Figura 1: Arte promocional da quarta temporada, apresentando os personagens principais na época: Ragnar, Lagertha, Rollo, Bjorn, Floki e Aslaug.
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Leandro Vilar Oliveira (NEVE)
Doutor em Ciências das Religiões pela
UFPB
vilarleandro@hotmail.com
Após sete anos de produção,
seis temporadas e 89 episódios, a série Vikings criada e produzida por Michael
Hirst e distribuída pelo History Channel, chegou ao fim, passando por
altos e baixos, encerrando a aventura de Ragnar Lothbrok e seus filhos em meio
a mistura de acontecimentos históricos, lendas e anacronismos.
A série apesar de não
ter ganho prêmios de destaque ou ter tido uma altíssima audiência, ainda assim,
conseguiu cativar o público com sua trama. Algo que inclusive nos primeiros
anos gerou a noção incorreta de que se tratava de uma narrativa baseada em
fatos históricos. Essencialmente Vikings é um drama histórico, que consiste
numa trama baseada em acontecimentos ou personagens reais os quais são
utilizados para se criar uma narrativa.
Embora a série
baseia-se em fatos históricos, ela está recheada de anacronismos,
deliberadamente adotados para a construção do enredo e seu desenvolvimento.
Além disso, em determinados momentos, Hirst introduziu elementos sobrenaturais
na trama, como aparições de Odin, o avistamento de Jormungand, a aparição de
uma valquíria, Ragnar sonhando com Valhala, assim como, paralelos entre Floki e
Loki.
Sendo assim, o
presente texto é uma resenha crítica de toda a série, com o objetivo de abordar
os aspectos históricos e culturais desta produção televisiva, destacando os
anacronismos, estereótipos e elementos ficcionais. Não adentrando a comentar
sobre atuações e partes específicas do enredo.
1.
Introdução
Séries sobre vikings não
são novas, embora sejam produções pouco conhecidas, como Tales of Vikings
(1959-1960), sendo um seriado em preto e branco e produzido por Kirk Douglas.
Outras produções consistem em desenhos animados ou séries cômicas envolvendo os
vikings como a minisérie britânica There’s a Viking in my bed (2001) e a
série sueca Hem Till Midgard (2003-2004).
Em geral, os vikings
estiveram mais presentes no cinema e na literatura. Todavia, no começo da
década de 2010, o roteirista e showrunner Michael Hirst que é conhecido
por seus dramas históricos como os filmes sobre a rainha Elizabeth I e a série The
Tudors (2007-2010), teve a ideia de escrever sobre os vikings,
especialmente sobre as invasões nórdicas à Inglaterra.
O canal History
Channel apresentou interesse no projeto e em 2012 a produção teve início na
Irlanda. Originalmente planejada como minissérie, condição essa que a primeira
temporada possui nove episódios e termina com Ragnar Lothbrok tornando-se jarl,
a temporada que estreou em 2013, fez relativo sucesso na época e o History
Channel e demais estúdios produtores, decidiram dar seguimento a essa
história.
A trama de Vikings é
inspirada nas narrativas sobre o lendário rei Ragnar Lothbrok, o qual as
diferentes obras que narram sua vida, apresentam informações divergentes, ora
apontando Ragnar como rei da Noruega, da Dinamarca ou da Suécia, tendo tido
três esposas, vários filhos e realizados outras façanhas, as quais ficaram de
fora do seriado. Apesar dessas variações, Michael Hirst disse em algumas
entrevistas que se baseou principalmente nas versões contidas no Gesta
Danorum (séc. XII), na Saga de Ragnar Lothbrok (séc. XIII) e na Saga
dos Filhos de Ragnar (séc. XIII).
Entretanto, o autor à
medida que ia escrevendo as demais temporadas disse que a série não era apenas
sobre Ragnar, sua família e amigos, mas também procurou apresentar os
descobrimentos e conquistas empreendidos pelos vikings. Algo apresentado a
partir da terceira temporada e continuado até o final. Do qual falaremos neste
texto.
Mas além desse foco
sobre expedições, a série também deu bastante atenção as batalhas, pois afinal,
os vikings ainda hoje são conhecidos como um povo bélico. Fato esse que em
todas as temporadas há conflitos, sendo que a partir da terceira temporada, as
batalhas se tornaram maiores. Mas não necessariamente foram conflitos históricos,
dos quais comentamos adiante.
2.
Sinopse das temporadas
Para facilitar a
compreensão dos temas históricos e anacronismos que serão comentados adiante,
neste tópico foi apresentado uma sinopse de cada temporada, destacando os
acontecimentos centrais.
Temporada 1
(2013): inicia-se apresentado Ragnar, Lagertha, Rollo, Floki, Bjorn e outros
personagens que vivem em Kattegat, no sul da Noruega. A temporada foca no início
das incursões vikings à Inglaterra, inclusive dando destaque a pilhagem do
Mosteiro de Lindisfarne, onde Ragnar conhece o monge Athelstan (George Blagden),
personagem importante nas primeiras temporadas. Depois segue as desavenças
entre Ragnar e o jarl Haraldson (Gabriel Byrne).
Temporada 2
(2014): a narrativa salta alguns anos, já mostrando Ragnar casado com a
princesa Aslaug (Alyssa Sutherland), tendo novos filhos: Ubbe, Sigurd, Ivar e
Hvirstek. Lagertha e Bjorn retornam para Kattegat, e Rollo começa a tramar
contra o irmão. Neste ponto o foco continua sendo os ataques aos reinos
anglo-saxões, já apresentando reis históricos como Egberto de Wessex (Linus
Roache) e Aella da Nortúmbria (Ivan Kaye). À medida que a fama de Ragnar
cresce, isso atraí novos inimigos, incluindo o rei Horik da Dinamarca (Donal
Logue).
