O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O Ragnarök é pagão ou cristão?


Far away and long ago, 192, desenho do húngaro William Andrew Pogany com base nos lobos Hati e Sköll perseguindo a Lua e o Sol antes do Ragnarök.


Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

johnnilanger@yahoo.com.br

 

Um dos temas mais polêmicos envolvendo a Mitologia Nórdica são os referentes à narrativa do Ragnarök. No Brasil, muitos entusiastas e pesquisadores vem levando em conta uma dicotomia no que se refere ao tema: alguns o consideram de origem totalmente pagã e outros um relato criado pelos cristãos para denegrir ou melhor converter os escandinavos. Nossa principal idéia aqui é apresentar um referencial intermediário: o seu relato literário, na realidade, foi um híbrido entre os dois mundos.

Afinal, o que foi o Ragnarök? Trata-se de uma série de acontecimentos a serem propagados no futuro (portanto, escatológicos), de caráter catastrófico e de transformação do universo, dos deuses e dos humanos. A palavra vem sendo traduzida mais coerentemente como “destino dos deuses” e suas principais fontes primárias são o poema éddico Völuspá e a Edda em Prosa de Snorri.

Tradicionalmente desde o século XIX as narrativas do Ragnarök vinham sendo interpretadas como testemunho antigos sobre os mitos nórdicos, mas a partir das pesquisas de Sophus Bugge, os relatos começaram a ser considerados como tendo sido influenciados por referenciais cristãos, após a sua preservação por escrito.

O principal problema com relação ao Ragnarök é que ele não é encontrado nas fontes literárias e históricas antes do século X d.C. Ele não é citado, sequer mencionado, no período germânico antigo. Nossas pesquisas, contudo, vem apontando que alguns elementos podem ser identificados pela iconografia. Em algumas bracteatas do século V, tanto da Escandinávia quanto da Alemanha, identificamos algumas cenas que tem relação com as narrativas escatológica produzidas no medievo.

O mito de Balder sendo morto, talvez tenha sido reproduzido nas bracteata de Zagórzyn (Kalisz), tipo B, Alemanha, Museu Stuttgart, séc. V-VI; e de Fakse, Dinamarca, séc. V-VI (figuras 1 e 2). Três figuras aparecem nas imagens, talvez Loki, Hoder e Balder, sendo a figura do meio trespassada por um dardo. Mas as imagens mais importantes são referentes à figura do lobo. Este animal como inimigo dos deuses surge em duas bracteatas do século V-VI: Trolhattan, Suécia, séc. V-VI; e Skrydstrup (figuras 3 e 4). Na primeira, uma figura masculina é atacada em sua mão por um canídeo (Tyr e Fenrir?) Na segunda, uma figura masculina possui um elmo com formato e pássaro, outro pássaro está ao lado, com um cervídeo e uma serpente na base. Pelas suas costas, uma figura canídea o ataca, com feições ferozes. Sem sombra de dúvida trata-se de Wotan, já sendo associado com o lobo inimigo.

Mas porque o Ragnarök não aparece nas fontes literárias desta época? Talvez porque não fosse importante. Várias pesquisas arqueológicas estão apontando que catástrofes climáticas (desencadeadas por uma ruppção vulcânica) ocorreram na Escandinávia durante o século VI, ocasionando grande incidência de abandono de vilas, fome e crises sociais (Price, 2015). É neste contexto que poderia ter sido formada a imagem do Fimbulvetr, o período de três invernos que antecede ao Ragnarök na literatura medieval – uma imagem de desolação e crise ambiental. Também durante o século VI que as imagens do disco do Sol e de espirais nas estelas da ilha de Gotland desaparecem, dando lugar à imagens heróicas e figurativas. Uma recente análise da pedra de Rök (800 d.C., Suécia), afirma que o texto alude a morte de um filho com um contexto significativo de eventos escatológicos, uma batalha final contra os poderes cosmológicos destrutivos e uma memória de crise climática (Holmberg, 2018-2019, p. 1-38). Também neste contexto, é de ressaltar que a Völuspá str. 40 ("rauðum dreyra; svört verða sólskin; um sumur eptir/ névoa vermelha, escuro será o sol; que brilhará no verão, tradução nossa) alude a um acontecimento prévio ao Ragnarök, que é típico de um céu diurno após uma erupção vulcânica - o sol fica obsurecido, cinza ou avermelhado durante meses, devido à presença de resíduos na atmosfera.

