O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Reconstrucionismo histórico e Arqueologia experimental da Era Viking





A atuação conjunta do reconstrucionismo histórico e Arqueologia experimental da
Era Viking



Enrico Dalmas Baggio Di Gregorio
Graduando em Arqueologia pela UERJ

Resumo
: O trabalho  visa  desenvolver  o  elo  existente  entre  a  reconstrução  histórica  e  a arqueologia experimental, ressaltando como a primeira possui diversas características as quais se enquadram nos métodos utilizados pelos arqueólogos. Para fundamentar esta ligação, serão desenvolvidos os métodos e trabalhos destes pesquisadores e os materiais dos grupos  de  reconstrução,  com  ênfase  nos  estudos  realizados  e  os  métodos empregados   na   reconstrução   por   estes   mesmos   grupos,   afim   de   representar determinadas épocas com o máximo de fidelidade. A pesquisa foca na atuação conjunta entre essas duas áreas nos estudos que dizem respeito à Era Viking, onde esta atuação tem se expressado de maneira mais ativa e frutífera.

PALAVRAS-CHAVE: arqueologia; reconstrução histórica; história;


Introdução

A  reconstrução  histórica  é  uma  prática  educativa  de  recriação  de  diversos aspectos de determinado período ou evento, como por exemplo a Era Viking ou a Batalha de Waterloo, e deve envolver a reprodução da indumentário, armamentos e vocabulário. Esta atividade se trata da retomada das características relativas ao grupo social e à época escolhida pelo reconstrucionista, geralmente se tratando de uma prática coletiva. Existem centenas de grupos de reconstrução distribuídos pelo mundo, que cumprem a tarefa de reconstruir estes diversos aspectos das civilizações passadas, buscando informações sobre o modo de vida, tecidos e modelos usados nas vestes e técnicas de combate, por exemplo.

O principal foco da reconstrução histórica é a verossimilhança com o período representado. Considerando este objetivo, é necessário um estudo aprofundado e, não raras vezes, a nível acadêmico acerca de diversas características, especialmente, acerca da  cultura  material  do  século  ou  ano  que  será  reconstruído.  A  arqueologia,  como principal fonte de cultura material, contribui de maneira científica ao desenvolvimento desta atividade educativa, na busca pelo máximo de autencidade em sua prática. Além disso, uma das bases da reconstrução histórica é o uso de fontes primárias, com ênfase aos documentos antigos, muitos deles também descobertos e/ou decifrados por métodos utilizados por arqueólogos, a título de exemplo, a paleografia.



Atividade de Arqueologia experimental do Neolítico, Centro experimental de Lejre, Dinamarca. Fotografia de Luciana de Campos, julho de 2018.



Entretanto, a ligação da reconstrução histórica com a arqueologia ultrapassa o uso dos achados arqueológicos e análise de materiais feitos pelos arqueólogos. A recriação possui laços atados com um campo da arqueologia em principal: a arqueologia experimental. Este método da arqueologia surge como uma forma de entender melhor a produção de artefatos cotidianos de civilizações passadas. A produção de materiais líticos, por exemplo, por meio da lascação, percussão ou pressão é muito utilizada afim de melhor compreender o meio utilizado pelos grupos pré-históricos nas produções de suas próprias ferramentas.


Sobre a produção destes materiais, o professor Bruce Bradley explica: “Então, quanto mais aprendermos como as pessoas faziam uso de seus instrumentos de pedra melhor compreendemos o passado” (CORDEIRO, 2015). O mesmo caminho é seguido por muitos reconstrucionistas. Como exemplos específicos, podem ser citados a fabricação  de  um  machado  dinamarquês  do  século  IX,  pelos  meios  de  produção utilizados neste mesmo século, ou a produção de um vestuário norueguês do século XI, por meios de tecelagem desta determinada época, práticas não raras de se encontrar no cenário da reconstrução histórica. Esses produtores almejam tanto a produção de um artefato com o máximo de semelhança a uma ferramenta original da época estipulada, quanto uma compreensão cada vez mais ampla em relação aos modos de produção antigos.


Oficina de tecelagem, Centro experimental de Lejre, Dinamarca, Fotografia de Johnni Langer, julho de 2018.


A arqueologia experimental e a reconstrução histórica assemelham-se também no sentido de ambas possuírem o intuito de reviverem algumas características de civilizações  ou  grupos  sociais  do  passado.  As  práticas  utilizadas  pelos reconstrucionistas, na procura de reproduzir aspectos da vida de um grupo social específico, envolvem o uso das ferramentas as quais aquela população detinha em um dado momento, os meios de produção para estas ferramentas, os costumes culinários e os meios para cozinhá-los e os lugares para dormir, por exemplo. As vestimentas costuradas por máquinas de tear, o uso de espadas e machados e o uso de fogueiras ou fornalhas são comuns de se encontrar em meio à esta atividade. Parte dessas características também são desenvolvidas pelos arqueólogos que praticam a arqueologia experimental, que experimentam o uso de uma ferramenta lítica ou até mesmo noites de sono em cabanas feitas de troncos e peles de animais.

São justamente estas semelhanças entre a arqueologia experimental e a reconstrução histórica que serão desenvolvidas neste artigo, focando nas pesquisas e reconstruções da Era Viking.

Arqueologia experimental e reconstrução histórica: diferenças e semelhanças das atividades


Antes   de   qualquer   desenvolvimento   das   semelhanças   da   arqueologia experimental e  da  reconstrução  histórica,  relacionando  características  desta  segunda como métodos da primeira, é necessário ressaltar o caráter da arqueologia como disciplina acadêmica. A ciência arqueológica, desde o final do século XIX e início do XX, travou duras lutas por seu reconhecimento como ciência e como disciplina. Os arqueólogos utilizam teorias, hipóteses e materiais de eficácia comprovada para validar seus estudos.


Portanto,  é  necessário  afirmar,  que  por  meio  deste  artigo,  não  se  procura comparar a reconstrução histórica com uma ciência fundamentada, que há mais de um século,  luta  por  seus  avanços  no  meio  acadêmico  e  científico.  Mesmo  quando caracteriza-se a reconstrução histórica  como uma atividade séria e aprofundada em estudos científicos, não é possível compará-la com a arqueologia no geral. Reitera-se aqui, que intuito no presente artigo é comparar certas características da reconstrução histórica com métodos da arqueologia experimental, explanando o caráter importante desta primeira atividade como prática educativa fundada em estudos aprofundados e suas diversas semelhanças com o campo da arqueologia citado anteriormente.