Temporada 3
(2015): a terceira temporada muda o foco da narrativa, deixando os anglo-saxões
e centrando-se agora no Império Carolíngio na França. Tendo como destaque o
cerco à Paris e a ascensão de Ragnar como rei de Kattegat.
Temporada 4
(2016-2017): a quarta temporada se apresenta como um divisor, encerrando a fase
1 e iniciando a fase 2 da série. A primeira parte dá continuidade aos planos de
Ragnar, agora apoiado por novos aliados como Haroldo Cabelo Belo (Peter
Franzén), para empreender novo ataque à Paris. Mas com o fracasso do segundo
cerco, Ragnar abandona o trono e some. Anos depois ele retorna velho e
moribundo, reencontrando seus filhos com Aslaug que agora estão adolescentes. Bjorn
realiza sua viagem ao Mediterrâneo. A temporada termina com a morte de Ragnar
Lothbrok.
Temporada 5
(2018-2019): a temporada inicia-se com a vingança dos Ragnarson, que teria dado
origem a invasão do Grande Exército Pagão. A primeira parte centra-se no
desenrolar desse conflito vingativo. A segunda parte já apresenta os confrontos
dos Ragnarson e as ambições de cada um. Floki inicia a colonização da Islândia.
Temporada 6
(2019-2020): a primeira parte continua as disputas entre Bjorn, Ivar e Haroldo
Cabelo Belo pela Noruega, como também apresenta a despedida de Lagertha. No
entanto, a novidade está no novo núcleo dramático, os rus de Kiev, apresentando
o conflito dos príncipes Oleg (Danila Kozlovsky) e Dir (Lenn Kudrjawizki), os
quais disputam a guarda do jovem príncipe Igor (Oran Glynn O'Donovan), herdeiro
do trono. Entretanto, Ivar incentiva Oleg a invadir a Noruega, acreditando que
poderia assim reassumir o trono de Kattegat. A segunda parte conclui o núcleo
dos rus, e divide-se em acompanhar a jornada de Ubbe para descobrir novas
terras, e a escolha de Ivar, Hvristek e Haroldo de invadir Wessex.
3.
Acontecimentos históricos e anacronismos
Como dito no início
da resenha, alguns dos fãs passaram a defender que Vikings era uma série
histórica, retratando inclusive acontecimentos históricos de forma fidedigna.
No entanto, isso é um equivoco comum que normalmente o público que consome
essas produções cinematográficas, televisivas, literárias e digitais possuem.
Tais pessoas consideram que somente pela condição de uma produção ser baseada
em fatos históricos, isso lhe forneceria um “atestado” de que quase tudo
apresentado naquela narrativa, realmente ocorreu.
Produções de dramas
históricos ou romances históricos no caso da literatura, seguem a prática da
verossimilhança, ou seja, conceder elementos narrativos que transmitam a ideia
de que aquele enredo, poderia ter acontecido daquela forma. Que os personagens
históricos ali retratados teriam aquelas atitudes. E essa prática é antiga na
literatura e no cinema. E no caso de produções sobre temática medieval, existe
o termo medievalidade, que é usado para se referir ao imaginário contemporâneo
que se possui da ideia de como seria a Idade Média.
A medievalidade
dependendo da forma como é utilizada nas produções artísticas e midiáticas,
pode seguir um caminho mais voltado para a verossimilhança, como o caso do
livro Devoradores de mortos (1976) do Michael Crichton, em que o
escritor baseado no relato de Ahmed ibn Fadlan – do qual abordaremos adiante –,
inventou uma narrativa de aventura, vendo o livro como se fosse uma “tradução
de viagem real”. Por outro lado, há vários casos em que a medievalidade segue
uma tendência mais voltada para o fantástico, retratando grandes castelos,
cavaleiros de armaduras brilhantes, feiticeiros, bruxas, magia, monstros, ou adotar
o estereótipo de “idade das trevas”.
Macedo e Mongelli
(2009) assinalam que as produções cinematográficas sobre a Idade Média, devam
ser consideradas antes de tudo como produtos de entretenimento. Neste aspecto,
os autores citam Marc Ferro, o qual assinalava que um filme histórico não é a
representação do passado em si, mas a forma como interpretamos o passado.
Com isso, a série
Vikings apresenta essa característica de medievalidade, condição essa que ela
adota estereótipos dos quais comentaremos alguns adiante, utiliza-se de
anacronismos, e até mesmo inseres elementos fantásticos como a aparição de
monstros e de divindades, mesmo que sejam casos pontuais.
E a respeito dos
anacronismos, o seriado ficou notável por mesclar fatos históricos ocorridos
nos séculos VIII, IX e X. Ou seja, Hirst aglutinou de forma engenhosa e com
bastante liberdade criativa, três séculos de história, retratando seus
acontecimentos num período de 30-40 anos durante o século IX, época em que a
trama da série se passa.
A respeito dos fatos
históricos apresentados, estes seguem três condições: personagens, batalhas e
viagens.
3.1
Personagens históricos
No caso dos
personagens que existiram, estes foram retratados principalmente na figura dos
monarcas e governantes, dividindo-os nos núcleos anglo-saxão, franco,
escandinavo e eslavo.
Entretanto, a série
foca-se principalmente nos monarcas anglo-saxões como Egberto de Wessex
(770-839), Etevulfo (795-859) e Alfredo, o Grande (849-899). Além deles citamos
Aella II da Nortúmbria (?-867), o qual pouco se sabe sobre seu reinado e nada
sobre sua vida. E Judith de Flandres (844-870), primeira esposa de Etevulfo,
que na série possui papel importante na temporada 3. Outros nobres anglo-saxões
que existiram também são citados, mas possuem participação menor na trama.
