas, a cidade de Novgorod é retratada como uma vila, algo impreciso, pois Novgorod era uma importante cidade no norte europeu, tendo sido tão grande quanto a própria Kiev.

Outro aspecto a ser destacado deste núcleo da sexta temporada é o fervor religioso. Na História, Kiev somente se tornou cristã no final do século X, pois as tentativas anteriores não surtiram efeito imediato. Porém, na série, Oleg e os habitantes da cidade são bastante católicos, inclusive tem uma cena que um bispo vestido de Jesus Cristo, carrega uma cruz, enquanto se dirige a cidade para celebrar a Páscoa. E a população se ajoelha e começa orar para recebê-lo. Nem nos núcleos anglo-saxão e franco, os quais eram povos cristianizados a mais tempo, essa devoção é notada.

 

i)           O sobrenome Lothbrok

 

Em Vikings, a palavra Lothbrok ou Loðbrok é utilizada como sobrenome, condição essa que desde a primeira temporada há momentos que Rollo é chamado Rollo Lothbrok. Posteriormente, vemos isso com Bjorn e seus irmãos, que também são referidos como “os Lothbrok”.

No entanto há dois problemas quanto a isso: primeiro, Lothbrok é um epíteto, o qual significa “calças peludas”. De acordo com a narrativa encontrada no Gesta Danorum, Ragnar ganhou esse epíteto por ter lutado contra uma serpente gigante, como parte do desafio para poder se casar com Thora Borgarhjortr, que era filha de um rei. Para poder enfrentar a serpente que além de grande era venenosa, Ragnar usou calças peludas, as quais lhe protegeram as pernas das picadas do animal, permitindo que ele pudesse matá-lo. Por tal façanha, o epíteto lhe foi concedido e é retomado nas sagas e crônicas, as quais nem sempre explicam o motivo deste nome.

Segundo, os sobrenomes nórdicos até hoje normalmente são patronímicos, em que se utiliza o nome do pai somado aos sufixos son, sen, dóttir e daugther. Sendo assim, os sobrenomes de Bjorn, Ivar, Ubbe, Hvirstek e Sigurd deveria ser Ragnarson. Logo, na série, Michael Hirst tomou a liberdade literária de empregar Lothbrok como um nome de família.

 

j) Ritos fúnebres

 

Ao longo das temporadas encontramos representações de diferentes práticas funerárias, algumas precisas e outras alteradas para o drama. Na primeira temporada temos alguns guerreiros sepultados numa cova coletiva, com suas armas e escudos, e até acompanhado da cabeça de um cavalo. Em termos arqueológicos, túmulos assim foram achados. Além disso, a primeira temporada também retrata a prática da cremação, algo que realmente era realizado pelos nórdicos.

Entretanto, temos o caso do clássico navio pegando fogo, algo marcante no cinema, embora não se saiba se era uma prática tão comum, devido à falta de vestígios arqueológicos e relatos históricos. Apesar de que Ahmed ibn Fadlan descreveu uma cremação num navio. Na série, o uso dessa prática funerária é visto entre alguns poucos personagens, geralmente chefes ou governantes, como Aslaug e Lagertha.

Outra prática funerária interessante é o sepultamento de Helga (Maude Hirst), a esposa de Floki, que ocorre na quarta temporada. Nesta cena mostra-se a preocupação do marido ao cavar um túmulo, arrumar o corpo da esposa e sepultá-la com seus pertences, como um pente e uma faca. Nos túmulos escavados, realmente era hábito dos nórdicos inumarem seus mortos com seus pertences pessoais ou presentes. Quanto mais rico fosse a pessoa, maior quantidade de objetos haveria no túmulo, e até mesmo a inclusão de móveis, um barco, carroça, animais e escravos sacrificados.

O quarto exemplo funerário diz respeito ao uso de uma tumba. Os vikings fizeram uso de tumbas, que geralmente são montículos de terra e pedra, erguidos sobre os túmulos. Embora há casos de tumbas escavadas, que permitem entrar dentro dela, para se deixar oferendas aos mortos, além fazer orações. Na série, na sexta temporada, optou-se pela tumba construída, que permite o acesso interno. No entanto, a produção tomou suas liberdades criativas.