Vila viking, Centro experimental de Lejre, Dinamarca, fotografia de Luciana de Campos, julho de 2018.


A arqueologia experimental surge durante a década de 1960, no florescer da Arqueologia Processual, também conhecida como Nova Arqueologia. Nas décadas anteriores, a ciência arqueológica estava engendrada na agenda política das grandes potências, os estudos desta ciência eram focados, principalmente, em discussões sobre etnia e raça e os países que possuíam capacidade de investir na ciência, mesmo no cenário da Segunda Guerra Mundial. Utilizavam-na afim de justificar a suposta grandiosidade de sua cultura acima das culturas das diversas nações.

É na década de 1960 que estas discussões se deterioram em meio ao surgimento do Processualismo. Esta corrente da arqueologia nasce com forte influência do positivismo,  manifestando-se  com  o  intuito  de  provar  a  arqueologia  como  ciência.

Novos métodos surgem dentro das discussões arqueológicas, assim como novas hipóteses. Dentro destas novas hipóteses, surgem questionamentos sobre os artefatos encontrados em meios às escavações. “Como o artefato X ou Y foi produzido?”, “qual era a função deste objeto?”.


Foi por meio destas questões que a arqueologia experimental se desenvolveu. Para responder a primeira pergunta, os arqueólogos buscavam produzir artefatos semelhantes aos encontrados com materiais que, segundo os estudos, estaria disponível na época e local remetente ao espaço em que o artefato foi encontrado. Para responder a segunda, a réplica era testada em cima das hipóteses sobre a função do vestígio original, afim de comprová-las ou não. Sobre isso, o doutor Metin I. Eren explica (2009, p.26):

In  order for  an  experimental analysis to  be  valid  and  applicable archaeologically, it must be actualistic. This requires replicated artifacts to be produced as closely as possible to those found in the archaeological record. Experimental and experiential practice with the procedures and techniques necessary for accurate artifact replication not only requires students to memorize what a particular artifact or artifact trait looks like (e.g. a lithic flake with a lipped platform), but also why it appears the way it does[...].



Vilas da Idade do Bronze e do Ferro, centro experimental de Lejre, Dinamarca, fotografias de Johnni Langer, julho de 2018.



Pode-se considerar, então, a arqueologia experimental como um meio científico da arqueologia, com o objetivo de obter melhor compreensão acerca da produção de artefatos e de seu uso.


Estes procedimentos demarcam uma semelhança marcante da reconstrução histórica com a arqueologia experimental. Dentro desta primeira, como já falado anteriormente, procura-se atingir o máximo de autenticidade. Não raro os equipamentos utilizados pelos reconstrucionistas são produzidos por materiais que, de acordo com estudos, estaria disponível para o grupo social reconstruído na época escolhida.


Além disso, um assunto exaustivamente estudado dentro do reconstrucionismo histórico, são as táticas de combate, principalmente da Idade Média. Este estudo sofre grande influência do HEMA (Historical European Martial Arts), também conhecido como AMHE (Artes Marciais Históricas Europeias), um sistema de luta que, baseado principalmente em fontes primárias literárias ou iconográficas, busca recriar os sistemas de luta europeus que desapareceram ou se modificaram ao decorrer dos séculos.


As táticas de combate utilizadas no reconstrucionismo, além de utilizarem de equipamentos  verossimilhantes  aos  da  realidade  do  grupo  social  reconstruído,  são
estudadas e desenvolvidas para também atingirem o nível de autenticidade pretendida. Manuais e tratados de combate, quando existentes, são estudados em busca de fundamentos teóricos para os sistemas técnicos das lutas.

Os reconstrucionistas buscam responder dentro de sua propria atividade as duas questões principais da arqueologia experimental: desenvolvem os equipamentos com base no questionamento sobre os métodos utilizados e, por meio dos artefatos reconstruídos (além de outras fontes), procuram aprofundar-se na forma como eram operados. Diferentes tipos de armamentos, como espadas, machados, escudos ou lanças tem sua anatomia examinada para sejam descobertas as funções de cada parte do objeto.


Os  combates  são,  na  verdade,  uma  área  de  grande  combinação  entre  a arqueologia experimental e a reconstrução histórica. Diversos arqueólogos também desenvolvem suas pesquisas em cima dos combates, como é o caso do arqueólogo Rolf F. Warming, em seu artigo Round Shields and Body Techniques: Experimental Archaeology  with  a  Viking  age  round  shield  reconstruction  (WARMING,  Rolf Fabricius, 2014), o qual desenvolve técnicas de combate com o uso de um escudo da Era Viking, tendo como base a arqueologia experimental. Além dessas pesquisas servirem para o desenvolvimento da reconstrução histórica na busca pela autenticidade. Na busca incessante pela verossimilhança que existe entre os reconstrucionstas, alguns utilizam-se de métodos científicos para atingir os métodos mais adequados de luta e, por meio desta descoberta e pela análise de fontes científicas, encontrar quais táticas eram mais provavelmente utilizadas dentro dos conflitos.

Dentro do contexto de reconstrução histórica e arqueologia experimental da Era Viking, as semelhanças se aprofundam. Ainda inserido no campo do combate, os armamentos e armaduras representam um assunto importante tanto para os reconstrucionistas, quanto para os arqueólogos. Uma das semelhanças marcantes, é o uso da tipologia Petersen por ambos os grupos. Dentro do reconstrucionismo, ferreiros buscam recriar espadas, machados e lanças da Era Viking, assim como elmos e cotas de malhas. É o caso de Vinícius Ferreira Arruda, fundador do site reenactmentbr e ferreiro profissional na ferraria Hjörvarðr, focado em réplicas da alta Idade Média. Assim como na arqueologia, equipes de pesquisadores coordenam pesquisas em cima de artefatos desta Era, desde os mais simples aos mais complexos, como é o caso das espadas Ulfberth.

As espadas Ulfberth fazem parte de um conjunto desses armamentos que foram encontrados principalmente na Noruega e na Suíça. A lâminas dos exemplares encontrados leva a inscrição +Vlfberth+. Entretanto, o que chamou mais atenção dos arqueólogos foi a qualidade do equipamento. A qualidade do aço era muito superior ao aço medieval, além de possuir uma quantidade de carbono acima do normal em relação ao padrão das espadas medievais. No documentário “Secrets of the Viking Swords”, o ferreiro Richard Furrer, com o auxílio de pesquisadores, reconstitui uma réplica de uma das espadas Ulfberth encontradas. O grupo Combat Archaeology está trabalhando em um projeto semelhante, intitulado “The Ulfberth Project: Reconstructing a Viking Age Sword”.