Por sua vez, no
núcleo franco, temos o rei Carlos, o Simples (879-929). Aqui acrescenta-se o
rei Odo (c. 852-898), que no seriado foi retratado como Conde Odo,
ignorando inclusive o fato de que ele governou antes de Carlos, o Simples. Destaca-se
também a princesa Gisla (Morgane Polanski), que se torna esposa de Rollo (c.
860-932), que na série tornou-se o irmão de Ragnar Lothbrok, embora que
historicamente ele tenha sido o primeiro conde da Normandia, algo retratado na
quarta temporada.
Do núcleo dos rus
temos os príncipes Oleg de Kiev (c. 845-912) e Igor I (c. 877/888-945), os
quais aparecem na sexta temporada, a qual aborda a disputa de poder de Oleg com
seus irmãos, para manter sua autoridade sobre o jovem príncipe Igor, que era o
herdeiro de fato do trono de Kiev. Nessa temporada, Oleg é retratado como um
homem ambicioso, manipulador e megalomaníaco. No entanto, sublinha-se que os
personagens deste núcleo são os que apresentam mais diferenças com suas
contrapartes históricas, já que o enredo do seriado alterou vários aspectos
desse conflito.
Já no núcleo
escandinavo, na segunda temporada apareceu o rei Horik da Dinamarca. Aqui temos
um problema. Houve dois monarcas com este nome, e o da série mescla a história
deles dois. O segundo personagem histórico deste núcleo é o rei Haraldo Cabelo
Belo (c. 850-943), o qual teve sua história totalmente alterada no seriado. Já
os outros reis noruegueses que participam da eleição do único rei geral, os
jarlar dinamarqueses e o rei Olavo da Suécia, são personagens fictícios.
Apresentado os
principais personagens históricos que aparecem na série Vikings, embora haja
outros com menor destaque, comentaremos um pouco sobre as batalhas, outro tema
recorrente do seriado.
3.2
As batalhas:
Primeiro é preciso
salientar que muitas das batalhas retratadas na série são ficcionais, mesmo que
algumas citem localidades, como conflitos ocorridos na Inglaterra e na Noruega,
no entanto, somente algumas destas batalhas realmente foram inspiradas em
acontecimentos históricos, como segue a lista abaixo.
Ataque ao mosteiro de
Lindisfarne (793): é retratado no começo da primeira
temporada e é usada pela historiografia britânica como marco para o início da
Era Viking. Não há descrições desse conflito, apenas informa-se que os vikings
invadiram, saquearam, mataram os monges e incendiaram o local. Algo que pode
ser lido nas Crônicas Anglo-saxãs (Chronicle Anglo-saxon). Na série o
saque a Lindisfarne é a primeira vitória de Ragnar, marcando o início da sua
fama.
Cercos à Paris
(845, 856-857, 888): historicamente há registros de três principais ataques
realizados a capital carolíngia. No seriado tais acontecimentos são retratados
nas temporadas 3 e 4. No entanto, Michael Hirst baseou-se nestes três cercos
para criar sua própria versão. Por exemplo, no cerco de 845 diz que Ragnar
teria participado dele, porém, Bjorn teria participado do cerco de 856-857.
Além disso, dois jarl que aparecem no seriado, Sigurd e Gorm, participaram do
cerco de 888, o qual inclusive foi neste que o personagem Conde Odo vivenciou.
Por sua vez, o rei Carlos, o Simples que aparece na série, era criança durante
o terceiro cerco. No entanto, a escolha pelo monarca se deve a condição que foi
ele quem ofereceu um acordo para Rollo se tornar seu aliado, lhe concedendo o
título de conde. Algo retratado na série.
Figura 3: Cena da terceira temporada mostrando o cerco
viking na cidade de Paris. Historicamente a capital francesa não teria essa
grande catedral de pedra e proeminentes fortificações no século IX.
Início da invasão do
Grande Exército Pagão (866): a invasão foi o estopim para um
período de doze anos de conflitos até que o Danelaw fosse formalizado. Na série
apresenta-se apenas o início deste conflito, onde os Ragnarson e seus aliados
invadem a Ânglia Oriental para dar início a vingança pela morte de Ragnar
Lothbrok. Tal informação é citada nas crônicas e sagas sobre o personagem, mas
historicamente não se sabe os motivos por essa grande empreitada. Além disso,
outras batalhas que são retratadas na quinta temporada, são fictícias, apesar
de ser informado que fariam parte dos conflitos iniciados da invasão.
Captura de York
(867): a tomada desta cidade esteve ligada as campanhas do Grande Exército
Pagão. No seriado isso é mostrado com a derrota do rei Aella II e depois com
Ivar (Alex Høgh Andersen) disputando o controle da cidade com Haroldo Cabelo
Belo e outros chefes. Historicamente não se sabe detalhes sobre como essa
cidade foi conquistada, mas York se tornou um importante polo manufatureiro e
centro comercial sob domínio nórdico, tornando-se capital de um novo reino. No
entanto, tais aspectos não aparecem no seriado.
3.3
Expedições:
Expedição de Bjorn e
Halfdan (859-860): poucas crônicas mencionam este relato,
havendo dúvidas se o Bjorn mencionado seria Bjorn Flanco de Ferro ou outra pessoa.
As informações a respeito são escassas e mencionam ataques a Al-Andalus (região
espanhola sob domínio mouro), além de possíveis ataques ao sul da França e
noroeste da Itália. No seriado mostra-se a expedição na quarta temporada,
atacando uma cidade não identificada, em Al-Andalus e depois Bjorn e os demais
viajam até Creta, ficando à mercê do emir Zidete e depois viajam para o norte
da África, como parte de uma comitiva do emir. Aqui observa-se que vários
aspectos dessa expedição foram inventados para o seriado.
