UMA INTRODUÇÃO ÀS
FONTES DA MITOLOGIA NÓRDICA
Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)
johnnilanger@yahoo.com.br
Desde muitos séculos as
narrativas dos deuses e deusas nórdicas vem fascinando o mundo ocidental, seja
em manifestações artísticas, ou então em narrativas literárias. Mesmo o Brasil
já possuía certo interesse nesta temática, visto o envolvimento de alguns
acadêmicos do Império e da primeira república com as deidades nórdicas, a
exemplo do naturalista João Barbosa Rodigues e sua busca pelos “filhos de Odin”
na Amazônia. Na década de 1950 o escritor paulista Owen Mussolin, mais
conhecido como Esopinho, já escrevia obras de popularização sobre Mitologia Nórdica.
Mais recentemente, o sucesso do Dicionário
de Mitologia Nórdica, publicado pela editora Hedra, demonstra a imensa
atração que o público ainda mantém em conhecer mais profundamente o universo
que envolve as narrativas míticas da Escandinávia.
O presente estudo mantém
a continuidade de um processo de pesquisas nacionais que teve início no final
dos anos 1990 e se prolongou pela década de 2000. Inicialmente elas foram
influenciadas essencialmente pela academia francesa, em particular pela obra de
Régis Boyer. Posteriormente, tivemos toda uma série de eventos, publicações e
criações de grupos de pesquisas que vem fortalecendo e consolidando cada vez
mais os estudos nórdicos no Brasil. Assim, grande parte de nossas próprias
pesquisas mantém uma forte influência francesa, mas ao mesmo tempo, mantemos um
constante diálogo com o que se produz entre os escandinavistas europeus e
norte-americanos.
Em se tratando de um
estudo sobre mitologia, obviamente, temos que definir o que é mito. Uma tarefa
nada fácil, visto que existem dezenas de definições, de conceitos e
perspectivas teóricas. De nossa parte, somos inclinados a não tomar parte de um
referencial fenomenológico. Ou seja, não compartilhamos da visão de que existe
uma essência humana universal, atemporal, que constitui a base de todos os
mitos em todos os lugares e épocas. Em nossa concepção, os mitos devem ser
percebidos em um referencial histórico e ao mesmo tempo, cultural. Neste
sentido, os mitos são narrativas (orais, literárias ou visuais), acerca de
deuses, heróis, monstros, sobre a origem do mundo ou de elementos da natureza.
São estruturas de sentido, porque tem a função de explicar o mundo dos homens,
dos deuses e do cosmos. Podem ter conotação religiosa ou alguma ligação com o
“sagrado”, mas não necessariamente. Como diz Jens Peter Schjødt (2008, pp.
64-72), mitos contém referências sobre as coisas e os seres, são dramatizações,
enquanto os rituais são ferramentas de comunicação com o outro mundo (o mito
explica, o rito obtém). Essas narrativas são utilizadas em rituais ou pela
esfera religiosa, sem perder suas características ou serem independentes.
O
corpus: o acesso aos mitos nórdicos é realizado essencialmente
por três tipos de fontes – as literárias,
compreendendo uma série de manuscritos escritos e preservados durante a Idade
Média; as iconográficas, um conjunto
de imagens, esculturas, pinturas, referentes aos deuses germano-escandinavos,
datados do período das migrações ao fim do medievo; as arqueológicas, monumentos e inscrições aludindo aos mitos e
ritos nórdicos. Somente as duas últimas foram elaboradas durante a Era Viking,
criando toda uma série de questões metodológicas para o tratamento das fontes
literárias medievais. Para alguns pesquisadores, a memória dos rituais
pré-cristãos foi rapidamente esquecida com a cristianização, enquanto que as
narrativas mitológicas ainda eram preservadas no momento do registro escrito
(Schjødt, 2008, p. 87).
Detalhe do Codex Regius, poema Hávamál.
1. A
Edda Poética
A
mais importante e tradicional fonte para o estudo da Mitologia Nórdica, possui
material diferenciado em forma, conteúdo e idade. Essencialmente composto pelo
manuscrito conhecido como Codex Regius (Ggs
2365 4to, Gammel kongelig samling),
com essa denominação porque fazia parte do tesouro da Biblioteca Real de
Copenhagen até os anos 1970, quando então foi devolvido para a Islândia. Este
manuscrito foi redigido em um pergaminho (medindo 19 por 13 centímetros e com
45 folhas, faltando 8 folhas conhecidas como “a grande lacuna”), escrito na
segunda metade do século XIII e contendo 29 poemas, dez tratando de temas
mitológicos e 19 com material heroico germânico e escandinavo dos tempos
antigos (Gunnell, 2007, p. 82). Outros manuscritos que contém material éddico
são o AM 748, 4º, o Hauksbók (Codex
n. 544), o Flateyjarbók (Codex n.
1005), o Codex Wormianus (AM 242
fol.) e o Codex Regius da Edda em Prosa (Codex n. 2367).
O
termo “poema éddico” se refere a poema anônimos que tratam de mitos ou do mundo
heroico nas terras nórdicas utilizando as métricas ljóðaháttr, fornyrðislag
ou málaháttr. A origem dos poemas é
controversa, segundo alguns seriam de datas e locais diferentes. O manuscrito Codex Regius contém material antigo com
raízes pagãs, mas existe controvérsia sobre este material ser de origem oral ou
ter sido influenciado pelo cristianismo. Enquanto alguns escandinavistas
consagrados alegam que os poemas éddicos contém mitos verdadeiros (Lindow,
2005, p. 28) outros questionam seu caráter de fonte primária para o estudo dos
mitos do período pagão (Abram, 2011, p. 20).
Sabemos
muito pouco sobre as origens ou a história original tanto do manuscrito Codex Regius quanto do AM 748 4to. O Codex Regius foi escrito em 1270 e
acabou sendo possuído por Brynjólfur Sveinsson em 1643. Inclusive foi este
bispo islandês que denominou a coleção de Edda,
pela proximidade de conteúdo com os poemas preservados na obra homônima de
Snorri Sturluson (Gunnell, 2007, p. 83). Quanto ao AM 748 4to, deve ter sido
escrito entre 1300 a 1325 (Dronke, 1997, p. xi).