Vinicius Ferreira Arruda, Medieval Taberna Folk, Cosmópolis (SP), 2016


É possível ver também um trabalho semelhante empreendido por reconstrucionistas históricos e arqueólogos em relação às embarcações vikings. As embarcações colaboraram muito para o sucesso da civilização viking; Foram um dos principais motivos da fama desta civilização, tanto na história quanto posteriormente, na mídia. Até hoje os barcos da Era Viking são valorizados como potentes veículos marinhos, principalmente para sua época, o que demonstrava um avanço tecnológico na cultura escandinava deste período em relação às outras quando se trata deste assunto. Os barcos vikings eram divididos em duas categorias: embarcações de carga e navios de guerra. As primeiras  possuíam uma capacidade  maior para viagem  em mar aberto, sendo utilizadas para o deslocamento de mercadorias e de maior peso que as segundas. Os navios de guerra eram “voltados para as comitivas reais, geralmente longos e leves, com pouca capacidade de carga e desenvolvidos para a navegação de cabotagem” (MIRANDA, 2018, paginação irregular).


Os arqueólogos começaram o trabalho de arqueologia experimental em cima dos barcos da Era Viking, principalmente após 1962, quando a pesquisa arqueológica feita acerca de cinco embarcações vikings encontradas na região de Skuldelev, na Dinamarca, foi concluída. A descoberta da presença da primeira embarcação encontrada ocorreu em 1924,  quando  os  arqueólogos  descobriram  uma  quilha  e  avisaram  ao  Museu  da Dinamarca.  Sobre  as  embarcações,  Munir  Lutfe  Ayoub  explica  (AYOUB,  2018, paginação irregular):

O bloqueio resultante do naufrágio das embarcações e de um preenchimento de pedras – que se situava aproximadamente no ponto intermediário da profundidade de  40 km  do Fjord, que corta a  ilha    de Zealand em direção norte-sul – , é considerado estratégia de bloqueios de embarcações inimigas que poderiam tentar atacar a cidade de Roksilde. Tal estratégia teve sua primeira fase de desenvolvimento entre os anos 1070 e 1090, com o naufrágio do Skuldelev 1 (grande cargueiro), no Skuldelev 3 (pequeno cargueiro) e do Skuldelev 5 (embarcação de guerra de médio porte). A segunda parte, que seria desenvolvida entre os anos 1100 e 1140 – com o objetivo de reforçar o bloqueio –, foi realizada pelo naufrágio de uma grande embarcação   de   guerra   (que,   inicialmente,   foi   confundida   com   duas embarcações e, por esse motivo, denominada Skuldelev 2/4) e pelo Skuldelev 6, um pequeno cargueiro […].

Ele continua, então, sobre a pesquisa arqueólogica feita em cima das embarcações:

O trabalho arqueológico teve início em 1957, quando iniciou um ponto de compreensão da área, que contou até mesmo com mergulhos estratégicos nas partes em que a água se fazia mais profunda. O trabalho incluía mapear a extensão da localidade coberta pelas pedras e, finalmente, remove-las […].


Marcelo Casariego, grupo Haglaz (RJ)


Após a finalização das pesquisas sobre as embarcações, os arqueólogos se engajaram na arqueologia experimental em cima da fascinante descoberta. Em 1983, os pesquisadores  envolvidos  construíram  uma  embarcação  denominada  Saga  Siglar, baseada na Skuldelev 1. Já em 1982, foi construída a Roar Ege, desta vez, inspirada na Skuldelev 3. Esta segunda embarcação pode ser encontrada nos dias de hoje aportada próxima ao Museu de Barcos Viking, enquanto a primeira naufragou em 1992.


Como já foi dito, a recriação de embarcações da Era Viking também ocorre dentro da reconstrução histórica. Em muito se assemelham à arqueologia experimental os métodos utilizados pelos grupos praticantes de reconstrução, os quais buscam uma maneira efetiva e autêntica de atingir os resultados esperados. Em 2013, reconstrucionistas australianos participaram da recriação de um navio Viking, junto de pesquisadores do Australian National Maritime Museum, afim de participar da abertura da exposição “Vikings – Beyond the legend” no Museu Histórico de Estocolmo. O trabalho dos reconstrucionistas junto aos funcionários do museu explicita uma proximidade dos métodos usados pelos pesquisadores e pelos reconstrucionistas, além do interesse conjunto de ambos.

A comida se trata de outro exemplo em que o reconstrucionismo e a arqueologia medieval   se   encontram.   Em   entrevista   com   o   Núcleo   de   Estudos   Vikings   e Escandinavos, o doutor Daniel Serra, estudioso da culinária medieval, principalmente da Era Viking, explica seu trabalho com a arqueologia experimental e a culinária. Para ele, “a comida serve como um veículo de expressão cultural e social”. Nesta mesma entrevista, Daniel Serra cita que começou a “recriar sabores e pratos para os propósitos de Arqueologia Experimental, bem como a Era Viking e com grupos de reconstrucionismo também”.

Conclusões finais

O artigo trilhou um caminho entre a arqueologia experimental e a reconstrução histórica, principalmente em cima da Era Viking, buscando comparar características e métodos dos reconstrucionistas com os dos arqueólogos. Além disso, ressalta-se no presente trabalho os frutíferos resultados provenientes das recentes atuações conjuntas dos praticantes da reconstrução histórica e dos arqueólogos que trabalham no ramo da arqueologia experimental.


Foi fundamentado o conceito de reconstrução histórica e de arqueologia experimental por meio de estudos em cima de bibliografias sobre ambas as atividades. O mesmo caminho foi seguido para justificar as afirmações sobre a Era Viking. As semelhanças entre o reconstrucionismo e a arqueologia experimental tornaram-se claras por meio de exemplos de atividades parecidas dos dois campos, da atuação conjunta de reconstrucionistas e arqueólogos e por meio de citações de pesquisadores que ressaltam a participação dos grupos de reconstrução nos projetos de arqueologia experimental.