Descoberta da
Islândia (c. 860-870): não se sabe exatamente quando a Islândia
foi descoberta, mas data de 874 relatos de colonos ali já vivendo. No seriado é
creditado a Floki essa descoberta e o início da colonização. No Landnámabók (livro
sobre a colonização islandesa), é informado que a ilha teria tido três
descobridores, sendo um deles Floki Vilgerdarson. Entretanto, não se sabe se
tais descobridores realmente existiram e quando realizaram suas descobertas. No
caso da série, o personagem de Floki é inspirado em Vilgerdarson.
Descoberta da
Groenlândia (c. 985): historicamente é creditado
a Eric, o Vermelho a descoberta desta ilha e o início de sua colonização, algo
ocorrido por volta de 985. Embora haja margem para que Eric tenha se baseado em
relatos de outros navegadores para poder chegar à Groenlândia, a série Vikings
tira proveito disso. No seriado um misterioso homem chamado Othere (Ray
Stevenson), que já foi guerreiro e virou missionário cristão, diz que avistou
terras no oeste, algo que atiça a curiosidade de Ubbe (Jordan Patrick Smith). E
este decide ir atrás deste lugar. Entretanto, a expedição se perde e acaba
encontrando por acaso a Groenlândia, dando início a sua colonização que se
mostra problemática devido à falta de alimentos, água e recursos. Embora que
numa tomada aérea mostre cabanas e casas já erguidas após algumas semanas, o
que contradiz a ideia de inviabilidade de assentamento naquele lugar. Isso é
retratado na parte 2 da sexta temporada.
Descoberta de Vinland (c.
1000): Nas últimas décadas do século X, navegadores partindo da Groenlândia
relataram terem avistado terras a oeste da ilha. Esses lugares foram chamados
de Helluland, Markland e por fim Vinland. No caso de Vinland é creditado a Leif
Ericsson, o filho mais velho de Eric, o Vermelho, a descoberta daquela terra e
o início de um assentamento ali estabelecido por volta do ano 1000. No entanto,
no seriado isso tudo é ignorado. Novamente Ubbe e sua expedição que estava
perdida, chega por acaso a costa canadense. O personagem de Othere diz que
aquele lugar era a terra verdejante que ele tinha avistado anteriormente.
Assim, Othere torna-se um dos navegadores que “descobriram” aquele “novo
mundo”. Nesta parte da série, apresentada nos últimos episódios da sexta
temporada, temos os vikings em contato com os indígenas (skraelings).
Figura 4: Cena da sexta temporada, apresentando os
vikings cercados por indígenas na América do Norte.
4.
Estereótipos e ficção
Em algumas
entrevistas para as primeiras temporadas, Michael Hirst disse que quando
escreveu Vikings quis retratar a cultura e sociedade deles de forma
historicamente mais precisa, evitando reproduzir estereótipos clássicos que
existem desde o século XIX. De fato, a primeira temporada contou com a
consultoria do arqueólogo Neil Price.
Apesar disso, a
primeira temporada apresenta problemas quanto ao vestuário, armamento, casas,
objetos e cultura material. Embora Price tenha fornecido consultoria, a
produção da série seguiu com sua liberdade criativa, alterando elementos para
encaixá-los melhor numa estética mais adequada para o entretenimento. Na edição
10 do Notícias Asgardianas, há algumas análises a respeito. O link está
no final do texto.
a)
Vestuário e aparência
Embora alguns fãs
citem a série como referência para se fazer roupas, acessórios e habitações, é
preciso ter cautela ao fazer essa recomendação. Nem tudo que foi mostrado
realmente é preciso mesmo. Vikings é um seriado voltado para o entretenimento.
Neste caso, realmente
não se ver elmos com chifres, crânios como taças, pessoas usando roupas de
origem greco-romana, ou todo homem sendo barbudo. Mas embora o seriado
conseguiu evitar estes estereótipos, ele adotou outros, como estilos de corte
de cabelo inexistentes, uso de tranças nagô e não de origem nórdica, uso de
tatuagens, algo inclusive que gera dúvidas. Historicamente pouco se sabe sobre
as tatuagens e não há imagens de como elas seriam. Logo, as tatuagens vistas no
seriado são todas ficcionais. Além disso, não sabe se todas as pessoas usavam
tatuagens ou havia restrições para isso.
Figura 5: O ator Peter Franzén com o visual de Haroldo
Cabelo Belo. Na série o personagem é marcado por suas tatuagens no rosto.
Além das tatuagens
chama atenção também o uso de delineadores para os olhos e pinturas faciais. A
presença dos delineadores é mais comum em personagens como Floki, ou nas
mulheres como Lagertha, Torvi, Astrid, entre outras guerreiras. O que passa a
falsa ideia de que seria algo real da época. Além desse delineador, em alguns
episódios temos homens e mulheres usando pintura facial com cores branca,
vermelha, preta e até azul, como se fossem pinturas religiosas ou militares.
Sabe-se que alguns povos germânicos e celtas faziam uso de pinturas marciais,
mas entre os vikings isso não era prática comum.
A vestimenta nem
sempre é algo preciso. Em geral os vikings ao guerrear, usavam cota de malha,
gibões e túnicas acolchoadas. Mas na série em alguns momentos vemos eles usando
armaduras com placas de metal, couro endurecido, armaduras com cota de malha e
no caso das mulheres, elas aparecem usando roupas justas, delineando suas
formas, algo visto principalmente com Lagertha e Torvi (Georgia Hirst), as
guerreiras de maior destaque na produção.
Figura 6: A atriz Katheryn Winnick, vestida como
Lagertha. Nota-se o uso de uma armaura estilizada e fictícia.