Figura 5: pingente em forma de lobo devorando um globo, Dublin, séc. IX-X d.C.

Em nossas pesquisas de etnoastronomia, identificamos que o aglomerado das Hiades (constelação de Touro) era conhecido na Escandinávia pré-cristã como a mandíbula do Lobo (Ulf's Keptr, citado no manuscrito Gks 1812, seção referente a informações celestes do período pagão) e descobrimos que ele esteve associado no céu com vários eclipses totais do Sol, Lua e passagens de cometa (conjunções astronômicas visíveis a olho nú) a partir do século VIII – estes fenômenos tem larga tradição de terem sido associados pelas povos europeus antigos à catástrofes e acontecimentos maléficos. Assim, em um período que vai do século VIII ao X d.C., o céu noturno também passa a ser associado com acontecimentos malignos e a figura do lobo (Langer, 2018, pp. 1-20). Como este animal já era vinculado com os deuses (como vimos nas bacteatas), a representação de um canídeo atacando corpos celestes toma uma forma mais objetiva no imaginário. Um recente estudo do escandinavista italiano Andrea Maraschi reforça os estudos sobre o Fimbulvetr como experiências pessoais associadas com visões apocalípticas, fixando uma memória sobre o antigo acontecimento na tradição oral. Este autor ainda reforça que a tradição do lobo nórdico como representação de catástrofes pode ter sido devida à associação entre eventos celestes sinistros e a constelação da mandíbula do lobo (Maraschi, 2019, p. 35):


É durante o século X que encontramos uma farta quantidade de imagens provindas de áreas nórdicas, todas relacionando o lobo com objetos circulares. A mais contundente é a de um contexto totalmente pagão, de Dublin da Era Viking, onde um pingente representa um lobo em feições ferozes, curvado e devorando uma espécie de globo (figura 5). Também os hogbacks ingleses de Tyningham e Ovingham 1C apresentam esculturas de canídeos atacando globos (Langer, 2012) (figuras 6 e 7).

Figura 6:  relevos  no hogback de Ovingham 1C: em um lado, dois lobos segurando um globo, de outro lado, somente um lobo com globo. Inglaterra, séc. X.


Figura 7: Lobo perseguindo um globo entre duas figuras masculina (uma delas porta um grande corno). Hogback de Tyninghame, Inglaterra, séc. X.

Apesar da poesia escáldica não apresentar diretamente material relativo ao Ragnarök, ela confirma essa tradição mais antiga do lobo como inimigo dos deuses, como em um trecho do Eiríksmál 7 “Hvi namt þu hann sigri þa er þer þotti hann sniallr vera þvi at ovist er at vita sagðe Oðenn ser ulfr enn hausve a siot goða.” (Então, por que privas ele da vitória, quando você mesmo pensou sê-lo bravo? Não prevejo o que deveria para saber, diz Óðinn, entretanto, o lobo cinza olha sombriamente para a morada dos deuses, tradução de Pablo Gomes de Miranda). Eiríksmál é um poema escáldico anônimo, composto sob o patrocínio da rainha Gunnhildr konungamóðir para homenagear o seu marido, Eiríkr blóðøx, morto em 954 d.C. Também o poema Hákonarmálséculo X, confirma a concepção do lobo relacionado a eventos escatológicos, estrofe 20 (Mun óbundinn á ýta sjǫt Fenrisulfr fara/ Solto de suas amarras, Fenrir o lobo, andará pelo mundo, tradução nossa).