Nota-se, então, o quão importante é o envolvimento dos reconstrucionistas comprometidos com a atenticidade com a arqueologia experimental, como afirma a doutora Luciana de Campos em sua matéria “Recriando a cerâmica da Era Viking: uma atividade em arqueologia experimental”:

Este experimento mostra que atividades como a Arqueologia experimental   pode   fazer   parte   de   uma   nova   proposta   de   Educação museológica,  onde  a  teoria  e  a  prática  estão  aliadas  e  concede espaço e visibilidade aos recconstrucionistas sérios e  comprometidos que  trabalham para que a pesquisa científica desenvolvida em laboratórios e universidades
extrapolem seus muros e se tornem, cada dia mais presentes no cotidiano de todos.
É necessário ressaltar que os interesses de arqueólogos podem, por vezes, ir de encontro   aos   dos   artesãos   que   trabalham   no   reconstrucionismo   histórico.   Os arqueólogos buscam métodos de recriação e uma réplica autêntica que irá servir ao desenvolvimento de seus experimentos. Já os reconstrucionistas, que praticam os ofícios de recriação de artefatos, vão buscar nas culturas materiais uma fonte de inspiração para sua atividade, procurando desenvolvê-la com o máximo de verossimilhança.
Entretanto, até o momento os interesses divergentes não tem se mostrado um obstáculo para o andamento destas atuações em conjunto. Alguns grupos já estão buscando ampliar esta inteiração entre os reconstrucionistas, arqueólogos praticantes ou não da arqueologia experimental, museólogos e outras categorias. Um exemplo disto é a “Reconference”, uma conferência interdisciplinar organizada pelo grupo Hands on History que possui como tópico o reconstrucionismo histórico e living history. O grupo conclama todas as categorias anteriormente citadas neste parágrafo para estarem presentes no evento, além de jornalistas, cinegrafistas e professores universitários. Iniciativas como essas são de suma importância para o avanço do potencial presente nesta integração.

Por fim, vê-se, então,  a  necessidade  de  se  incentivar  cada  vez  mais  estas atuações. É notável que esta ligação entre a arqueologia experimental e o reconstrucionismo histórico apresenta um grande potencial, como foi comprovado, além dos exemplos mostrados no artigo, mas também no projeto do Centro de Arqueologia Experimental da Universidade de Copenhagen explicado pela doutora Luciana de Campos em sua matéria citada acima.

Referências bibliográficas

AYOUB, Munir Lutfe. Roskilde. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e
Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra. Edição eBook. 2018.

CORDEIRO, Silvio Luiz (dir.); Arqueologia Experimental - técnicas de produção de artefatos líticos. Museu Imaginário, 2015, 9m.

EREN, Metin I. Experimental archaeology as a pillar of archaeological education. Nicolay               107,               p.25-32.               2009.


MIRANDA, Pablo Gomes  Miranda de. Embarcações.  In: LANGER, Johnni (Org.).
Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra. Edição eBook. 2018.

SERRA,  Danial.  Entrevista concedida a  James  Wiener.  Tradução parcial  feita pelo grupo Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos. Comida da Era Viking: entrevista com    o    novo    colaborador    estrangeiro    do    NEVE.    2016.    





sábado, 25 de agosto de 2018

NEVE visita festivais vikings na Dinamarca



Um passeio pelos mercados e festivais vikings da Dinamarca

Profa. Dra. Luciana de Campos (UFPB/NEVE)
Pós doutoranda em Educação pela UFPB

O Verão dinamarquês é marcado por uma explosão de cores, odores e sons sem igual. As flores, são todas belas, sejam as cultivadas nos jardins dos parques e casas ou, as selvagens, que nascem no meio dos trigais; o zunido das abelhas que sobrevoam as delicadas pétalas atraídas pelo doce perfume e, claro, os corvos constituem um cenário perfeito para que tendas sejam erguidas, mulheres possam usar seus vestidos de linho e ficarem descalças enquanto sovam pão, crianças brincam com seus cães e, os homens, conversam e trabalham nas forjas e carpintarias tudo sob o calor do Sol que aquece a terra que permaneceu meses sob o comando do Inverno.

Nessa paisagem convidativa, aos demorados passeios pelas alamedas de olmos centenários são constantes por todo território danês, e os mercados e festivais vikings são muitos e oferecem aos visitantes uma amostra do cotidiano dos comerciantes nórdicos antigos.

A nossa primeira visita a um mercado viking foi em Frederikssund, à tarde quando saímos de uma jornada pelos jardins e palácio de Frederiksborg que, mesmo sendo construções do século XVII, já nos permitiu entrar no clima de uma pequena viagem no tempo!

Entrada da feira de Frederikssund


O mercado de Frederiksund é pequeno e quando chegamos no sábado à tarde não foi cobrado ingresso, pois esse era o último dia do festival e algumas barracas já estavam fechando. Quando adentramos ao mercado a sensação é indescritível: todos os participantes das crianças de colo até os idosos, todos estão caracterizados! Alguns usam roupas simples e um pouco desgastadas, pois além de estarem vendendo os produtos estão, muitas vezes também os produzindo, como no caso dos carpinteiros, ferreiros e das mulheres que cozinham e tingem a lã. A sensação é de realmente estar em um local fora do nosso tempo, todos nos recebem com alegria e já demonstram a gratidão pelo interesse nas histórias que tem para contar e por olharem seus produtos. 

Detalhe da feira de Frederikssund


 O local onde o mercado é instalado é bem arborizado e os carvalhos oferecem sombra e um clima acolhedor que protege os visitantes do calor e do Sol e convida a ficar sob seus galhos apreciando o movimento. No local há também estábulos pois são oferecidos aos visitantes passeios a cavalo, além de outras edificações de madeira, reproduções de casas da Era Viking. Além disso, há um totem onde está gravado em um tronco o rosto de Odin e pudemos observar como algumas pessoas faziam libações com hidromel e depositavam flores ali. Confesso que não verti hidromel e nem coloquei flores mas deixei por lá um ramo de brotos de carvalho!

As barracas que estavam espalhadas pelo terreno ofereciam diversos produtos, hdiromel, joias, roupas, sapatos, réplicas de armas em madeira e metal e produtos para fiação e tecelagem. Passamos por todas as barracas e nos demoramos naquelas que ofereciam joias pois o nosso foco era adquirir um par de broches ovais. As peças eram belíssimas, réplicas perfeitas em prata e bronze que custavam uma média de 300 a 400 coroas dinamarquesas, (algo entre 150 a 250 reais). Os broches ovais eram peças bem trabalhadas com um acabamento impecável. Difícil dizer qual era o mais bonito!