Além desse vestuário
bélico impreciso, em algumas temporadas em que havia episódios durante o
inverno, via-se homens e mulheres usando trajes comuns, como se não estivesse fazendo
frio. Isso era mais comum com as mulheres, as quais os vestidos que usavam
dentro de casa, eram o mesmo que usavam na rua. Além disso, temos cenas de
homens sem camisa ou usando roupas de períodos quentes, durante os meses de
frio.
O figurino dos
anglo-saxões, francos e rus também não está isento de anacronismos e alterações
deliberadas para efeitos estéticos. Por exemplo, a corte carolíngia apresenta
uma pompa somente vista a partir do século XII, o que inclui o castelo onde
vive o imperador Carlos, Simples. Sendo que no século IX, não havia castelos
como aquele. Já a corte dos rus, também apresenta trajes bastante belos e
luxuosos, de estilos não comuns a época.
Figura 7: O ator
Danila Kozlovsky como o príncipe Oleg. Embora seu traje seja visualmente belo,
mas para o século IX, os nobres rus usavam vestes de padrão liso e com mais
cores. A adoção deste visual é proposital para apresentar a corte de Kiev como luxuosa.
b)
Práticas religiosas
Outra condição em que
estereótipos são bem fortes, além do visual dos personagens, se encontra em
suas práticas religiosas. A chamada Religião Nórdica Antiga não possuía dogmas
e doutrinas, e as menções aos seus ritos, crenças e práticas são sucintas não
havendo muitos detalhes de como sacrifícios, cerimônias, ritos, consagrações,
etc. eram realizados.
Entretanto, no
seriado duas coisas chamam atenção: o visual sombrio dos sacerdotes, retratados
como carecas e usando uma pesada maquiagem branca e preta, trajando longas
túnicas; algo inspirado em filmes antigos sobre vikings e outros povos
“bárbaros”. Este visual aparece na primeira temporada e é mantido pelo restante
da série. E essa maquiagem também foi compartilhada por outros personagens como
Lagertha, Aslaug, Torvi e Ivar, os quais em algumas cerimônias aparecem com os
rostos maquiados ou até lambujados com sangue.
Figura 8: O personagens Ivar, Sem-Ossos (Alex Hogh
Andersen) e Freydis (Alicia Agneson) durante uma cerimônia na quinta temporada,
onde Ivar é reconhecido como um deus. Além do visual sombrio do casal, nota-se
que os sacerdotes atrás deles, trazem maquiagem similar.
Já a segunda
característica está presente no uso recorrente e excessivo de sangue nos ritos.
Em diferentes ritos, vemos sacerdotes usando sangue para benzer ou os
personagens bebendo sangue, algo que invoca o estereótipo do viking bárbaro. E
isso é tão marcante na série, que até mesmo em cerimônias de coroação,
casamento, aliança e festivais, aparece o uso de sangue como se fosse elemento
comum, o que historicamente não era. Embora os vikings praticassem sacrifício
de animais e até de humanos, não significa que em todos seus ritos e cerimônias
houvesse sangue.
Figura 9: Cena da terceira temporada, mostrando Lagertha
passando sangue em seu queixo e garganta, durante o sacrifício de uma vaca.
Atrás dela nota-se uma estátua de alguma divindade, com a face salpicada com
sangue.
Um terceiro aspecto
diz respeito ao Vidente (John Kavanagh), o qual aparece em todas as temporadas.
Ele é bastante lembrado por sua aparência sombria, com sua pele pálida, lábios
roxos, ser cego e ter um rosto deformado. Nas sagas e Eddas geralmente a
vidência era realizada por mulheres, as advinhas (völva). Todavia, para
a série escolheu-se colocar um homem, e concedendo a ele o estereótipo de ser
uma pessoa misteriosa e sinistra. Condição essa também baseada em produções cinematográficas,
as quais costumam associar a adivinhação com a bruxaria ou a “magia negra”.
Na primeira temporada
e segunda temporadas destaca-se o templo de Gamla Uppsala. O qual se conhece
menções pontuais sobre ele, sendo uma das mais famosas, descritas pelo clérigo
Adam de Bremen, que nunca visitou o lugar. Legando um relato impreciso e
influenciado por outros referenciais. Apesar disso, na série a produção tomou
alguns elementos da descrição de Adam para retratar este templo, como a
presença das estátuas de Odin, Thor e Freyr, mesa de sacrifício, altares,
árvores em volta com animais e pessoas enforcadas. E acrescentando-se algumas
liberdades criativas para se pensar como seria o rito de sacrifício humano, que
é retratado no seriado. Embora não haja descrições detalhadas sobre isso,
sabe-se que os sacrifícios humanos poderiam em alguns casos serem voluntários,
onde alguém se oferecia para o bem da comunidade.
Um quinto aspecto a
ser tratado é quanto ao Cristianismo. Ao longo da série percebemos o embate dos
vikings em adotar a nova fé ou manter-se fiel aos seus deuses. Em muitos casos
a série tende a mostrar uma grande resistência a conversão e trata-la como se
fosse algo apenas estrangeiro, onde os nórdicos somente tinham contato com essa
religião ao visitarem a Inglaterra ou a França. Somente na temporada seis, há
menção de que a Dinamarca estava sendo cristianizada.
De fato, a Dinamarca
foi o primeiro reino nórdico a declarar o cristianismo como religião oficial.
Todavia, missionários já frequentavam a Noruega e Suécia no século IX, período
no qual a narrativa de Vikings, ocorre. Porém, por escolha de roteiro, este
missionarismo foi removido destes territórios, dando a impressão de que o
cristianismo não tivesse ainda chegado nestas terras.
