O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Um Funeral para Þórir

 

Cena de funeral, filme O 13o. Guerreiro, 1999.


Pablo Gomes de Miranda/NEVE
Doutor em ciências das Religiões pela UFPB

            Gostaríamos de alertar aos leitores que ainda não tiveram a oportunidade de assistir ao filme de 2022, O Homem do Norte (The Northman), que leiam o resto desse post por sua própria conta e risco, se arriscando a levar um spoiler já que a intenção desse post é o de fazer uma rápida análise de uma das cenas desse filme. Especificamente a cena do funeral de Þórir (Gustav Lindh), filho de Fjöllnir (Claes Bang), na Islândia, morto pelas mãos frustradas de Amleth (Alexander Skarsgård) após a revelação de que, Gúdrun (Nicole Kidman), a mãe do protagonista, havia planejado toda os acontecimentos que levaram ao desenvolvimento da obra até ali.

            A cena que iremos analisar está em um dos últimos atos, apresentado como Draugsþatr (com a legenda em inglês The Night Blade Feeds) e é uma das mais ricas do filme, em nossa opinião: Amleth finalmente começa a empregar a sua vingança ceifando a vida dos primeiros fazendeiros na Islândia com a espada mágica adquirida após o combate com o guardião de um montículo, e emprega uma guerrilha noturna onde as ações de Amleth se confundem com as crenças populares nórdicas, ou particularmente islandesas, de certos espíritos externos às fazendas que poderiam fazer mal aos homens, como Maras e Dísir, expressos entre 1:26:43 e 1:25:58: “Não toquem neles, nem olhem em seus olhos, os espíritos da noite entraram em suas peles e cavalgam suas mentes, Þórir. Vão embora, Dísir! Desapareçam!” (“Touch them not. Look not into their eyes. The Night Spirits have entered their skins and are riding their minds, Þórir. Out, Dísir! Begone!”).

            Tal preciosismo, que deleita especialistas e diletantes, só foi possível primeiro pela inspiração não apenas na história original do príncipe Amleth na crônica medieval O Feito dos Daneses (Gesta Danorum) atribuída a Saxão Gramático, bem como nas próprias sagas islandesas, já que a esposa de Robert Eggers, um dos produtores do filme, lhe interessou na leitura das sagas e ele mesmo admitiu a influência da Saga de Egill Skllagrímsson, a Saga de Grettir, o Forte, a Saga dos Habitantes de Eyri e da Saga de Hrólf Kraki e Seus Campeões (Egils saga Skallagrímssonar, Grettis saga Ásmundarsonar, Eyrbyggja saga e Hrólfs saga kraka ok kappa hans, respectivamente), segundo o site Thrillist e Little White Lies, onde também admite as referências de Conan, o Bárbaro, e suas conversas prévias com Alexander Skarsgård  (para acesso clique aqui) ambos com acesso em 21 de maio de 2022.

            Em segundo pelo próprio envolvimento de produtores culturais e intelectuais envolvidos na pesquisa dos povos nórdicos e de suas crenças e religiosidades: o outro produtor do filme e roteirista, Sigurjón Birgir Sigurðsson, ou Sjón, é um escritor reconhecido da Islândia, e que possuí um reconhecido envolvimento na produção de outros filmes, incluindo terror Thrash de 2009 Reykjavik Whale Watching Massacre, e o filme de horror de 2022 da produtora A24 “Lamb”. