Daniel Serra, o mais novo colaborador internacional do NEVE, atualmente é um dos maiores especialistas em alimentação da Era Viking. Nascido em Malmö, Suécia, é doutor em Arqueologia pela Universidade de Lund, com uma tese sobre alimentação na Era Viking.
Como arqueólogo experimental, desde 2010 realiza consultoria para os
museus Lofotr, na Noruega, e Glimmingehus, da Suécia. Também vem realizando
cursos, palestras, oficinas e consultorias para restaurantes, televisão,
jornais e festivais reconstrucionistas da Europa. Em 2013 publicou o livro An
Early Meal - a Viking Age Cookbook & Culinary Odyssey (Chronocopia Publishing),
junto com Hanna Tunberg, que se tornou uma obra de referência no tema.
A
entrevista a seguir foi realizada em 2015 por James Wiener para a Ancient History
Encyclopedia, do qual traduzimos alguns trechos mais significativos.
Atualmente Daniel Serra está realizando acessoria para experimentos gastroarqueológicos do grupo NEVE, coordenados pela professora Luciana de Campos: montagem de fornos e cozinhas ao ar livre, além de processos de defumação de carnes da Alta Idade Média Nórdica a serem reproduzidos no Brasil.
- O
que estimulou o seu interesse pela cultura e comida nórdica da Era Viking? Se eu
me recordo, você também tem interesse nas antigas receitas romanas de Apicius.
Daniel Serra:
Meu interesse em alimentos históricos surgiu quando comecei meus estudos
universitários em Arqueologia clássica. Como eu sempre fui interessado em boa
comida, eu estava muito curioso em saber como era a comida nos períodos que
estudei. Assim começando com as receitas de Apicius e Cato, eu tentei
reconstruir a comida e os gostos dos romanos antigos. Como mudei para Arqueologia
Medieval, era natural mover meu interesse para a comida e as receitas que
permaneceram dessa época. Neste ponto, não era apenas uma curiosidade
culinária, mas sim uma ferramenta para ensinar ou informar as pessoas sobre a Arqueologia.
Acho que uma boa maneira de abordar a História é através de todos os nossos
sentidos, e o gosto alimentar é uma excelente maneira de criar uma melhor
compreensão e imersão para dentro de uma certo período. Junto com minha
co-autora, Hanna Tunberg, nós começamos uma pequena empresa de reconstituição
medieval.
Eu inicialmente
usei muitos textos anglo-saxões. Sendo contemporâneos com o período que estávamos
investigando, eles tem muito a dizer sobre as práticas na época, mesmo que
alguns dos ingredientes referenciados não tenham sido encontrados na
Escandinávia. Outras descobertas sobre métodos de cozinhar e maneiras de pensar
sobre comida poderiam ser encontradas em muitas receitas medievais... As sagas
islandesas e as Eddas obviamente forneceram muita inspiração também...
Ao servir
comida e falar sobre isso para uma grande variedade de pessoas, fiquei
fascinado de que maneira a comida serve como um veículo de expressão cultural e
social: o consumo de diferentes alimentos dependendo da classe ou do papel na
sociedade, como os alimentos podem ser usados para excluir ou incluir pessoas,
e como se podem expressar uma identidade através dos alimentos. No entanto,
como a maioria das receitas medievais sobreviventes da época refletiam um
"menu de classe alta", eu me senti um pouco limitado e comecei a
procurar maneiras de abordar o que as pessoas comuns comiam.
Voltei
para uma abordagem arqueológica mais experimental. A mesma aproximação era naturalmente
possível quando passei aos alimentos da Era Viking, porque este era o período que
a maioria dos acadêmicos vinha considerado o alimento de um ponto de vista
muito econômico. Paralelamente aos meus estudos mais teóricos, eu também tentei
recriar sabores e pratos para os propósitos de Arqueologia experimental, bem
como para a Era Viking e com grupos de reconstrucionismo medievais também.
- O
que você considera que é o maior equívoco que as pessoas têm sobre a comida e
da bebida da Era Viking? Eu suspeito que muitos seriam surpreendidos pela
variação sazonal e regional dos alimentos e pelos sabores encontrados em uma
refeição mais complexa.
Daniel Serra: Eu diria que a carne, hidromel, cogumelos e florestas nublam a imaginação
popular. Uma imagem bastante comum da comida nórdica da Era Viking é que ela
era somente constituida por hidromel e carne, mais ou menos. Na série popular
Vikings - produzida pelo History Channel (que não é tão exata em geral) - as
cenas de alimentos muitas vezes apresentam peças grelhadas de carne que os
protagonistas comem muito. Carnes teria sido aproveitadas em festivais e
comemorações, servida com mingau, nabos etc., em vez de algo que teria sido servido
apenas por si. Mesmo que a evidência arqueológica seja escassa, algumas das
sagas islandesas parecem indicar que as refeições eram eventos bem mais modestos
do que muitos acreditariam. Há mesmo descrições sobre como as pessoas lavavam
as mãos antes e entre as refeições.
O
hidromel certamente teria sido uma bebida usada em festas, mas a bebida mais
comum provavelmente foi a cerveja. Na época, não havia nada excepcionalmente
"escandinavo" sobre hidromel. As pessoas também consumiam cerveja
inglesa. Cogumelos de vez em quando, talvez no contexto de ser uma forma de
induzir a raiva alienada do berserker, mas este certamente é um equívoco do
século XVIII, que perdura até hoje. Na verdade, nada indica o consumo de
cogumelos, nem em textos nem em evidências arqueológicas.
Temos
também uma noção muito romântica do papel e do uso das florestas nos diferentes
passados históricos, e muitos ficam bastante surpresos quando digo que apenas
cerca de um por cento dos restos de ossos encontrados provêm de animais
caçados. Na verdade, quando se olha para o material arqueológico, a caça e a
exploração das florestas parecem ser bastante limitadas. Mas como você diz,
também ocorriam variações sazonais e, até certo ponto, os sabores vão
contrariar muitas crenças errôneas e populares.
- Eu
sou inclinado a perceber que os ingredientes encontrados durante toda uma
refeição mais complexa me parece muito familiar com o que come um homem com
laços ancestrais fortes da Suécia. Seria justo dizer que a cozinha escandinava
contemporânea deve muito aos antigos povos nórdicos, Sr. Serra? Em caso
afirmativo, podemos definir algum tipo de continuidade cultural?
Daniel Serra: Em vez da continuidade cultural, muitas das coisas que reconhecemos são
baseadas na flora e fauna locais na Escandinávia. Embora os pratos tradicionais
usem muitos dos mesmos ingredientes, as composições e técnicas podem variar e
mudam significativamente.
Nós
escolhemos deliberadamente não usar a culinária escandinava tradicional como
ponto de partida, pois há quase 800 anos de diferença entre a cozinha
tradicional escandinava e a comida da Era Viking. Várias influências culinárias
entraram na cozinha escandinava e começaram a transformá-lo de dentro durante o
período medieval.