Outro aspecto a ser
mencionado, diz respeito ao Anjo da Morte (Karen Conell), sacerdotisa que
aparece na sexta temporada, que é incumbida de sacrificar uma donzela de escudo
para acompanhar sua mestra Lagertha. A ideia por trás dessa sacerdotisa
sinistra e do sacrifício foi retirada diretamente do relato de Ahmed ibn
Fadlan, que relatou no século X, ter encontrado vikings na região do Volga
(hoje sul da Rússia), na ocasião ele testemunho o funeral de um chefe.
Figura 10: A atriz Karen Conell caraterizada como o Anjo
da Morte, na sexta temporada da série.
No caso, Hirst pegou
vários elementos desse relato para criar sua versão sobre um sacrifício humano.
Mas embora ele tenha se baseado numa fonte histórica, é preciso ter cautela,
pois Ahmed desconhecia as práticas funerárias nórdicas, inclusive as considerando
bárbaras e desrespeitosas. O próprio termo “anjo da morte” foi dado por ele. Além
disso, no seriado, a sacerdotisa visualmente lembra o aspecto de uma bruxa,
novamente um estereótipo associado aos sacerdotes nórdicos e até de outros
povos europeus, pois séries que retratam celtas e germânicos, tendem a seguir
esse estereótipo também.
c)
Ser viking
A partir da terceira
temporada começou a se tornar mais habitual que os escandinavos se referissem
como sendo vikings. Naquela época a palavra viking era usada para se referir a
ocupação de pirataria, onde os homens se lançavam ao mar em busca de locais
para serem saqueados. O problema é que não se sabe se o uso desse termo era
regular ou havia prerrogativas para ser usado.
Na série o termo viking
é usado em alguns contextos como “povo”, no entanto, os anglo-saxões se
referiam a eles normalmente como daneses. Já os francos os chamavam de
normandos. Os eslavos e bizantinos se referiam a eles como rus ou varegues. O
emprego da palavra viking no sentido de povo é uma prática posterior.
Outro aspecto é que
tanto homens quanto mulheres na série dizem ser vikings, aqui no sentido de
serem guerreiros. No entanto, nem todo guerreiro necessariamente seria um
viking, já que eles não estariam indo praticar ações de pirataria. Além disso,
a palavra é até usada como elogio por alguns personagens. Por conotar uma
espécie de “classe”.
d)
Donzelas do escudo
Este é um tema que
gera polêmica também. As donzelas de escudo (skjaldmö) geralmente são
citadas em sagas, mas não aparecendo em grupos, geralmente atuam sozinhas como
Lagertha, Hervor e Brunilda. São menções breves sobre estas guerreiras, as
quais dispomos. Além disso, salienta-se que o fato de serem donzelas,
significava que eram virgens e solteiras. A própria Lagertha quando se casa com
Ragnar, como relatado no Gesta Danorum, deixa de ser uma donzela de
escudo.
Figura 11: Lagertha e
suas donzelas do escudo em cena da quarta temporada.
Todavia, na série,
Hirst e a produção transformaram essas mulheres que aparecem em sagas, como
sendo uma prática comum. Já na segunda temporada observa-se Lagertha
acompanhada de sua guarda formada apenas por mulheres, algo que se torna
recorrente nas temporadas seguintes. Isso levou a falsa ideia de que realmente
haveria tropas femininas, embora que historicamente não haja comprovação disso.
E até as crônicas históricas, escritas por anglo-saxões e francos, também nada
relatam a respeito de haver mulheres no campo de batalha.
e)
Bigamia
Na temporada 6, Bjorn
e Haroldo Cabelo Belo casam-se com duas esposas e isso é aceito como hábito
comum na trama da série. Historicamente não seria assim, pois a bigamia e
poligamia eram ilegais entre os nórdicos. Um homem ou mulher poderia manter
amantes, mas jamais poderiam ter mais de um cônjuge. Logo, a série tomou
liberdade em criar essa condição que favorece uma subtrama dessa temporada,
onde mostra-se a disputa de poder de uma das esposas contra a outra.
f)
Rainhas governando sozinhas
Na série temos o caso
de Aslaug, Lagertha e Ingrid como governantes viúvas, as quais inclusive se negam
a casar-se novamente para não terem que dividir o trono com seus novos maridos.
E no caso de Aslaug, essa até mesmo negou-se passar o trono para um dos filhos,
mesmo que pudesse agir como corregente. Já Lagertha cogitou oferecer o trono a
Bjorn, mas este não estava interessado em governar no início.
Na História não se
conhece relatos de que alguma rainha tenha feito isso nos reinos nórdicos, já
que a política era um campo predominantemente masculino, e a sucessão real nem
sempre era hereditária, havendo casos de complôs para se derrubar monarcas e
assumir o trono.
Por tal viés,
dificilmente mulheres governariam reinos sozinhas, pois elas seriam derrubadas
imediatamente. Além disso, haja vista que as rainhas e esposas de jarl poderiam
até ter tido algum grau de autoridade, mas respaldado por seus maridos ou
filhos, não por elas mesmo.
O que se observa na
série é uma escolha de empoderamento feminino para a construção do enredo. Em
que personagens como Lagertha, Aslaug, Ingrid, mas também Astrid, Gisla, Judith
e Freydis, todas são retratadas com algum grau de influência, manipulação e
controle sobre seus maridos, filhos ou na sociedade. Algo recorrente ao longo
da série.
g)
Homossexualismo
Esse é um tema pouco
abordado na série, basicamente o único caso explícito mesmo foi a relação de
Lagertha com Astrid (Josefin Asplund), cujo relacionamento ocorre entre as
temporadas 4 e 5. Astrid que é uma das donzelas de escudo sob comando de
Lagertha, apaixona-se por sua senhora e ambas mantém um relacionamento público.