Área para espetáculos em Frederikssund


Os materiais para fiação e tecelagem também estavam à venda: pás de cardar, fusos manuais, agulhas e uma grande variedade de fios crus e tingidos bem como a lã lavada pronta para ser cardada, fiada e, depois, tecida. Havia também linho e lã tecidos manualmente e vendidos por metro. Não me atrevi a perguntar o preço, me contentei em tocá-los e sentir como eram macios. Compramos uma meada de lã pura tingida com folhas de urtiga. Um tom de verde musgo maravilhoso que será apresentada em forma de bordado no VI CEVE.

Mas, o ponto alto de nossa visita foi em uma barraca de joias. Os donos eram um casal com mais de setenta anos que estavam acompanhados de sua cachorra velhinha e surda que dormia ali, em uma pequena cama. Ambos muitos simpáticos, ela principalmente que, quando perguntou de onde éramos, e, ao ouvir “Brazil”, abriu um sorriso e começou a falar espanhol pois havia morado por mais de dez anos na Argentina com a família. Visivelmente feliz ela nos mostrou tudo com muito entusiasmo: os broches, os pingentes, os martelinhos de Thor, anéis, braceletes  e, claro a joia mais preciosa que havia ali:  - pelo menos para mim era – um pequeno pingente representando uma valquíria segurando um corno de hidromel.



A senhora segurava o pingente na palma de sua mão e dizia em um espanhol carregado de sotaque danês: “ – És muy hermosa! La representación más emblemática de la valquíria!” Aqueles olhos azuis brilhantes em contraste com os cabelos brancos nos cativaram e hoje a valquíria está aqui em casa! Nos contou que havia morado na Suécia com o marido norueguês e que conseguia ler, sem nenhuma dificuldade sueco e norueguês e que para ela, a maior diferença estava na fala e não na escrita. A voz serena e a simpatia me emocionou muito e, não resisti e tirei uma foto ao lado dessa bela e doce mulher nórdica. Além de sairmos felizes com o nosso pingente e uma meada de lã, aprendemos algo sobre as línguas escandinavas modernas. E, claro não deu em hipótese alguma para segurar as lágrimas!

Só sentimos falta de barracas que ofereciam comida. As opções eram basicamente nozes e avelãs carameladas e cachorro quente dinamarquês. Não havia nesse mercado nenhuma opção de comida da Era Viking, com exceção é, claro do hidromel que tomamos: suave, com um teor alcóolico médio mas muito saboroso e com diversas variações nos seus componentes: flores, frutas, ervas e raízes. O hidromel estava muito bom mas, a comida deixou uma grande lacuna!

O segundo mercado viking que visitamos foi o instalado ao redor da fortaleza de Trelleborg, local onde também é encenada a reconstituição da batalha homônima e que é por si só um espetáculo à parte: emocionante, vibrante e realista! Mas essa, assim como o percurso a pé para se chegar até a fortaleza é uma outra história que será contata no devido tempo. Antes de nos aproximarmos do acampamento ao redor da fortaleza, pudemos ver o mar de barracas que estava a nossa espera: todos aqueles toldos brancos e marrons se destacavam na paisagem e, se não fosse a presença das inúmeras hélices das usina eólicas a impressão era de estarmos, de novo em Trelleborg do século X.

Entrada do mercado de Trelleborg


A entrada para o mercado é feita pelo museu que abre suas portas às 10 da manhã, mas como o nosso percurso foi diferente: entramos pelos fundos da fortaleza e tivemos acesso à ela e ao mercado, quando os comerciantes e suas famílias ainda estavam tomando seu desjejum e se preparando para a abertura mais tarde. Achamos estranho os olhares curiosos de todos que deviam se perguntar : “ – De onde surgiram esses quatro?”. Tivemos a fortaleza só para nós e um breve passeio pelo mercado também!



Ao caminhar pelo mercado tive uma sensação de incômodo: aquele local não combinava com calça legging, blusa bordada e tênis! Enquanto não fui ao toalete do museu colocar meu traje não sosseguei mas, ao vesti-lo me senti mais uma mulher escandinava que anda descalça em um dia de Verão por entre as barracas e, nunca me senti tão bem, mesclada aquela população que não falava a minha língua, mas eu aprendi rápido a sorrir em danês!

O número de barracas e produtos era muito maior do que o mercado de Frederikssund, bem como o número de pessoas que estavam ali não só pelo mercado mas também pela encenação da batalha. Percorremos todas as barracas: sapateiros, carpinteiros, armeiros, tecelãs, e vendedoras de joias, camisetas, vestidos, tecidos, lãs e dessa vez havia também utensílios como baldes e barris de madeira e, claro, batedores de manteiga que eram grandes demais e desanimei de comprar um (ainda bem que Lejre estaria novamente no nosso caminho!), além de muito hidromel.



A nacionalidade dos mercadores era variada: russos, noruegueses, suecos, alemães além dos próprios dinamarqueses. Todos muitos simpáticos e sempre acompanhados de seus animais de estimação. Um dos broches foi comprado de uma russa que vendia joias e estava lá com sua família acompanhados de um pequeno cão e de um filhote de gato preto que dormia em um cesto e ficava preso em uma coleira com uma guia comprida para não se perder! Havia também uma família que comercializava tecido e o seu cãozinho tinha uma casinha viking com e uma placa com seu nome: Frodo! A presença dos animais é uma constante nesse mercado mostrando como os escandinavos tem apreço e verdadeira amizade por seus animais, algo que precisamos urgentemente desenvolver. Foi nessa barraca da família russa que, depois de percorremos todo o mercado e compramos o broche de três pontas em bronze, com motivos de Birka gravados.

Também conhecemos o artista e a sua esposa que desenhou as camisetas estampadas com a máscara de Aarhus que adquirimos no Museu Moesgård, em Aarhus. Ficaram felizes ao ver que as camisetas eram vestidas por pessoas que conheciam o desenho e que se interessavam pelo seu trabalho. Encontramos também em uma barraca onde uma mulher estava tecendo, um livro de comida eslava e nórdica da Era Viking. Uma bela surpresa e, claro aquisição também. Além de todos os produtos havia barracas que vendiam livros, romances contemporâneos ambientados na Era Viking bem como alguns de popularização. Produtos variados para todos os gostos e bolsos!



Experimentamos um hidromel de frutas vermelhas (mirtilo, groselha, amora e framboesa) que, no Verão estão em todos os lugares e podem ser compradas nos mercados, feiras, bancas de frutas e também podem ser degustadas gratuitamente nas estradas e nos parques e são muito doces! Esse hidromel possuía um buquet delicado e era delicioso lembrando o sabor de um bom vinho tinto amadeirado e frutado. Havia muitas barracas vendendo hidromel mas não havia nenhuma vendendo ale. Creio que hidromel seja mais vendável pois a qualidade das cervejas, mesmo as industrializadas é indiscutivelmente boa.

