SÍMBOLOS
VIKINGS E UMBANDISTAS: CÓPIA OU COINCIDÊNCIA?
Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)
Há
alguns anos circulam pela internet algumas indagações sobre a semelhança entre
símbolos mágicos utilizados pelos vikings e os pontos riscados da Umbanda e
suas possíveis conexões ou influências mútuas. Em parte isso se deve à
crescente popularidade dos nórdicos pela mídia televisiva, mas também pela
imensa difusão de tatuagens no mundo pop, como o símbolo de um vegvisir usado pela
cantora islandesa Björk em
um dos braços ou pelas bandas de viking metal. Vamos
esclarecer alguns pontos sobre a área nórdica e em seguida algumas
considerações sobre a Umbanda, para em seguida realizarmos algumas conclusões
sobre o assunto.
A cantora Björk e sua tatuagem de vegvisir
Tatuagens com ægishjálmur
Símbolos
vikings e renascentistas:
Em
primeiro lugar, ocorre uma certa confusão com o termo viking. Os grafismos
simbólicos considerados hoje em dia como vikings foram retiradas de obras
islandesas escritas durante o século XVI e XVII, muito depois da Era Viking. Alguns
destes símbolos realmente são nativos, conhecidos durante o período das
migrações germânicas até o final do século XI, como a suástica (também
utilizada por diversos outros povos euroasiáticos e relacionada tanto a Odin quanto
a Thor, vide o estudo: Símbolos mágicos nórdicos: guia visual e histórico) e o Hrungnisjarta a
partir do século VIII. Nas fontes medievais, a palavra viking surge relacionada
a uma atividade temporária, geralmente náutica e predatória e em alguns casos
possui certa identidade cultural, mas no imaginário contemporâneo ela acaba
sendo sinônimo de nórdico em geral (Langer, 2018). Neste caso, a aplicação do
termo viking aos símbolos islandeses é equivocada.
Os
símbolos mágicos que nos interessam dos grimórios islandeses (grande manuais de
práticas mágicas) são especialmente o vegvisír
(um símbolo mágico utilizado para as pessoas encontrarem o caminho durante
tempestades ou períodos nublados) e o ægishjálmur
(utilizado para proteção e feitiçaria). Somente esse último foi registrado
anteriormente pela literatura durante o período medieval, mas não se conhecem
imagens preservadas dele antes do século XVI. Diversos pesquisadores questionam
se ele realmente teria sido utilizado pelos guerreiros em seus elmos durante a
Era Viking (750 a 1100 d.C.), sendo mais visto como uma figura puramente
literária e mitológica (Foster, 2017). Neste sentido, não há como comprovar ou
sequer referendar o uso da expressão símbolos vikings a esses dois grafismos
dos grimórios.
Ægishjálmur, Galdrakver, Lbs. 143 8vo, Islândia, 1670.
O
mais antigo dos grimórios islandeses foi o Galdrabók, datado de 1600, contendo
diversos encantamentos e invocações a entidades cristãs, demônios e deuses
nórdicos. O material rúnico contido neste manuscrito é percebido como uma
expressão nórdica tardia de tradições mágicas mediterrânicas. Muitos símbolos
são variações latinas de cruzes e de runas (Macleod e Mees, 2006).
O Ægishjálmur foi citado primeiramente no Fáfnismál
16, 17 e 19 (Codex Regius da Edda
Poética). Neste poema éddico, o símbolo traria vitória a seu possuidor (segundo
o dragão Fáfnir), e no mesmo poema, alude-se a pertencer ao tesouro de Sigurðr,
de onde se deduz que estaria gravado em um elmo. Ao mesmo tempo, essa descrição
de um objeto mágico na cabeça de Fáfnir tem relação com uma tradição européia
que remonta aos gregos e que sobreviveu até o fim da Idade Média: de uma pedra
que os dragões possuíam em suas cabeças (snakestone ou dracontite), utilizada
para fins curativos; e por outro lado, com o olhar mortífero que este tipo de
monstro teria (o “olhar de fogo”). Em algumas sagas islandesas, como Sverris
saga 38, o símbolo também é citado como proteção nas batalhas.
Para o pesquisador
alemão Rudolf Simek (2007, p. 2) as características terríveis do Ægishjálmur foram originadas do
classicismo, derivados do grego aigis
(como o escudo de Zeus e a capa de Pallas Atenas). A palavra grega aigis pode ter se tornado elmo do terror
na etimologia folclórica como resultado da similaridade fonética com o nórdico œgr, terrível. E apesar da derivação
etimológica, Ægishjálmur não teria
relação com o gigante marinho Ægir.
Alguns
especialistas traduzem Ægishjálmur como
leme do pavor ou de Æegir, devido ao seu formato nos grimórios, um círculo
formado de oito braços em forma de tridentes, assemelhando-se ao leme de roda
das embarcações. O problema é que esse tipo de instrumento náutico só foi
conhecido na Escandinávia a partir do século XIII: os vikings utilizavam um
remo transversal como leme. Como Æegir era uma divindade relacionada ao mar,
talvez os eruditos nórdicos do final do medievo tenham fundido a este folclore
o tridente de Netuno, explicando a sua morfologia (ou mesmo o tridente do demônio,
utilizado no imaginário cristão). De qualquer maneira, não há imagens deste
símbolo anterior ao século XV, e não temos como provar que existiu entre os
vikings. Segundo Macleod e Mees (2006, p. 252), o Ægishjálmur foi uma forma cruzada e adaptada do símbolo tvímadr, presente no calendário rúnico
do século XIII.