A
forma dos poemas éddicos é variável. Enquanto alguns poemas foram realizados na
forma de baladas, outros são poemas em forma de perguntas e respostas. Devido
ao conteúdo e temas de seus cantos, a Edda
Maior é dividida em duas partes ou seções muito diferenciadas. A primeira
parte ocupam os poemas mitológicos e a segunda as façanhas dos heróis da
tradição germano-escandinava. A organização do Codex Regius é lógica, mas não completamente harmônica e não
existem evidências de que os poemas circulavam antes deste códice (Abram, 2011,
p. 18).
Os
poemas inseridos nos manuscritos possuem características em comum com a poesia
escáldica: conteúdo mitológico; concepções éticas; sabedoria heroica do Norte
antigo; todas foram compostas em um estilo simples e como as baladas e canções
folclóricas são anônimas e objetivas, nenhuma traindo os sentimentos ou
atitudes dos seus autores. Essa unidade numa aparente diversidade não deixa
dúvidas que o coletor anônimo que reuniu todas as baladas e fragmentos de poemas
que viviam em sua memória já estava comprometido com a sua escrita (Hollander,
2008, p. xv). Mas as diferenças entre a poesia éddica e escáldica também
existem, pois enquanto a primeira forma de poesia é considerada uma fonte mais
importante para se estudar a mitologia, a escáldica é superior em questões
religiosas (Lindow, 2005, p. 32).
O Codex Regius
é iniciado pela majestosa Vǫluspá (A
profecia da profetisa), a mais completa fonte nórdica antiga sobre as
concepções do mundo, suas origens e destino e o primeiro poema que possui Odin
como figura central, apresentando temáticas gnômicas, mitológicos e
conhecimento mágico. Os três poemas seguintes são principalmente didáticos (Hávamál, Vafþrúðnismál, Grímnismál),
lidando com as visões do supremo deus Odin; um poema envolve o deus da
fertilidade Freyr (Skírnismál); cinco
poemas tratam predominantemente do deus Thor (Hárbarðsljóð, Hymiskviða, Lokasenna, Þrymskviða e Alvíssmál). Outros poemas geralmente incluídos nas
edições modernas da Edda Poética não
fazem parte do Codex Regius (como Baldrs draumar, Rígsþula, Hyndluljóð e Gróttasöngr) e são todos provenientes
de códices do século XIII e com conteúdos mitológicos. Rígsþula é incompleto, narra como a sociedade foi formada em
classes e recebeu a instituição da realeza; Baldrs
draumar relata as profecias da morte de Balder por meio da interação entre
Odin e uma profetisa morta; Hyndluljóð
comenta sobre a genealogia do herói
humano Ottar, que precisa conhecer a sua linhagem para reivindicar a sua
herança; Gróttasöngr, poema relatando
duas gigantas que são forçadas a trabalhar por Frodi – um semilendário rei
dinamarquês, cujo reinado é destruído por esses maus tratos.
De maneira geral, os pesquisadores argumentam que não
existem evidências de que os poemas datem de antes do século VIII, mas neste
caso, as preocupações linguísticas se dividem em dois grupos: os que acreditam
que o mais importante é o conteúdo dos poemas (Preben Sørensen, Jens Schjødt),
enquanto para outro grupo o mais relevante é a forma. A questão básica se o Codex Regius reflete a composição
original dos poemas é altamente polêmica, pois a tradição nórdica oral variava
de época e de local para local. Também a mistura de memória a improvisação
refletia a forma dos poemas, fazendo com que o material sobrevivesse com
alterações – apesar de expressões e fórmulas sobreviverem intactas. Os poemas
mitológicos foram compostos por autores cristãos, mas possuem raízes em um
período bem anterior à cristianização, esta efetuada entre os anos 999 a 1000.
Estes poemas são uma imagem genuína da verdadeira natureza do paganismo nórdico
antigo (Gunnell, 2007, p. 93, 94).
A Edda Poética
contém poemas datados de épocas bem diferenciadas e de locais externos à
Islândia, especialmente a Escandinávia continental, mas também de regiões como
as ilhas britânicas ou de localidades com influências célticas. As influências
cristãs também aparecem em alguns poemas, como a relação entre o Hávamál e a Disticha Catonis, ou a Vǫluspá
e a Prophetia Sibyllae magae.
Tabela 1:
Edda Poética – manuscritos, datação,
forma, narrativa (Gunnell, 2007, p. 97; Abram, 2011, p. 17).
Poema
|
Fonte
|
Datação
|
Tipo
|
Protagonista
|
Vǫluspá
A profecia da adivinha
|
Codex Regius/Hauksbók
|
Antigo (?)