Mas, assim como em Frederiksborg o ponto baixíssimo do mercado de Trelleborg foi a comida... Havia uma única barraca que oferecia comida e, mesmo assim, não era necessariamente comida da Era Viking. Havia um porco inteiro sendo assado em um braseiro e alguns espetos com frangos inteiros que só seriam comercializados depois da encenação da batalha ou seja, depois das 14 horas. Mas, naquele momento estava sendo oferecido cachorro quente dinamarquês com salsicha e pão artesanais com molho de mostarda. Apesar dos componentes do sanduíche serem frescos e muito bem feitos e estarem saborosos, ainda não era a comida que esperávamos encontrar.



Para nossa surpresa, havia também uma outra barraca mas fora da área do mercado bem próxima ao museu que oferecia sanduíches de carne de porco assada com molho de cebolas e mostarda. O pão estava delicioso recém assado dava para sentir o sabor do centeio e o doce da cebola caramelizada no seu próprio açúcar. Observamos que muitos mercadores e mercadoras estavam comendo ali ou, então, no café do museu que oferecia saladas, sanduíches e sorvetes. Muitos visitantes como é típico dos dinamarqueses trouxeram suas marmitas com deliciosos smørrebrøds e, claro suas Carlsbergs!

Fomos esperando encontrar a típica comida viking em ambos os mercados: skyr, peixes assados e ensopados, carne de porco salgada servida com molho de cerveja sobre pão de centeio, conserva de nabos e rabanetes ou, então, carne de javali com trigo e alho. Mas não havia nada disso, apenas sanduíches comuns sem muita variedade. Acreditamos que  apesar de publicações sobre alimentação como a obra de Serra e Tunberg, a autêntica comida da Era Viking ainda não seja uma presença constante nos mercados dinamarqueses, por razões que desconhecemos. A comida poderia ser um atrativo a mais, pois seria vendida por um preço acessível, muitas vezes até mais em conta do que os sanduiches oferecidos e seriam servidas em pratos e potes de madeira e cerâmica oferecendo aos visitantes uma experiência única de, realmente comer como os nórdicos antigos comiam.

A visita a esses dois locais nos proporcionou uma pequena amostra de que como funcionam esses mercados e feiras e que, mesmo que nada se compre, e que nada se coma, só o fato de poder andar com um vestido escandinavo com todos os acessórios pisando sob o solo que um dia bebeu do sangue de homens e mulheres que feneceram em Trelleborg, é uma experiência singular e nos faz sentir pelo menos um pouco do que sentiram aqueles que singraram os mares trazendo ouro, seda e açafrão que enfeitavam as mulheres e adocicavam o hidromel!


terça-feira, 21 de agosto de 2018

NEVE publica estudo sobre religião sami



A revista Ágora (PPGHIS) da UFES, em sua edição 27 deste ano, acaba de publicar o artigo: Por uma inserção da religião sámi antiga no debate das Ciências das Religiões, de Victor Hugo Sampaio Alves. Victor é mestrando em Ciências das Religiões pela UFPB e membro do NEVE.

Trata-se do primeiro estudo acadêmico publicado em língua portuguesa tratando do tema da religião dos povos sami, cuja importância cresce cada vez mais nas universidades europeias.

Resumo: Os Sámi são vários povos de etnia Fino-Úgrica que habitam territórios da Suécia, Noruega, Finlândia e a Península de Kola, na Rússia, e possuem seus próprios idiomas e religiosidade. Antes da conversão ao cristianismo, a religião Sámi era politeísta, animista e de caráter xamânico e ritualístico. Nosso objetivo é contextualizar essa religiosidade no âmbito das Ciências das Religiões, demonstrando o que elas podem oferecer para melhor compreensão dessa religião. Assim, traçaremos uma breve trajetória das Ciências das Religiões a nível epistemológico, analisaremos algumas definições do étimo religião e discutiremos alguns de seus problemas e limitações ao longo da história. Por fim, traremos alguns dos principais aspectos que constituem a religião Sámi antiga, numa tentativa de trazê-la para o debate das Ciências das Religiões.

O artigo pode ser acessado aqui.



segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Curso: História das Mulheres na Era Viking

Mini curso: HISTÓRIA DAS MULHERES NA ERA VIKING

Ministrante: Profa. Dra. Luciana de Campos (NEVE)

VI Colóquio de Estudos Vikings e Escandinavos
UFPB, 2 a 5 de outubro de 2018


Inscrições gratuitas aqui





sábado, 11 de agosto de 2018

A bruxa nórdica de God of War




A BRUXA NÓRDICA DE GOD OF WAR


Thais Gomes Trindade

Mestranda em Estudos da Tradução pela USP



A apropriação e ressignificação de mitos não é algo novo. Atualizações sempre ocorreram e continuam a ocorrer. Com a diversa gama artística e criativa que temos contato na atualidade, assim como a acessibilidade de textos míticos e mitológicos, essa prática de ressignificação se acentua. Tem-se como exemplo a série de jogos do estúdio Santa Monica, intitulada God of War, lançada em 2005 para o Playstation 2, que em seus primeiros jogos se apropriou da mitologia grega para desenvolver a história de seu protagonista, Kratos. Agora em seu oitavo jogo, quarto entre os maiores da série, o God of War lançado em abril desse ano foi responsável por trazer seu protagonista à esfera mítica nórdica acompanhado de seu filho Atreus e das cinzas de sua esposa, as quais deve levar à mais alta montanha dos nove mundos.

Logo nos primeiros minutos de jogo, o espartano e seu filho conhecem a “bruxa” da floresta, assim chamada por Atreus ao vê-la tentar utilizar magia – “You’re a witch!” (“Você é uma bruxa!”). Tal encontro se origina da flechada de Atreus, que é orientado por seu pai a atirar em um animal com o intuito de praticar tal habilidade, nisso acerta um javali. Este é “amigo” da “bruxa” da floresta, que logo se apresenta e tenta socorre-lo, “he’s my friend” (“ele é meu amigo”).