Então, de maneira objetiva, as informações iconográficas e etnoastronômicas nos levam a considerar que as cenas da morte de Balder, de Odin sendo atacado por um lobo e dos astros serem devorados pelo mesmo animal (vargǫld, a Era do lobo), já existiam anteriormente ao ano mil. Somando-se à então recente erupção do vulcão Eldgjá na Islândia do ano 940 d. C. (Oppenhelmer, 2018), os pavores coletivos devem ter ficado ainda mais acirrados. E todos eles devem ter sido incorporadas em uma narrativa que se somava aos crescentes medos escatológicos provenientes da Inglaterra do século X: é a narrativa da Völuspá, que pode se tratar de um híbrido entre tradições orais cristã e pagãs (Abram, 2011, p. 165), todas incorporadas pelo paganismo tardio, antes deste desaparecer totalmente (Cardoso, 2006, p. 36). Era um período onde pagãos e cristãos conviviam plenamente, de forma ampla e circular. Então, antes de desaparecer com a cristianização, o próprio paganismo incorporou elementos cristãos em sua cosmovisão e concepção escatológica (interpretatio Norrœna). Neste caso, o poema Völuspá é originalmente um produto literário híbrido e não como se pensava na academia de tempos atrás - que o relato pagão teria sido preservado por escrito em tempos cristãos e sua escrita alterada pelo modo de ver do escriba, já cristianizado.

Mas com relação à Edda em Prosa, de Snorri Sturluson, o conteúdo híbrido sobre o Ragnarök da Völuspá é inserido em uma grande sistematização uniforme dos mitos antigos e se torna ainda mais um produto de seu tempo (Abram, 2011, p. 208), conectando o velho mundo com o novo – especialmente na volta de Balder de Hel e com o casal de humanos sobrevivente. A própria produção da Edda em Prosa foi devida à existência de uma cultura cristã na região, mas também o seu conteúdo sobre paganismo foi filtrado pela nova religião (Sêmedo & Fernandes, 2017, p. 212).

 

Bibliografia:

ABRAM, Christopher. Myths of the pagan North. London: Continnum, 2011.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Aspectos da cosmogonia e das cosmografias escandinavas. Brathair 6 (2), 2006, pp. 32-48.

HOLMBERG, Per et al. The Rök Runestone and the End of the World. Futhark 9-10 (2018-2019), pp. 1-38.

LANGER, Johnni. Um vulcão cristianizou a Islândia? Blog do Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos, 30 de março de 2018.

LANGER, Johnni. The Wolf's Jaw: an Astronomical Interpretation of Ragnarök, ARCHAEOASTRONOMY AND ANCIENT TECHNOLOGIES 6(1), 2018, pp. 1-20.

LANGER, Johnni. A morte de Odin? As representações do Ragnarök na arte das Ilhas Britânicas (séc. X). MEDIEVALISTA 11, 2012. 

LANGER, Johnni. Völuspá. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de Mitologia Nórdica. São Paulo: Hedra, 2015, pp. 555-558.

MARASCHI, Andrea. Learning from the Past to Understand the Present: 536 AD and its Consequences for Man and the Landscape from a Catastrophist Perspective. Ceræ: An Australasian Journal of Medieval and Early Modern Studies, 6, 2019, pp. 23-44.

OPPENHELMER, Clive et al. The Eldgjá eruption: timing, long-range impacts and influence on the Christianisation of Iceland. Climatic Changes 3/4(147), 2018.

PRICE, Neil; GRASLUND, Bo. Excavating the Fimbulwinter? Archaeology, Geomythology and the Climate Event(s) of AD 536. In: Past Vulnerability: Volcanic Eruptions and Human Vulnerability in Traditional Societies Past and Present, ed. Felix Riede, 2015, pp. 109–32. 

SÊMEDO, Rafael & FERNANDES, Isabela. The Context of Christianity and the Process of Composition of the Prose Edda. Roda da Fortuna 6(1), 2017, pp. 197-214.