Sintetizando, a
morfologia conhecida do Ægishjálmur possivelmente
foi originada de uma confluência tardo medieval entre tradições clássicas e
cristãs (o tridente), aplicada a caracteres não alfabéticos (o tvímadr), não tendo relação direta com a
tradição rúnica antiga.
Os
símbolos de Exu:
A
Umbanda possui diversas manifestações visuais sagradas conhecidas como pontos riscados,
em especial o da Pomba gira Menina.
Um círculo (considerado o universo da perfeição); um tridente (associado a
Exu), hexagrama e triângulos entrelaçados - estes sendo associados a rituais
(Sampaio e Gnerre, 2012). Segundo Solera (2014, p. 31), os sinais e símbolos
umbandistas correspondem a várias tradições advindas de religiosidades e diferenciadas
historicamente, como o Espiritismo, judaísmo, cristianismo e etnias indígenas e
africanas.
O
símbolo do tridente do Exu na Umbanda é uma apropriação derivada do sincretismo
religioso moderno, não tendo uma origem puramente africana (Sodré, 2009, p. 5).
O Exu é uma entidade Iorubá
relacionada com a fertilidade, cujos simbolismos mais conhecidos são um porte
fálico, cabaças e búzios. A Umbanda possui suas origens a partir de 1908,
derivada essencialmente de diversas tradições brasileiras, indígenas e africanas.
Devido a fortes perseguições e associações do Exu com a figura do diabo
judaico-cristão, os adeptos da Umbanda (em uma forma de resistência cultural)
passaram a adotar os simbolismos típicos da tradição medieval relacionada a
Satã: este orixá passa a ser representado de cor vermelha, com chifres e
tridente (a exemplo do Exu das sete encruzilhadas e Exu caveira). O tridente,
deste modo, foi um símbolo derivado do imaginário judaico-cristão sobre a
figura de Exu, mas que recebeu outros significados adaptados, como os diversos
caminhos que o orixá percorre e domina (Sodré, 2009, p. 9 e 12).
Ponto riscado Pomba Gira Menina; Ponto riscado Exu tranca gira. Fonte: http://umbandapaijoaodeangola.com.br/pontos-riscados-exu.php
Não
existem pesquisas mais detalhadas ou profundas sobre a iconografia simbólica
afro-brasileira. De nossa parte, realizamos alguns levantamentos
historiográficos para detectar possíveis origens coloniais dos símbolos com
tridente na religiosidade popular brasileira, mas não conseguimos nenhum
resultado. Analisando Souza (1986) e Calainho (2008), percebemos que os
símbolos adotados por escravos brasileiros durante o período colonial são
influenciados pela forma de cruzes latinas, Sol, estrelas, serpentes, caveiras
e flores, mas não existe nenhuma referência a tridentes ou qualquer similitude
com os ponto riscado de Exu antes do século XIX, reforçando sua origem
contemporânea.
Conclusão:
De
um ponto de vista histórico, os símbolos islandeses e os pontos riscados
dedicados a Exu não possuem qualquer tipo de conexão, influência ou
aproximação. Suas similitudes são apenas frutos de uma coincidência
morfológica. Ambos parecem ter sido influenciados pelo imaginário cristão, que
ressignificou tradições nativas de práticas mágicas com o referencial do
tridente. Outras tradições religiosas que possuem símbolos circulares com
terminais tridentiformes, como a ashtánga
yantra da tradição shivaista, também foram relacionados ao Ægishjálmur – mas do mesmo modo alguns
pesquisadores vem descartando essa similitude, considerando uma simples
coincidência (Foster, 2017).
Explicações
para as similitudes entre símbolos de culturas afastadas no tempo e no espaço
são populares hoje em dia, geralmente apelando para referenciais como
“emanações do inconsciente coletivo” ou produtos arquetípicos, mas não passam
de especulações sem bases mais rigorosas de investigação. O medievalista
francês Michel Pastoreau conclama para o perigo de anacronismo constante que
ronda o historiador quando estuda o simbolismo e a fragilidade da análise
universalista: “O que às vezes leva – erradamente – a crer na existência de uma
simbólica transcultural, apoiada em arquétipos (...) no mundo dos símbolos,
tudo é cultural e deve ser estudado em relação à sociedade que dele faz uso, em
determinado momento de sua história e em um contexto preciso”. (Pastoreau,
2002, p. 507).
Comparações
apressadas utilizando apenas a morfologia, sem um contexto histórico e social
mais rigoroso, podem criar conclusões fantasiosas como as que relacionam
conexões transcontinentais entre os povos pré-colombianos e os do Velho Mundo –
utilizando simplesmente a coincidência do formato das pirâmides que existem
entre ambos. Os símbolos mágicos constituem um terreno ainda repleto de
possibilidades para pesquisas futuras, mas os referenciais generalistas e
universalistas devem ser evitados pelas próximas gerações de pesquisadores.
Agradecimentos: à professora Dra. Dilaine Soares Sampaio (PPGCR-UFPB) pelo acesso à sua biblioteca sobre religiões afro-brasileiras e o suporte técnico sobre esta área de estudos.
Referências
bibliográficas:
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