Historicamente isso
dificilmente teria ocorrido, pois o homossexualismo entre os vikings era tabu.
Nas sagas e Eddas, a homossexualidade era tratada como deboche.
Inclusive fator de menosprezo. O próprio Loki ofende Odin e Bragi, fazendo
insinuações sobre sua masculinidade, pois Odin praticava seidr escondido, magia
associada apenas as mulheres, e Bragi era considerado afeminado e covarde como
uma mulher.
Homens que praticassem
seidr também era algo mal visto. Já em leis posteriores a Era Viking, havia
leis que proibiam comportamentos desviantes, em que homens não poderiam agir de
forma afeminada e mulheres não deveriam agir como homens. Sendo assim, naquela
época e contexto, um homossexual e bissexual, teria que manter oculto sua
orientação sexual para não sofrer represálias da sociedade, diferente do
seriado, onde uma rainha mantém publicamente seu relacionamento com uma amante.
h)
Os Rus
Se os anacronismos
entre os anglo-saxões e francos podem até passar despercebidos para
espectadores menos familiarizado com aquelas culturas, não é o mesmo caso que
ocorre com os rus. Mesmo o espectador que conheça pouco a respeito, notará
certas estranhezas. A começar pelo fato que as cidades de Kiev e Novgorod aparecem
na maioria das vezes durante um inverno pesado, um estereótipo associado com a
Rússia. E o interessante que enquanto neva forte nestas cidades, nas cenas
ocorridas na Noruega, no mesmo período, nem aparece neve. Um relapso da
produção.
Os soldados do
príncipe Oleg, usam trajes orientais, que lembram vestes dos tártaros e
mongóis. Diferente da cota de malha, gibão e elmos de ferro. Sobre isso, tais
guerreiros usariam trajes de forma bem parecida com outros eslavos, germânicos,
nórdicos e francos.
Figura 12: Embora lembrem guerreiros mongóis ou tártaros,
este é o visual dos guerreiros rus na série Vikings.
Outro marco bem
caricato desse núcleo, diz respeito ao passeio de balão que Ivar e Oleg
realizam. A cena bastante exagerada serve de incremento para mostrar a
megalomania do personagem de Oleg. Se os monarcas anglo-saxões e franco foram
apresentados de forma mais comedida, o príncipe rus é o oposto disso. Ele é
exagerado, temperamental, sarcástico.
Enquanto a cidade de
Kiev é apresentada como uma urbe maior, densamente construída, povoada e
cercada por muralhas, a cidade de Novgorod é retratada como uma vila, algo
impreciso, pois Novgorod era uma importante cidade no norte europeu, tendo sido
tão grande quanto a própria Kiev.
Outro aspecto a ser
destacado deste núcleo da sexta temporada é o fervor religioso. Na História,
Kiev somente se tornou cristã no final do século X, pois as tentativas
anteriores não surtiram efeito imediato. Porém, na série, Oleg e os habitantes
da cidade são bastante católicos, inclusive tem uma cena que um bispo vestido
de Jesus Cristo, carrega uma cruz, enquanto se dirige a cidade para celebrar a
Páscoa. E a população se ajoelha e começa orar para recebê-lo. Nem nos núcleos
anglo-saxão e franco, os quais eram povos cristianizados a mais tempo, essa
devoção é notada.
i)
O sobrenome Lothbrok
Em Vikings, a palavra
Lothbrok ou Loðbrok
é utilizada como sobrenome, condição essa que desde a primeira temporada há
momentos que Rollo é chamado Rollo Lothbrok. Posteriormente, vemos isso com
Bjorn e seus irmãos, que também são referidos como “os Lothbrok”.
No entanto há dois
problemas quanto a isso: primeiro, Lothbrok é um epíteto, o qual significa
“calças peludas”. De acordo com a narrativa encontrada no Gesta Danorum,
Ragnar ganhou esse epíteto por ter lutado contra uma serpente gigante, como
parte do desafio para poder se casar com Thora Borgarhjortr, que era filha de
um rei. Para poder enfrentar a serpente que além de grande era venenosa, Ragnar
usou calças peludas, as quais lhe protegeram as pernas das picadas do animal,
permitindo que ele pudesse matá-lo. Por tal façanha, o epíteto lhe foi
concedido e é retomado nas sagas e crônicas, as quais nem sempre explicam o
motivo deste nome.
Segundo, os
sobrenomes nórdicos até hoje normalmente são patronímicos, em que se utiliza o
nome do pai somado aos sufixos son, sen, dóttir e daugther. Sendo assim, os
sobrenomes de Bjorn, Ivar, Ubbe, Hvirstek e Sigurd deveria ser Ragnarson. Logo,
na série, Michael Hirst tomou a liberdade literária de empregar Lothbrok como
um nome de família.
j) Ritos fúnebres
Ao longo das
temporadas encontramos representações de diferentes práticas funerárias,
algumas precisas e outras alteradas para o drama. Na primeira temporada temos
alguns guerreiros sepultados numa cova coletiva, com suas armas e escudos, e
até acompanhado da cabeça de um cavalo. Em termos arqueológicos, túmulos assim
foram achados. Além disso, a primeira temporada também retrata a prática da
cremação, algo que realmente era realizado pelos nórdicos.
Entretanto, temos o
caso do clássico navio pegando fogo, algo marcante no cinema, embora não se
saiba se era uma prática tão comum, devido à falta de vestígios arqueológicos e
relatos históricos. Apesar de que Ahmed ibn Fadlan descreveu uma cremação num
navio. Na série, o uso dessa prática funerária é visto entre alguns poucos
personagens, geralmente chefes ou governantes, como Aslaug e Lagertha.