Comum à Mitologia Nórdica, a figura do javali aparece na Edda poética, em Hyndluliod (A canção de Hyndla), em que a deusa Freya disfarça seu protegido, Ottar, como seu javali, “Battle-hog” (Song of Hyndla, 7.4). Dentro da Mitologia Nórdica, essa deusa costuma ser representada acompanhada de gatos ou de seu javali em suas viagens. Nesse evento, o disfarça para poder trazê-lo consigo a Jötunheim, em que procura a gigante Hyndla, de quem busca obter informações da genealogia de Ottar. Porém, para que este não seja notado por Hyndla, o traz como seu “javali”. Nota-se que há uma relação de proximidade entre a deusa e o animal, bem como entre a bruxa e o javali em God of War. Nesse evento ainda, Freya busca favorecer Ottar contra Angantyr, protegido por Odin, tendo-se uma rivalidade entre ambos nesse contexto.

Enquanto tenta salvar seu amigo javali por magia, a personagem feminina de God of War profere a Kratos uma promessa “I promise you, he’s safe” (“Eu te prometo, ele está seguro”). Nota-se em seu discurso uma tentativa de estabelecimento de trégua e confiança, afabilidade. Da Mitologia Nórdica tem-se em Freya o maior símbolo de afabilidade em oração, sendo considerada a mais acessível entre os deuses a se orar, segundo a Edda em prosa (Gylfaginning) – embora sua especialidade seja em questões amorosas.

No evento em que a personagem feminina dessa série diz a Kratos “I know you’re a god” (“Eu sei que você é um deus”), ela explicita ao protagonista saber não apenas da origem dele, mas de Atreus também, expressando seu conhecimento prévio, sabedoria do assunto. Essa vidente possibilidade de conhecimento é associada entre os deuses nórdicos à deusa Frigg na Lokasenna, poema em que Freya aconselha a Loki tomar cuidado com suas profanas explanações uma vez que Frigg saberia do destino de todos, embora não o predizesse (Loki’s Quarrel, 29). Se do início a caracterização da personagem de God of War é aproximada a Freya, aqui isso é feito em relação aos poderes de Frigg pela atualização da figura feminina como detentora do conhecimento, “sábia”.

Porém, vale notar que a magia praticada pela bruxa, muito a aproxima de Freya, que embora não apareça praticando magia nas referências de mitologia nórdica, é vista como mágica uma vez que ensinou aos Æsir a magia seidr. Essa referência é derivada da Ynglinga Saga de Snorri Sturluson e da Völuspa, da Edda poética, conforme indicações de John Lindow (2001:265), que pouco nos explica sobre a magia em si, apenas referindo a ela como muito relacionada a práticas femininas, embora também seja praticada por homens, como Odin. Enrique Bernárdez faz referência à mesma magia, em Los mitos germánicos, em que explica como o seidr estaria relacionado a uma ideia de sexo e morte (2002:175, 177).

Entretanto, tem-se ainda mais referências a tal magia, que são trazidas por Johnni Langer no verbete “seidr” do Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. Langer explica que o seidr, além de associado a mulheres, associa-se à clarividência, à cura de doenças e, por alguns, ao canto, também tendo usos maléficos em utilização para insultos e ofensas. Assim como, Lindow (2001:265), Langer se refere a uma característica xamânica da magia (2015:451). Nas situações de God of War supracitadas, temos o uso da magia seidr, pela bruxa, à cura do javali e uma latente clarividência quanto à origem e ao espírito tanto de Kratos quanto de Atreus, o que aproxima essa característica de vidência e sabedoria da bruxa tanto a Frigg como a Freya.

Os diálogos e interações de Kratos e Atreus com a bruxa de God of War vão abrindo espaço não apenas a conhecê-la, mas também ao entendimento da adoção e atualização da Mitologia Nórdica dentro desse texto. Sua constituição é intrinsicamente hesitante, ao que cada pausa dá ao espectador impressão de que ela sabe mais do que proclama superficialmente. Nisso lembra a Frigg. Exemplos de seus momentos hesitantes são: “Whatever you’re hiding, you cannot protect him forever” (hesitation) (“Seja lá o que estiver escondendo, você não pode protegê-lo para sempre” (hesitação)) e “This mark will hide you from (hesitation) those who might make your journey (hesitation)… difficult” (Essa marca irá escondê-lo (hesitação) daqueles que podem tornar sua jornada (hesitação)... difícil” – em que é dado ao espectador como ela traz em seu discurso pesar e conhecimento por experiência pessoal, concomitante a uma retração à explicitação da verdade, pausa à evidência de quem dificultaria o caminho.

Do evento em que comenta sobre a natureza pouco aberta dos deuses de Asgard, a personagem feminina emenda sua frase com “Trust me, I know” (“Acredite, eu sei”), mais uma vez se revelando ao mesmo tempo em que se esconde, moldando-se como sábia, detentora do conhecimento seja por saber do que não lhe é dito, como a origem de Kratos, com uma espécie de vidência, como nesse caso, seja por experiência pessoal.

Na Mitologia Nórdica há dois grupos de divindade, os Vanir e os Æsir, os quais se deram trégua pela troca de membros. Porém, não há relatos de abertura a personagens de origem externa, na verdade, percebe-se uma contínua manutenção de fronteiras e afastamento de outras figuras, a exemplo da construção das muralhas de Asgard e no afastamento contínuo de gigantes, sendo Loki uma exceção. Essa pouca possibilidade de intercâmbio entre terras na Mitologia Nórdica, uma vez que cada mundo é constituído de personagens que ali se mantêm, também é reiterada no jogo.

Ao reportar a Kratos que os “deuses desse reino não gostam de pessoas de fora” – “The gods of these realms don’t take kindly to outsiders” –, caracteriza os Æsir como divindades “puristas”, porém, além disso, abre espaço à noção de sua origem, que não seria de lá, mas de outro reino, muito lembrando a Freya, deusa Vanir.

Essas referências dos parágrafos anteriores, que preveem uma relação entre a bruxa e as duas principais deusas nórdicas, não ficam apenas em espera de confirmação, pois elas encontram certeza após a reanimação da cabeça de Mimir, dada pela fala de Mimir, então repetida por Atreus: “Freya! The goddess, Freya?” (“Freya! A deusa Freya?”). Ela então explica que havia sido líder dos Vanir um dia – “Leader of the Vanir once, yes… but no longer” (“Líder dos Vanir um dia, sim... mas não mais”). Então relata a Atreus que os Vanir apresentavam ameaça aos Æsir até o casamento entre Freya e Odin lhes trazer paz - “The Vanir were the greatest threat to the Æsir until our marriage brokered Peace” (“Os Vanir eram a maior ameaça aos Æsir até nosso casamento estabelecer paz”).