|
Monólogo
|
Odin
|
Hávamál
Os ditos de Hár
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Monólogo
|
Odin
|
Vafþrúðnismál
Os ditos de Vaftrúdnir
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Diálogo
|
Odin
|
Grímnismál
Os ditos de Grímnr
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Monólogo
|
Odin
|
Skírnismál
Os ditos de Skírnir
|
Codex Regius/AM 748 4to
|
Antigo
|
Diálogo
|
Freyr
|
Hárbarðsljóð
O canto de Hárbard
|
Codex Regius/ AM 748 4to
|
Antigo
|
Diálogo
|
Odin/Thor
|
Hymiskviða
O cantar de Hýmir
|
Codex Regius/AM 748 4to
|
Recente
|
Narrativa-discurso
|
Thor
|
Lokasenna
Os escárnios de Loki
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Diálogo
|
Loki/Thor
|
Þrymskviða
O cantar de Trym
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Narrativa-discurso
|
Thor
|
Völundarkviða
O cantar de Volund
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Narrativa-discurso
|
Nenhum
|
Alvíssmál
Os ditos de Alvis
|
Codex Regius
|
Recente
|
Diálogo
|
Thor
|
Helgakviða Hundingsbana I
O cantar primeiro de Helgi o matador de Húnding
|
Codex Regius
|
Recente
|
Narrativa-discurso
|
Helgi
|
Helgakviða Hjörvarðssonar
Cantar de Helgi o filho de Hiórvard
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Diálogo (Narrativa)
|
Helgi
|
Helgakviða Hundingsbana
II
O cantar segundo de Helgi o matador de Húnding
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Diálogo (Narrativa)
|
Helgi
|
Grípisspá
A profecia de Grípir
|
Codex Regius
|
Recente
|
Narrativa-discurso
|
Grípir
|
Reginsmál
Os ditos de Regin
|
Codex Regius/Flateryjarbók
|
Antigo
|
Diálogo
|
Regin
|
Fáfnismál
Os ditos de Fáfnir
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Diálogo
|
Fáfnir
|
Sigrdrífumál
Os ditos de Sigrdrifa
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Monólogo discursivo
|
Sigrdrífa
|
Brot af Sigurðarkviðu
Fragmento do cantar de Sigurd
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Narrativa-discurso
|
Brýnhildr
|
Guðrúnarkviða I
A primeira canção de Guthrun
|
Codex Regius
|
Recente
|
Narrativa-discurso
|
Gudrun
|
Sigurðarkviða hin skamma
O cantar breve de Sigurd
|
Codex Regius
|
Recente
|
Narrativa-discurso/ Monólogo discursivo
|
Brynhildr
|
Helreið Brynhildar
A viagem a Hel de Brýnhildr
|
Codex Regius
|
Recente
|
Monólogo discursivo
|
Brynhildr
|
Guðrúnarkviða II (in
forna)
Cantar segundo de Guthrun
|
Codex Regius
|
Recente (?)
|
Monólogo/ Monólogo discursivo
|
Gudrun
|
Guðrúnarkviða III
Cantar terceiro de Guthrun
|
Codex Regius
|
Recente
|
Narrativa-discurso
|
Gudrun
|
Oddrúnargrátr
O lamento de Oddrun
|
Codex Regius
|
Recente
|
Monólogo discursivo
|
Oddrun
|
Atlakviða
A canção de Atli
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Narrativa-discurso
|
Nenhum
|
Atlamál in groenlezko
Os ditos groelandeses de
Atli
|
Codex Regius
|
Recente
|
Narrativa-discurso
|
Nenhum
|
Guðrúnarhvöt
O lamento de Gudrun
|
Codex Regius
|
Recente
|
Monólogo discursivo
|
Gudrun
|
Hamðismál
Os ditos de hámdir
|
Codex Regius
|
Antigo
|
Narrativa-discurso
|
Nenhum
|
Baldrs draumar
Os sonhos de Baldr
|
AM 748 4to
|
Antigo (?)
|
Diálogo/ Narrativa-discurso
|
Nenhum
|
Rígsþula
A canção de Rig
|
Codex Wormianus
|
Antigo
|
Narrativa (?)
|
Rígr
|
Hyndluljóð
A canção de Hyndla
|
Flateryjarbók
|
Recente
|
Monólogo discursivo
|
Freyja/Hyndla
|
Gróttasöngr
A canção de Grotti
|
Codex Regius da Edda em Prosa
|
Antigo
|
Narrativa-discurso
|
Fenia/Menia
|
Edições modernas: Em
islandês antigo as melhores edições são os dois volumes de Eddukvæði (Reykjavík: Hið íslenzka fornrítafélag, 2014),
organizados por Kristjánsson e Ólason, ambos baseados no Codex Regius. No primeiro volume, foram incluídos os poemas
mitológicos, precedido por uma longa análise de Vésteinn Ólason e uma
explicação do termo Edda. No segundo
volume, foram reunidos os poemas heroicos.
Traduções:
Em português até o momento foram traduzidos somente alguns poemas éddicos. O Hávamál foi publicado na revista Mirabilia n. 17 (2013). O Grímnismál foi traduzido por Pablo Miranda e publicado na
revista Roda da Fortuna 3(2), 2014. O
mesmo pesquisador finalizou a tradução completa da Vǫluspá
do
nórdico antigo para o português e será publicada pelo periódico Scandia: Journal of Medieval Norse Studies.
No
Dicionário de Mitologia Nórdica (São
Paulo: Hedra, 2015) foram incluídos alguns poemas éddicos do Codex Regius, como Þrymskviða (tradução de Yuri Fabri Venâncio), Rúnatal (tradução de Theo Borba Moosburger), fragmento do Grímnismál (tradução de Pablo Gomes de
Miranda) e outros classificados dentro do conceito de Eddica Minora: Darraðarljóð
(tradução de Yuri Fabri Venâncio) e Buslubæn
(tradução de Johnni langer).
Uma
boa opção para quem não domina as línguas escandinavas são as traduções ao
espanhol: Textos mitológicos de las Eddas
(Madrid: Miraguano, 2013) de Enrique
Bernardez (somente excertos); Edda Mayor
(Madrid: Alianza, 2016) de Luis Lerate de Castro, a melhor opção em língua
hispânica. Também em outras línguas neolatinas temos interessantes edições. Em francês,
existe a famosa tradução de Régis Boyer (L´Edda
Poétique, Paris: Fayard, 1992) e em italiano Il canzoniere eddico (Milano: Garzanti, 2009), de P. Scardigli e M.
Meli.
Em inglês ocorre grande
quantidade de boas traduções acadêmicas. Uma das melhores, com uma grande
quantidade de notas, comentários às traduções e comparações morfológicas entre
os manuscritos é a edição de Ursula Dronke (The
Poetic Edda, 3 volumes, Oxford: Clarendon Press, 1969-2011), mas
infelizmente incompleta devido ao seu falecimento. Outras edições consagradas
são as de Lee Hollander e Henry Adams Bellows. A nova edição revista de
Carolyne Larrington (The Poetic Edda,
Oxford, 2014) vem sendo uma das mais utilizadas entre os escandinavistas
contemporâneos.
Manuscrito ÍB 299 4to, contendo uma versão da Edda Menor, Islândia, século XVIII.