Outra prática
funerária interessante é o sepultamento de Helga (Maude Hirst), a esposa de
Floki, que ocorre na quarta temporada. Nesta cena mostra-se a preocupação do
marido ao cavar um túmulo, arrumar o corpo da esposa e sepultá-la com seus
pertences, como um pente e uma faca. Nos túmulos escavados, realmente era
hábito dos nórdicos inumarem seus mortos com seus pertences pessoais ou
presentes. Quanto mais rico fosse a pessoa, maior quantidade de objetos haveria
no túmulo, e até mesmo a inclusão de móveis, um barco, carroça, animais e
escravos sacrificados.
O quarto exemplo
funerário diz respeito ao uso de uma tumba. Os vikings fizeram uso de tumbas,
que geralmente são montículos de terra e pedra, erguidos sobre os túmulos.
Embora há casos de tumbas escavadas, que permitem entrar dentro dela, para se
deixar oferendas aos mortos, além fazer orações. Na série, na sexta temporada,
optou-se pela tumba construída, que permite o acesso interno. No entanto, a
produção tomou suas liberdades criativas.
A tumba de Bjorn que
é apresentada na sexta temporada, possuí uma forma abobadada, o personagem foi
empalhado junto ao seu cavalo, prática inexistente na época, além de que no
teto da tumba há pinturas retratando ele, o pai e outros guerreiros. Todavia,
as tumbas nórdicas não possuíam pinturas, pois eram construções simples. Além
disso, a tumba mostrada no seriado, possui desenhos que não condizem com o
estilo da arte viking. Apesar dessas mudanças para a série, ainda assim, a
trama apresenta uma prática realizada pelos vikings, o culto a memória dos
mortos.
Figura 13: A tumba de Bjorn Flanco de Ferro na sexta
temporada. Observa-se que ele e seu cavalo foram empalhados e as pinturas no
teto, são de estilo fictício, não correspondendo aos estilos da Era Viking.
j)
O berserkr
Na quarta temporada,
Bjorn Flanco de Ferro, enquanto retirou-se para reflexão na floresta, é
confrontado em dois episódios por um urso. No entanto, não se tratava de um
animal comum, mas de um berserkr transformado. Na série dois inimigos de Bjorn
contratam um mercenário que é berserkr, o qual não tem nome, e este é enviado
para assinar o primogênito de Ragnar. No entanto, após derrotar o urso, Bjorn
descobre que ele era um berserkr. O personagem inclusive chama atenção também
pela condição de praticamente não falar, e em dados momentos grunhir, como se
fosse um brutamontes estereotipado.
Historicamente
existem poucos relatos sobre os bersekir, os quais geralmente aparecem em sagas
que mesclam acontecimentos reais e fictícios. Tais guerreiros são lembrados por
serem possuídos por um furor animal, que os tornavam bastante furiosos e
perigosos. Em diferentes narrativas os berserkir as vezes são tratados como
párias, homens agressivos, descontrolados e perigosos, pois em algumas
histórias estes guerreiros em um ataque de fúria, mataram parentes ou aliados.
Figura 14: O ator Robert Follin
caracterizado como o berserkr na quarta temporada.
Embora a figura do
bersekr seja hoje em dia considerada mais como uma invenção literária, pelo
menos no quesito de seu visual, como um homem usando pele de urso, lutando com
pouca roupa ou nu, e mordendo seu escudo, as sagas não relatam que tais
guerreiros se transformassem em ursos, embora que a Saga de Hrolf Kraki,
cite um berserkr chamado Böđvar Bjarki o qual controla um urso e envia
este para a batalha. Provavelmente a partir deste relato, Hirst teve a ideia
para o seriado, na luta de Bjorn e o urso.
Considerações finais
Apesar das
imprecisões históricas, anacronismos, decisões questionáveis no roteiro, a
série Vikings é um marco da teledramaturgia recente, pois graças a ela a
temática viking se popularizou bastante na televisão, pois antes disso não
havia seriados do tipo, sendo televisionados. Mesmo as produções britânicas e
suecas dos anos 1990 e 2000, eram praticamente desconhecidas fora de seus
países. Dessa forma, Vikings conseguiu atrair um público interessado na
temática, abrindo caminho para outras séries como a adaptação das Crônicas
Saxônicas, em Last Kingdom (2015-presente) e a série de comédia Vikingane
(2016-2020).
Mesmo que alguns
leitores possam indagar que a influência foi pouca, pois somente duas séries
sobre vikings surgiram desde 2013, o que não seria evidência para a
popularidade do tema, porém, basta conferir as produções cinematográficas, onde
se verá que entre 2013 e 2019, houve vários filmes lançados sobre esta temática,
onde vários apresentam influências da série Vikings. No site do IMDb (Internet
Movie Database) uma rápida pesquisa pelo título contendo a palavra viking,
apresentará uma lista com várias produções a respeito.
Aqui destaca-se que
Vikings influenciou não apenas a disputa por esse nicho temático, mas
influenciou o vestuário, aparência, ambientação e tramas das produções
cinematográficas, como também produções nas histórias em quadrinhos e nos
videogames, como no caso do jogo Assasssin’s Creed: Valhalla (2020), o qual apresenta
influências estéticas da série, visto no uso de tatuagens, vestimenta, presença
de mulheres guerreiras, estilos de corte de cabelo, barba e tranças.
Sublinha-se também
que devido a popularidade da série Vikings, em 2019, Michael Hirst anunciou uma
nova série a respeito, intitulada Vikings: Valhalla, a qual se passará no
século XI, abordando personagens históricos como Leif Ericson, Canuto, o
Grande, Olavo II da Noruega, entre outros. O que mostra que mesmo após sete
anos, o tema ainda não se esgotou e possui um público interessado por novas
narrativas.
Bibliografia:
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Leia também:
Cronologia histórica da série Vikings