Nota-se, porém, que na Mitologia Nórdica, não é um laço entre Freya e Odin que traz paz aos Vanir e Æsir, mas a troca de outras deidades. Além disso, Freya é casada com Odr, viajante, o qual tenta encontrar utilizando nomes diversos entre desconhecidos, e Frigg com Odin. Essa deusa, caracterizada por diversos nomes por sua constante viagem em busca de Odr é aproveitada no jogo, em que é conhecida por dois nomes: Freya, de sua origem Vanir, e Frigg, dado a ela por Odin à relação aos Æsir como meio de diminui-la.

Segundo Mimir e suas pequenas historietas contadas entre loads de telas, Odin chamaria a Freya de Frigg por significar “beloved”, “amada”, porém, ao passar do tempo, se aproveitaria desse apelido para apagar aos olhos de todos os feitos da grande “Freya”, atribuindo toda ação sua posterior ao casamento a Frigg, o que diminuía sua influência entre a população.

Essa associação de Frigg e Freya a uma única divindade não é única ao jogo, sendo defendida por Enrique Bernárdez no que diz respeito à Mitologia Nórdica, que coloca na relação Frigg, Freya e Iörd uma tríade de deusa nórdica. Frigg seria uma representação de deusa mãe e esposa, enquanto Freya seria deusa associada à fertilidade e à sexualidade e Iörd à função de mãe-terra. Embora não se encontre nas mitologias germânicas referências ao nome Freya, muito se encontra ao nome Frigg. Ainda assim, Bernárdez propõe o argumento de que Frigg e Freya possam ter constituído uma divindade única e una no início da mitologia e ainda que não se encontrem registros ao nome além da esfera literária escandinava, sabe-se que muitas “funções” divinas são comuns às diversas mitologias, como a tríade que propõe (2002:159-160).

Bernárdez também interpreta os Vanir, por consequência, Freya, como deusa campesina, referência de fertilidade, vida e preocupação com uso da magia à conservação dessas funções sociais em oposição aos Æsir, que seriam representativos de aristocratas dados à guerra, à poesia e ao governo, ao que em God of War temos Freya banida a um ambiente campestre pelo governante poder opositor de Odin (2002:187).

Em outro evento, em que Atreus sofre em luta interna contra sua origem dêitica, Freya indica a Kratos ter um filho, “Did I tell you I have a son too?” (“Eu te disse que também tenho um filho?”. Da Mitologia Nórdica Freya é referida como mãe de Hnoss e Gersemi, embora a referência a Gersemi seja feita apenas em Skaldskaparmal na Edda em prosa, enquanto Hnoss é comentada em Gylfaginning. Nesse ponto nota-se um maior distanciamento da divindade Freya segundo as fontes nórdicas e uma atualização de Freya/Frigg que serve aos intentos da narrativa do jogo: ao comentar que ao nascimento de seu filho, as runas previram sua morte e que então soube que tudo faria para protege-lo, temos a aproximação das personagens do jogo a Baldr e Frigg – “At his birth, the runes foretold a needless death” (...) “I knew right then that I would do anything to protect him” (“No seu nascimento as runas previram sua desnecessária morte” (...) “Eu soube logo que faria qualquer coisa para protege-lo”).

Tanto na Edda em prosa quanto na Edda poética Frigg é caracterizada como mãe de Baldr. Este, já adulto, sonha com sua própria morte, ao que temos o poema Baldrs Draumar. Na Edda de Snorri seu sonho é dividido com os Æsir que, em conselho, decidem proteger a Baldr. Com esse fim, Frigg recebe de todas as coisas promessa de não causar mal a Baldr, com exceção de um visco, que lhe pareceu inofensivo. À parte das discussões sobre essa imagem, vale notar que no jogo a premonição não é dada através do sonho de um Baldr adulto, mas através das runas. Se na Mitologia Nórdica isso leva Frigg a pedir o juramento de todas as coisas em proteção a seu filho, em God of War é a magia de Freya/Frigg que o condena a “não sentir nada”, desse modo lhe protegendo.

Essa condenação à inércia de sensações é tamanha que ao ter sua mão perfurada pelo visco, sente-se extasiado. Deixando-se à parte sua raiva, pouco comum à caracterização mitológica de Baldr, Freya/Frigg faz de tudo para lhe proteger, intervindo na luta entre Kratos e Baldr continuamente. Para chegar até ele, também, utiliza um poder que é comum a Freya na Mitologia Nórdica: transformação em pássaro. Em Thrymskvida, Thor pede emprestado de Freya sua “camisa de asas” (“feather-shirt”), atributo que lhe permite se transformar em pássaro e voar (Thrym’s poem, 3.3). Tal atribuição da deusa é resgatada em God of War, em que se transforma em ave de rapina no momento em que necessita da mesma habilidade.

Assim a identidade da “bruxa” da floresta vai se desvendando em God of War e com sua constituição como personagem os espectadores ganham uma visita à mitologia e à sua atualização nas personas de Frigg e Freya, que ganham novo significado e ao mesmo tempo permitem o despertar do interesse pelas origens míticas. A reunião dessas duas figuras femininas permite ao público conhecer seus poderes, como a prática de magia seidr e o conhecimento do destino dos homens; criar uma rede complexa de relações entre outras personagens, como Baldr e esta; resgatar seus símbolos e elementos, como o javali e a “camisa de penas”; em certos pontos traduzindo em imagem propostas teóricas defendidas por Bernárdez, como a possibilidade de Frigg e Freya terem sido derivadas de uma única deusa. Embora o jogo não informe detalhadamente sobre esses fatos da mitologia, uma vez que não é seu dever, no intento cuidadoso de entreter acabar por abrir brechas à curiosidade pelas fontes míticas e suas relações com essa elaborada obra de atualização e ressignificação.



Referências

BARLOG, Cory (Dir.); WANG, Elizabeth Dahm et al. (Prod.). God of War. SIE Santa Monica Studio, 2018, PlayStation 4.

BERNÁRDEZ, Enrique. Los mitos germánicos. Madri: Alianza Editorial, 2002.

LANGER, Johnni. Seidr. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015. p. 451-453.

LARRINGTON, Carolyne (Trad.). The Poetic Edda. Oxford: 2014.

LINDOW, John. Seid. In: LINDOW, John. Norse mythology: a guide to the gods, heroes, rituals and beliefs. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 265.

STURLUSON, Snorri. Edda. Tradução de FAULKES, Anthony. London: Everymen, 1995.