A tumba de Bjorn que é apresentada na sexta temporada, possuí uma forma abobadada, o personagem foi empalhado junto ao seu cavalo, prática inexistente na época, além de que no teto da tumba há pinturas retratando ele, o pai e outros guerreiros. Todavia, as tumbas nórdicas não possuíam pinturas, pois eram construções simples. Além disso, a tumba mostrada no seriado, possui desenhos que não condizem com o estilo da arte viking. Apesar dessas mudanças para a série, ainda assim, a trama apresenta uma prática realizada pelos vikings, o culto a memória dos mortos.  

 


 
Figura 13: A tumba de Bjorn Flanco de Ferro na sexta temporada. Observa-se que ele e seu cavalo foram empalhados e as pinturas no teto, são de estilo fictício, não correspondendo aos estilos da Era Viking.

 

j)           O berserkr

 

Na quarta temporada, Bjorn Flanco de Ferro, enquanto retirou-se para reflexão na floresta, é confrontado em dois episódios por um urso. No entanto, não se tratava de um animal comum, mas de um berserkr transformado. Na série dois inimigos de Bjorn contratam um mercenário que é berserkr, o qual não tem nome, e este é enviado para assinar o primogênito de Ragnar. No entanto, após derrotar o urso, Bjorn descobre que ele era um berserkr. O personagem inclusive chama atenção também pela condição de praticamente não falar, e em dados momentos grunhir, como se fosse um brutamontes estereotipado.

Historicamente existem poucos relatos sobre os bersekir, os quais geralmente aparecem em sagas que mesclam acontecimentos reais e fictícios. Tais guerreiros são lembrados por serem possuídos por um furor animal, que os tornavam bastante furiosos e perigosos. Em diferentes narrativas os berserkir as vezes são tratados como párias, homens agressivos, descontrolados e perigosos, pois em algumas histórias estes guerreiros em um ataque de fúria, mataram parentes ou aliados.

 

 

Figura 14: O ator Robert Follin caracterizado como o berserkr na quarta temporada.

 

Embora a figura do bersekr seja hoje em dia considerada mais como uma invenção literária, pelo menos no quesito de seu visual, como um homem usando pele de urso, lutando com pouca roupa ou nu, e mordendo seu escudo, as sagas não relatam que tais guerreiros se transformassem em ursos, embora que a Saga de Hrolf Kraki, cite um berserkr chamado Böđvar Bjarki o qual controla um urso e envia este para a batalha. Provavelmente a partir deste relato, Hirst teve a ideia para o seriado, na luta de Bjorn e o urso.

 

Considerações finais

Apesar das imprecisões históricas, anacronismos, decisões questionáveis no roteiro, a série Vikings é um marco da teledramaturgia recente, pois graças a ela a temática viking se popularizou bastante na televisão, pois antes disso não havia seriados do tipo, sendo televisionados. Mesmo as produções britânicas e suecas dos anos 1990 e 2000, eram praticamente desconhecidas fora de seus países. Dessa forma, Vikings conseguiu atrair um público interessado na temática, abrindo caminho para outras séries como a adaptação das Crônicas Saxônicas, em Last Kingdom (2015-presente) e a série de comédia Vikingane (2016-2020).

Mesmo que alguns leitores possam indagar que a influência foi pouca, pois somente duas séries sobre vikings surgiram desde 2013, o que não seria evidência para a popularidade do tema, porém, basta conferir as produções cinematográficas, onde se verá que entre 2013 e 2019, houve vários filmes lançados sobre esta temática, onde vários apresentam influências da série Vikings. No site do IMDb (Internet Movie Database) uma rápida pesquisa pelo título contendo a palavra viking, apresentará uma lista com várias produções a respeito.

Aqui destaca-se que Vikings influenciou não apenas a disputa por esse nicho temático, mas influenciou o vestuário, aparência, ambientação e tramas das produções cinematográficas, como também produções nas histórias em quadrinhos e nos videogames, como no caso do jogo Assasssin’s Creed: Valhalla (2020), o qual apresenta influências estéticas da série, visto no uso de tatuagens, vestimenta, presença de mulheres guerreiras, estilos de corte de cabelo, barba e tranças.

Sublinha-se também que devido a popularidade da série Vikings, em 2019, Michael Hirst anunciou uma nova série a respeito, intitulada Vikings: Valhalla, a qual se passará no século XI, abordando personagens históricos como Leif Ericson, Canuto, o Grande, Olavo II da Noruega, entre outros. O que mostra que mesmo após sete anos, o tema ainda não se esgotou e possui um público interessado por novas narrativas.

 

 

Bibliografia:

 

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 Leia também:


Cronologia histórica da série Vikings