2. A
Edda em Prosa
Manuscritos:
A Edda em Prosa, também denominada de
Edda Menor ou Edda de Snorri, é uma obra supostamente escrita pelo intelectual
islandês Snorri Sturluson (1179-1241) em 1220. Seu nome aparece em somente um
dos quatro manuscritos principais da obra, juntamente com o nome Edda: o manuscrito DG 11 ou Codex Upsaliensis (U), c. 1300-1325. Ela
também circulou anonimamente no medievo em outros manuscritos: o GKS 2367 4º ou
Codex Regius (R), c. 1300-1350 e AM
242 fol ou Codex Wormiamus (W), c.
1350. Nestes quatro manuscritos a obra apresenta variações e textos diferentes
entre si, o que leva alguns pesquisadores a questionarem o conceito de “texto
original” na qual todas as edições modernas se baseiam (Boulhosa, 2004, p. 13-14). Outro manuscritos são o Codex Trajectinus (T 1374), redigido em
1600 e em estado completo; e os fragmentários AM 748 4º (c. 1300-1325); AM 757
a 4º; AM 748 II 4to (c. 1400) e AM 756 4º (c. 1400-1500).
Conteúdo:
A Edda em Prosa é um manual com
técnicas de composição da poesia escandinava. A maioria dos pesquisadores o
concebe com um caráter pedagógico, com a intenção de preservar a memória das
antigas artes poéticas, ameaçadas por novas tendências literárias. A Edda em Prosa possui quatro seções:
Prólogo, Gylfaginning, Skáldskaparmál e Háttatál.
O Prólogo apresenta
elementos sobre o criador e o mundo natural, com diversos elementos bíblicos e
cristãos, somados e a um referencial fortemente evemerista. Por exemplo, ao
tratar de Tróia e seus descendentes, que teriam migrado para a Escandinávia,
fundado dinastias e depois sendo considerados deuses pelos habitantes da região.
Alguns acadêmicos concebiam o Prólogo como um texto apócrifo, não pertencendo
ao “texto original” da obra de Snorri, algo que vem sendo revisto e contestado.
O Gylfagging (O engano de Gylfi)
possui trechos intercalados com humor e ironia, sendo um diálogo entre o rei
Gylfi e os deuses nórdicos sobre vários temas, incluindo criação e destino do
cosmos. Apresenta uma visão centro-medieval dos mitos nórdicos, com ampla
influência clássica e bíblica e em alguns momentos, hibridizada com o
referencial pré-cristão. O Skáldskaparmál
(Dicção poética) é a seção mais longa, um diálogo entre Bragi e Aegir
recenseando os sinônimos e metáforas da poesia nórdica (heiti e kenningar), ambos
originados da Mitologia Nórdica. O Háttatál
(lista de métricas) é composto por 102 estrofes na forma de elogios ao rei
Hákon e ao jarl Skúli, redigidas com várias métricas diferentes e está ausente
da maioria das edições da Edda em Prosa
devido ao seu conteúdo extremamente técnico e intrincado.
Modelos e fontes:
A obra de Snorri não tem precedente literário nem na Escandinávia e nem na
Europa. Em termos de poesia nativa, somente a Irlanda tem casos semelhantes,
visto que a maioria dos escritores europeus escrevia em língua nativa (Faulkes,
2005, xx). O caso do Gylfaginning é
ainda mais peculiar, visto que escritos mitográficos não eram comuns no
medievo. Na área germano-escandinava, a sistematização de Snorri é a mais
completa e interessante que foi preservada relativa aos mitos e lendas, sendo
também considerada lucida, coesa, linear (Lindow, 2005, p. 36). A tradição
escandinava em compor poemas de instruções mitológicas como diálogos ou
monólogos também pode ser vista em Vafþrúðnismál,
Grímnismál e Baldrs draumar. Muitas
das narrativas de Gylfaginning foram
baseadas na Edda Poética em confluência
com esquemas bíblicos ou da poesia escáldica (esta segunda mais influente em Skáldskaparmál). Mas nem tudo que está
contido na Edda em Prosa pode ser
considerado como material antigo (tanto oral quanto escrito). Como um
intelectual, Snorri interpretou a Mitologia Nórdica enquanto um antiquário mas
não como religioso (Faulkes, 2005, xxi).
Interpretações:
As duas principais interpretações contemporâneas da obra de Snorri seguem em
caminhos diferenciados. A primeira, enfatiza que a Edda em Prosa é uma adaptação dos mitos nórdicos com o mundo
cristão, mas que é possível utilizá-la como fonte para a Mitologia Nórdica.
Isso é referendado pelo fato de que muitos elementos em Snorri são confirmados
por outras fontes, como a poesia éddica, escáldica e imagens preservadas em
monumentos. Apesar da influência de seu contexto, a Edda contém uma estrutura pagã, aos pesquisadores resta encontrar
os modos e metodologias para o seu estudo (Schjødt, 2008, pp. 97-100).
A
segunda enfatiza a hibridização e a influência do cristianismo centro-medieval
em sua obra, criando uma nova mitologia baseada na tradição e parcialmente nas
atitudes e crenças cristãs do período (uma meta-mitologia do norte), a exemplo
da distinção moral entre pagãos que vão para Hel ou para o salão de Odin após a
morte. Assim, os mitos preservados por Snorri não pertencem originalmente à
“verdadeira” Mitologia Nórdica (Abram, 2011, pp. 211-221).
Edições:
A Viking Society Web Publications disponibiliza os melhores recursos para o estudo da Edda em Prosa, realizados por Anthony Faulkes. Em primeiro lugar,
seis estudos sobre a obra de Snorri Sturluson, além de análises sobre os
manuscritos (Skáldskaparmál 1 e 2,
1998); a versão do Codex Regius (Edda: Prologue and Gylfaginning, 2005);
a versão do Codex Regius traduzida ao
inglês com as suas quatro seções (Edda,
Everyman, 1987); a versão do manuscrito de Uppsala em nórdico antigo e em
inglês (The Uppsala Edda: DG 11 4to,
2012). A quarta seção, Háttatal,
também recebeu uma edição do nórdico antigo (com amplas notas explicativas,
glossário e discussões codicológicas) de Anthony Faulkes (Edda: Háttatal, Clarendon Press, 1991). A mesma seção, ausente da
maioria das edições contemporâneas, já havia sido traduzida ao inglês em 1974
por Abbie Hartzel Martin (University of North Carolina at Chapel Hill). Uma
edição muito popular em inglês é a de Jesse Byock (The Prose Edda, Penguin, 2005), mas sem o detalhamento e o
tratamento documental das traduções de Faulkes.
