Johnni Langer (UFPB/NEVE)
O filme 'O bastardo' ('Bastarden', 2023) chega às telas de cinema do Brasil, uma co-produção entre Dinamarca, Alemanha e Suécia, dirigida por Nikolaj Arcel. A produção foi baseada no romance 'Kaptajnen og Ann Barbara' (O capitão e Ann Barbara), de Ida Jessen. A narrativa trata do empreendimento do capitão Ludvig Kahlen em tentar cultivar e colonizar uma enorme região árida no centro da península da Jutlândia (composta basicamente de urzal), durante o século XVIII. Apesar da falta de apoio da realeza, das condições climáticas adversas e do enfrentamento de um inimigo, um aristocrata vizinho (Frederik De Schinkel), o capitão empenha-se em sua jornada até o fim. O diretor Nikolaj Arcel já havia dirigido outro excelente drama histórico sobre a Dinamarca setecentista (O amante da rainha, 2012, disponível no Prime), também com o ator Mads Mikkelsen. No novo filme, Mads interpreta o protagonista: o capitão Kahlen.
De um ponto de vista histórico existem diversos outros pontos que podem ser mencionados brevemente. A Jutlândia sempre foi conhecida nas fontes medievais por ser uma região árida. Adão de Bremen dizia no século XII que a maior parte da Jutlândia era uma terra horrível e desabitada, estéril e improdutiva. Durante a Era Viking, a maior parte da ocupação desta região foi constituída de empórios litorâneos, como Ribe, Aarhus, Hedeby e Viborg. Esta tendência de se ocupar somente o litoral jutlandês se estendeu por todo o Medievo e grande parte da Modernidade. Foi somente após a Segunda Guerra do Eslésvico (1864), que o centro da Jutlândia foi colonizado sistematicamente, graças às melhorias do solo e técnicas de reflorestamento do engenheiro Enrico Mylius Dalgas. Neste sentido, a pioneira jornada de Ludvig Kahlen é importante de ser recuperada. Outra questão é a grande conexão da Jutlândia com a Alemanha, da qual faz fronteira: desde o serviço de mercenário nas tropas alemãs (do qual Kahlen foi capitão), até a vinda de colonos deste país, para auxiliar Kahlen. Mas esta relação de interdependência cultural e social dano-teutônica é frágil –basta lembrar que o personagem de Mads no filme 'O amante da rainha’ é o alemão Johann Friedrich Struensee, um personagem histórico com suas reviravoltas políticas (não vou contar mais para não dar spoiler...) ou então as duas guerras do Eslésvico, do qual já analisei no artigo “1864: a guerra que nunca acabou”.
Outro ponto histórico e social é como a Jutlândia foi percebida historicamente pelos próprios dinamarqueses. Apesar dela ter sido o palco da primeira monarquia unificada e centralizadora em Jelling (na Era Viking), a península nunca foi dominada totalmente pela monarquia e aristocracia, que logo passaram a centralizar a política do reino na ilha da Zelândia (Sjælland, onde se situa a atual capital, Copenhague), ainda no século XI. Livre dos reis, a península se tornou um local dominado por grandes latifundiários. No século XIX ela se transformou no foco de um revigoramento da cooperação agrícola e pecuarista e os jutlandeses passaram a valorizar muito a sua paisagem natural e o seu vasto litoral de praias. Ao contrário dos suecos e noruegueses, os dinamarqueses residentes na ilha da Zelândia tradicionalmente não valorizam as regiões interioranas, preferindo levar um estilo de vida urbano e fechados em sua metrópole. Os escritores do Oitocentos, como Hans Christian Andersen, romantizaram a região da Jutlândia como exótica, mas que fazia parte da "dinamarquesidade", uma idealização, claro - a maioria dos leitores de Andersen quase nunca visitava ou tinha visto muito pouco o interior da Jutlândia.
No século XX, a península foi associada pelos artistas de Copenhague como um local tradicionalista, de hábito conservadores e até mesmo "atrasados" ou de "fala caipira". A famosa escritora Karen Blixen, conhecida pela suas críticas pesadas com relação aos hábitos e costumes dinamarqueses do interior, literalmente escancarou de forma muito sofisticada os habitantes da Jutlândia em seu romance Babettes Gæstebud (A festa de Babette, 1958) que foi filmada de forma esplendorosa em 1987. Os camponeses da Jutlândia aqui se tornam religiosos radicais que abandonam o gosto pela vida cotidiana e cujos limitados hábitos alimentares são contrastados pela cozinha sofisticada da França.
Mas escritoras mais recentes, como Dorthe Nors e Stine Pilgaard, estão tentando recuperar a tradição de considerar a Jutlândia como ponto central de suas produções literárias, mas já num sentido de reavaliar os valores, ideologias e comportamentos tanto dos jutlandeses quanto dos moradores de Copenhague e as diferenças de vida entre ambos (e especialmente, o choque cultural entre estes dois contextos).
Esse confronto entre a alma dinamarquesa (a Jutlândia) ser basicamente rural, provinciana e tradicional - contraposta à metrópole de Copenhague, sustentável e globalista, está sendo posto a prova nos últimos embates sobre biodiversidade e industrialismo no país. Nas palavras do escritor Michael Booth, a Jutlândia é uma região de cerveja ruim, de terrenos pedregosos e áridos, de muito vento - mas que ainda continua a definir e contradizer a Dinamarca contemporânea: "estamos felizes por ela estar lá, mas felizes por não vivermos lá". Neste sentido, o filme O bastardo é um produto direto deste embate dinamarquês entre o "selvagem" e o "civilizado", que se iniciou aos poucos no Medievo, mas plenamente no Oitocentos. A arte refletindo as contradições sociais de um país, do seu presente e do seu passado.
Agradecimentos: Agradeço a Sandro Teixeira Moita e a Leandro Vilar Oliveira pelo envio de bibliografia. A Luciana de Campos pela revisão e comentários ao presente texto.
Referências bibliográficas:
BOOTH, Michael. In search of Denmarks soul. Engelsberg Ideas, 8 de julho de 2024.
JENSEN, Bo Green. Bastarden: En mesterlig western fra Danmarkshistorien. POV International, 2023.
LANGER, Johnni. Odin: uma história arqueológica da Dinamarca viking. Petrópolis: Editora Vozes, 2024.
LAURING, Palle. A history of Denmark. Copenhagen: Høst & Søn, 2015.
MAPES, Terri. What and Where Is Jutland? Tripsavvy, 2019.
THOMAS, Alastair H. Historical Dictionary of Denmark. London: Rowman & Littlefield, 2016.