Traduções:
Em
língua portuguesa foi realizada a edição de Marcelo Magalhães Lima (Edda
em Prosa. Rio de janeiro: Numen, 1997). Trata-se de uma péssima tradução do
inglês ao português, com ausências de trechos prosaicos e poéticos e traduções
totalmente equivocadas. Não recomendado para iniciantes, popularização ou
pesquisas acadêmicas. Em 2014 Artur Avelar realizou outra tradução do inglês ao
português (Edda em Prosa: Gylfaginning e
Skáldskaparmál, eBook Kindle, Barbudânia), muito mais cuidadosa do que a
edição de Marcelo Lima, mas sem um tratamento acadêmico mais refinado. O
prólogo da Edda em Prosa foi
traduzido ao português na edição 12 do boletim Notícias Asgardianas (2017), feita por Maria Adele Cipolla e Lorenzo Sterza. A pesquisadora
Thais Gomes Trindade teve seu projeto (Uma
tradução comentada da Edda de Snorri) aprovado para o mestrado em tradução
na USP (entrada em 2018), relativo à tradução do Prólogo e Gylfaginning do islandês antigo ao português moderno.
Em línguas neolatinas
temos várias boas opções de traduções diretas do nórdico antigo. No espanhol
existe a versão de Jorge Luis Borges, mas somente para a segunda parte: La alucinacion de Gylfi (Madrid:
Alianza, 1984), enquanto que a edição de Luis Leraste de Castro traz as três
primeiras seções (Edda Menor, Madrid:
Alianza, 2016), do mesmo modo que a francesa de François-Xavier Dillman (L´Edda, Paris: Gallimard, 1991) e a
italiana de Giana Chiesa Isnardi (Edda di
Snorri, Milano: Tea, 2003). Todas as traduções da Edda em Prosa para línguas neolatinas omitiram a segunda parte do Skáldskaparmál (que inclui catálogos de
sinônimos poéticos) e o Háttatál por
completo, do mesmo modo que a edição em inglês de Jesse Byock (The Prose Edda, Penguin, 2005). Ao espanhol,
a primeira seção do Háttatal foi
traduzida inteiramente, junto a uma sinopse das estrofes 9 a 102, no livro Poesía antiguo-nórdica, de Luis Lerate
(Alianza Tres, 1993).
Conceito:
Trata-se de um gênero poético criado individualmente pelos poetas da Era Viking
(skáld, escaldo), composto não
somente na Islândia, mas também na Noruega. A poesia era associado com Odin e o
mito do roubo do hidromel, associado estreitamente a arte poética com a
Mitologia Nórdica. Muitos poemas descrevem os deuses bem antes da conversão,
com especial ênfase em Thor, mas apenas em seu aspecto de combate aos gigantes
(sem nenhuma referência a promotor de fertilidade, por exemplo). As narrativas
escáldicas não são religiosas, mesmo em seu uso como metáforas mitológicas e da
relação entre kenningar e mito (Lindow, 2005, p. 27), tendo como temas bravas
proezas, conflitos de honra, sortes trágicas, relações amorosas, elementos
didáticos e burlescos, mito e magia, cuja ação é exposta de modo direto e
simples, mas ao mesmo tempo sendo um refinado produto artístico. Algumas obras
poéticas foram baseadas em imagens heroicas e míticas pintadas em escudos
pendurados nos salões reais (Lerate, 1993, pp. 9-18).
Interpretações:
Além de qualquer associação mítica, a poesia escáldica era uma mercadoria na
Escandinávia Medieval, usada para conferir ou destruir a honra e como
consequência, considerada um poderoso agente no dinamismo político e social da
época. Príncipes podiam recompensar os elogios poéticos com navios com ouro,
assim como um mau poeta podia perder a cabeça (Whaley, 2007, p. 480). A maior
característica da poesia escáldica, descontando sua métrica, é o seu uso de
kenning – uma construção perifrásica e metafórica. Ao utilizar kenningar de
mitos, a audiência do poeta deveria ter um bom conhecimento das narrativas em
geral, pois elas não eram um bom meio de se ter aprendizado sobre mitologia.
Apesar das dificuldades de se analisar a poesia escáldica, ela é importante
para se compreender como os mitos foram modificados com o tempo, sendo uma das
poucas evidências diretas do período pagão (Abram, 2011, p. 16).
Edições:
O pesquisador Ernest Albin Koch realizou uma grande coletânea da poesia
escáldica em nórdico antigo, Den
norsk-isländska skaldediktningen (dois volumes, Lund, 1946 e 1949). Porém a
mais completa sistematização do tema é The skaldic Project contando com acesso a
poesia rúnica, textos em nórdico antigo, manuscritos, escaldos, editores,
bibliografia e vários mecanismos de busca. A editora Brepols prevê a publicação
de oito volumes do projeto, sob a organização geral de Margaret Clunies Ross,
já contando com várias edições (Poetry
from treatises on poetics, com as seções poéticas do Skáldskaparmál, Háttatal e
Háttallykill; Poetry in Fornaldarsǫgur, com os poemas inseridos nas sagas
lendária; Poetry from the King´s sagas,
com os poemas das sagas reais).
Traduções:
em inglês as traduções mais populares são de Lee Hollander, com várias edições
e reedições (Old Norse Poems e The Skalds: A Selection of Their Poems).
Em espanhol uma boa
coletânea de poesia escáldica com conteúdo mitológico foi traduzida por Luis
Lerate (Poesía antiguo-nórdica: antologia
siglos IX-XII, Alianza Tres, 1993), com destaque para Ynglingatal, Haraldskvæði,
Hákonarmál e Þórsdrápa.
Detalhe da Igreja de Hylestad, Noruega, séc. XII, contendo cena da Mitologia Nórdica.
4. As
sagas lendárias
Conceito:
As fornaldarsögur (sagas lendárias)
são um subgênero das sagas islandesas, caracterizadas por serem anônimas e
tendo como escopo narrativas envolvendo heróis num universo lendário e mítico.
As 25 sagas lendárias possuem relação direta com a tradição éddica e com a
tradição germânica antiga, como Beowulf
e a Canção dos Nibelungos. Trata-se
de um gênero híbrido entre o mundo heroico, o mito, o folclore e o romance
continental, realizadas essencialmente para entretenimento, mas também
associadas ao aprendizado aristocrático no contexto do século XII. Não possui
valor histórico como as sagas de família (Tulinius, 2007, pp. 447-461).
Interpretações:
Alguns pesquisadores identificam três tipos de paganismo nas sagas lendárias: a
nomeação direta dos deuses e as formas de práticas rituais; os remanescentes
menos transparentes da tradição mitológica; o uso inconsciente de elementos que
provavelmente tiveram alguns elementos dos antigos ritos pagãos (Schjødt, 2008,
p. 102). Para outros, entretanto, o paralelo entre o conteúdo das sagas
lendárias e as tradições antigas dos mitos e ritos nórdicos nem sempre pode ser
estabelecido (ou sequer existe) e deve ser comparado a outros tipos de
literatura fantástica (Abram, 2011, p. 24).
Edições:
A
quantidade de edições em nórdico antigo das sagas lendárias é muito vasta, mas
pode ser rastreada em detalhes pelo portal Stories
for all time: The Icelandic fornaldarsögur (http://www.fasnl.ku.dk),
mantido pela Universidade de Copenhage. Nele também é possível consultar os
diferentes manuscritos medievais, todas as traduções disponíveis em várias
línguas por cada saga, além de bibliografias especializadas.
Na França uma grande
quantidade de sagas recebeu inúmeras edições e traduções desde o final do
século XIX, mas destacamos essencialmente as traduções de Régis Boyer: Saga des Völsungar; Saga de Hervöret duroi Heiðrekr; Saga de Hrólfr kraki; Saga de
Gautrekr; Saga de Saga d’Oddr aux
Flèches; Saga de Ketillle Saumon;
Saga de Sturlaugr l’Industrieux.
Em italiano algumas sagas
lendárias foram traduzidas, como La saga
di Hervor (Unipress, 1993), La saga
dei Volsunghi (Edizioni dell'Orso, 1993), e La saga di Bósi (Carocci, 2008).
Na Espanha todas as sagas
lendárias foram traduzidas, com destaque para Saga de los Volsungos (Editorial Gredos, 1998); Saga de Ragnar Calças Peludas (Tilde,
1998); Sagas islandesas (Madrid,
2003); Sagas islandesas de los tiempos
antigos (Miraguano, 2007); Saga de
Fridthjóf el Valiente y otras sagas islandesas (Miraguano, 2009); Saga de Yngvarel Viajero y otras sagas
legendarias de Islandia (Miraguano, 2011); Saga de Hervör (Miraguano, 2008); Saga de Bósi (Miraguano, 2014).
A única saga lendária
traduzida em nossa língua vernacular até o momento foi Saga dos Volsungos (São Paulo: Hedra, 2009), com tradução do
nórdico antigo ao português de Theo Borba Moosburger. Trata-se de uma bela
edição, com uma detalhada introdução analítica, excelentes notas de rodapé e um
resumo narrativo em seu desfecho.
Destacamos ainda uma
importante fonte literária para o estudo dos mitos nórdicos, mas que pertence
ao subgênero das sagas reais, a Ynglinga
saga, tradicionalmente também creditada a Snorri Sturluson. Incluída na
primeira parte do Heimskringla, descreve
a história da dinastia dos Ynglingos e a chegada dos deuses na Escandinávia,
como Freyr. A perspectiva evemerista lembra muito o Prólogo da Edda em Prosa. Nesta fonte surge a mais
famosa descrição dos berserkir, além de comentários sobre Odin, Freyja e outras
divindades. Em inglês esta saga está disponível na primeira parte do livro Heimskringla (The Saga of the Ynglings),
traduzido por Lee Hollander (University of Texas, 2009). Em espanhol existe a
excelente edição La saga de los Ynglingos,
de Santiago Ibañez Lluch (Miraguano, 2012), com uma extensa introdução
analisando o contexto social e histórico da saga, os manuscritos e os detalhes
técnicos da tradução.
Deus Tyr na bracteata de Trollhättan, suécia, período das migrações.
5. Fontes
iconográficas
Corpus:
A cultura material proveniente da Escandinávia antes, durante e depois da Era
Viking fornece elementos imprescindíveis para o estudo das crenças deste
período, mas nem todas possuem valor para o estudo dos mitos. Nem todas contam
algum tipo de estória, sendo apenas meios de informações não narrativas. Os
tipos mais comuns de fontes iconográficas utilizadas pelos pesquisadores para o
estudo da Mitologia Nórdica são: petróglifos da Idade do Bronze; bracteatas do
período das migrações germânicas; estatuetas, pingentes e objetos decorativos
da Era Viking; estelas rúnicas e pintadas da Era Viking; plaquetas votivas;
monumentos nórdicos e cruzes da área anglo-saxã; tapeçarias da Era Viking e do
período medieval.
Petróglifos
da Idade do Bronze: diversas pinturas e gravuras
(petróglifos) realizados na Escandinávia durante o período do Bronze, sendo
grupo mais importante as pinturas rupestres de Tanum, Bohuslän (sul da Suécia),
datadas de 1.800 a 400 a. C. Diversos mitólogos (como Régis Boyer e Hilda
Davidson) acreditavam que algumas destas representações poderiam remeter a
divindades nórdicas (como Odin e Thor) muito antes da chegadas dos povos
germânicos ao local, uma hipótese bem polêmica e contestada. Não há como relacionar
diretamente as cenas da arte rupestre com todas as fontes medievais da
mitologia germano-escandinava, mas algumas pesquisas indicam que certos
elementos, como questões cosmológicas, parecem estar extremamente inseridas
nestas imagens. A jornada do Sol, representações de árvores e animais cósmicos,
símbolos solares, pássaros, armas, embarcações e cogumelos, símbolos e formas
geométricas não figurativas contém diversas conexões com narrativas preservadas
muito tempos depois ou então, com elementos da mitologia indo-européia
(Kristiansen, 2010, pp. 93-115). O
site Underslös Museum fornece uma extensa galeria de fotografias
sobre os principais painéis de diversos sítios rupestres escandinavos, além de
estudos analíticos e arquivos de imagens por temas (motivos) dos conjuntos.
Bracteatas:
Constituem em tipos de medalhões ou moedas de ouro utilizadas como ornamentos
durante o período das migrações germânicas (ver verbete Bracteatas no Dicionário de História e Cultura da Era
Viking, São Paulo, Hedra, 2017). Diversos acadêmicos estão convencidos que
muitas imagens destes objetos trazem alusões a divindades como Odin e seu
cavalo (também junto a símbolos como suásticas, lanças e formas não figurativas),
Tyr tendo a sua mão devorada, Freyr, Balder sendo morto por Höðr, etc. O site Arild Hauges Runer fornece um ótimo
índice tipológico e fotográfico destas fontes.
Estelas
rúnicas e pintadas da Era Viking: Existem centenas de
objetos e monumentos nórdicos contendo imagens associadas direta ou
indiretamente aos mitos. Nem sempre estas imagens possuem conexão com o
conteúdo das inscrições rúnicas dos monumentos. As cenas mais comuns nas
estelas rúnicas são as que se relacionam com o ciclo nibelungiano,
especialmente a morte de Fáfnir por Sigurd. Uma excelente tipologia analítica
destes monumentos é disponível no livro The
Viking-Age Rune-Stones, de Birgit Sawyer (Oxford, 2003), inclusive com
descrições de imagens por monumentos (p. 233). Outra importante publicação
contendo extensas imagens de monumentos, objetos, painéis e bracteatas com
conteúdos mitológicos é Anthologie
Runique, de Alain Marez (Les Beles Lettres, 2007). A tese de doutorado de
Marjolein Stern (Runestone images and visual
communication in Viking Age Scandinavia, Universidade de Nottingham, 2013)
não traz fotografias, mas contém uma tabela infográfica com a relação de quase
todas as estelas rúnicas da Era Viking que contém imagens, inclusive com
descrição detalhada de cada uma (incluindo temas mitológicos), ou seja, um
instrumento imprescindível aos pesquisadores. O site Runor contém uma ampla variedade
de fotografias de monumentos rúnicos, bem como Arild Hauges Runer.
Os
monumentos mais importantes para o estudo da Mitologia Nórdica são as estelas
da ilha de Gotland, Suécia, contendo diversas cenas importantes, como a pesca
da serpente do mundo, a entrada ao Valhalla, cenas de batalhas, valquírias,
Odin, entre outras. O livro Stones, ships
and symbols (Gidlunds, 1988; tradução em francês: Les pierres gravées de Gotland, Michel de Maule, 2007) de Erik
Nylén e Jan Lamm contém uma das melhores tipologias e recenseamento dos
monumentos, com ampla quantidade de imagens e análises. Destacamos ainda o
estudo em português As estelas da ilha deGotland e as fontes iconográficas da mitologia viking com uma proposta de classificação tipológica deste material.
Hogbacks,
monumentos e cruzes da Inglaterra: Uma série de monumentos
nórdicos foram realizados durante o período de ocupação da Inglaterra
anglo-saxônica, alguns ainda em um contexto pagão e outros já hibridizados com
o cristianismo. Alguns destes objetos tratam do mundo odínico e seus símbolos
(como os hogbacks), mas mesmo cruzes cristãs contém cenas mitológicas (a pesca
da serpente do mundo por Thor, a morte de Odin, cenas do Ragnarok, entre
outras). Para imagens
destas fontes, consultar os livros Viking
Age Sculpture in Northern England (Collins Archaeology, 1980) e Early medieval stone monuments (Boydell,
2015). O
site The corpus of Anglo Saxon StoneEsculptures possui um amplo arquivo fotográfico
separado por regiões e monumentos. Um estudo em português sobre o tema é A morte de Odin? As representações doRagnarök na arte das Ilhas Britânicas.
Tapeçarias nórdicas:
Um excelente material para estudo de diversos cenas e motivos míticos são uma
série de tapeçarias feitas para decorações em parede da Era Viking e período
medieval. Para informações detalhadas de cada uma, consultar os verbetes
Tapeçaria de Bayeux, Oseberg, Överhogdal e Skog, incluídos no Dicionário de História e Cultura da Era
Viking (São Paulo, Hedra, 2017). Para boas imagens destas fontes, consultar
o Jamtli museum, Kulturhistoriskmuseum e Statens historiska museum.
6. Instrumentos
de pesquisa:
Recursos
linguísticos: É recomendável aos estudantes e
pesquisadores o estudo do idioma vernacular dos manuscritos, algo indispensável
com o avanço individual de cada pesquisa. Em espanhol, um excelente manual
introdutório é Antiguo islandês: Historia
y lengua, de Maria Pilar Fernández Álvarez (Madrid: Ediciones Clásicas,
1999). Além de um detalhado panorama histórico, a autora fornece diversos
elementos fonéticos, morfológicos e sintáticos da língua. Recentemente foi
publicado o manual Viking Language,
em dois volumes (Jules William Press, 2013) de Jesse Byock. Também existem excepcionais obras de consulta e
referência, como A Concise Dictionary of
Old Icelandic (Geir Zoega), An Icelandic-English Dictionary (Cleasby & Vigfússon), A New Introduction to Old Norse (Michael
Barnes), An elementary grammar of the Old
Norse (George Bayldon) e English-Old
Norse Dictionary (Ross Arthur). A Viking Society Web Publications mantém excelentes ferramentas
básicas em seu site, como uma introdução às fontes, gramática e um glossário.
Também existem cursos introdutórios online mantidos por universidades, como a
do Texas ou independentes (Old Norse for Beginners).
Um formidável sistema de referência é a ferramenta online Dictionary of Old Norse Prose, mantida pela Universidade de
Copenhagen.
Recursos
bibliográficos: Os melhores referenciais bibliográficos,
conceituais e analíticos básicos para os estudantes de Mitologia Nórdica foram
incluídos na obra Old Norse-Icelandic
Literature, 2005, de Clover e Lindow. No primeiro estudo (Mythology and
Mythography), o pesquisador John Lindow fornece uma densa e magistral análise
mitográfica dos estudos sobre a área nórdica, conciliando num mesmo texto tanto
as críticas detalhadas das inúmeras fontes literárias como de suas diferentes
interpretações e análises. Em outro capítulo deste livro (Eddic poetry), Joseph
Harris detalha diversas interpretações codicológicas dos manuscritos da poesia
éddica, as tendências literárias de interpretações, as métricas e seus estilos,
questões de datações e origem dos poemas, a teoria oral e suas aplicações no
mundo nórdico e por último (mas não menos importante), uma vasta e detalhada
bibliografia final separada por tema e conteúdo, além de indicações
bibliográficas para cada fonte primária.
Algumas
das mais elegantes e paradigmáticas coletâneas de estudos sobre a Mitologia
Nórdica foram editadas por Paul Acker e Carolyne Larrington (The Poetic Edda: essay on Old Norse
Mythology, 2002 e Revisiting the
Poetic Edda: Essays on Old Norse Heroic Legend, 2011). A primeira tem pelo
menos quatro estudos indispensáveis para todos os pesquisadores: a escritora
Svava Jakobsdóttir realiza uma brilhante análise do hidromel da poesia; Joseph
Harris examina o tema das maldições na poesia éddica; Preben Sørensen realiza o
mais famoso estudo sobre a pesca da serpente do mundo pelo deus Thor; Thomas
Hill analisa o poema Rígstula. No
segundo livro, outros estudos são igualmente importantes, como a análise do
dragão nórdico nas artes, por Paul Acker, bem como Judy Quin analisando o Gróttasöngr, entre outros.
Em língua portuguesa o
melhor recurso bibliográfico é o Dicionário
de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos, publicado pela editora Hedra
em 2005. Contando com a participação de 22 pesquisadores nacionais e
estrangeiros, 210 verbetes e mais de quarenta ilustrações. O dicionário detalha
amplamente os mais variados deuses, deusas, narrativas, localidades, fontes
primárias, temas, símbolos, sagas, apresentando em cada verbete específico
indicações bibliográficas extremamente atualizadas.
Recursos
da internet: alguns sites (a exemplo do Germanic Mythology, fornecem ampla variedade de documentos para
pesquisa, de obras analíticas desde o século XVIII até os nossos dias
(Scholarship), dicionários e ferramentas linguísticas (Reference Works),
narrativas e imagens artísticas (Retelling & illustration galleries). The norse mythology blog é outro local com arquivos e seções interessantes. Em língua portuguesa o
melhor recurso online é o site do NEVE (Núcleode Estudos Vikings e Escandinavos) com
acesso a diversos livros, artigos, eventos, dissertações e teses, periódicos e
ensaios sobre Mitologia Nórdica.
7. Conclusão:
a pesquisa de Mitologia Nórdica no Brasil
Fornecemos ao
longo deste artigo os principais instrumentos bibliográficos para o estudo das
fontes da Mitologia Nórdica, principalmente aos estudantes de graduação e
pós-graduação em Ciências Humanas e mais especialmente, aos estudantes de
Ciências das Religiões. Com o tempo, os interessados podem iniciar seus
projetos de pesquisa na Escandinavística.
Não
é fácil escolher um bom tema para pesquisa, mas isso não significa que é
impossível. Para o iniciante nos estudos nórdicos, pode parecer muito
complicado eleger um assunto que seja original, uma abordagem inédita ou uma
problemática que poucos tenham analisado, mas com a experiência, as leituras e
o avanço nas pesquisas, o estudante vai perceber que existem ainda muitas
possibilidades de investigação. Uma sugestão é na medida em que for lendo as
fontes da Mitologia Nórdica, escolhendo algum método de análise e lendo as
bibliografias secundárias, entre em contato com os escandinavistas do NEVE e
troque informações ou solicite auxílio nesta ocasião. O intercâmbio em muitos
casos pode auxiliar muito a escolha de temas e abordagens, especialmente dentro
da academia brasileira e suas diversas possibilidades, especialmente nas
Ciências das Religiões, História e Letras.
Quase
tão importante quanto escolher uma fonte, um recorte espaço temporal e uma
perspectiva teórica, é definir um método de pesquisa. Geralmente os estudantes
brasileiros de mitologia acabam convergindo para algum autor da fenomenologia,
visto que é a vertente mais traduzida até hoje em língua portuguesa. Mas existem
outras opções, mais interessantes e coerentes, como o estruturalismo e
pós-estruturalismo, a Escola de Paris, a Nova Mitologia Comparada, a História
das Religiões Italiana, entre outras.
Mas
acima de tudo deve-se manter a perseverança. A Escandinavística no Brasil ainda
é um campo não consolidado e muitos professores universitários ainda percebem
com desconfiança qualquer interesse no estudo dos mitos nórdicos. Neste
sentido, o melhor campo de pesquisa e atuação é o das Ciências das Religiões,
com diversos cursos de graduação e pós graduação em nosso país. Pesquise o que
goste, mas também seja ponderado e não abandone suas metas. No fim, o resultado
pode ser alcançado.
Não
existem cursos de pós graduação com foco ou ênfase objetiva nos estudos de Mitologia
Nórdica, ao menos no Brasil. A possibilidade é ingressar em algum mestrado ou
doutorado acadêmico em áreas genéricas como História, Ciências Sociais ou
Letras – mas principalmente Ciências das Religiões - e ter o projeto de
pesquisa voltado para o estudo de alguma narrativa mítica da área escandinava.
A maior dificuldade é encontrar algum professor cadastrado em algum programa
que tenha interesse em orientar esse tema, visto que grande parte dos
medievalistas tem outros temas de pesquisa.
Atualmente o Programa de Pós Graduação em História da UFRN está abrindo espaço para projetos de mestrado e doutorado em temas nórdicos antigos e medievais, clique aqui para maiores informações.
Referências Bibliográficas:
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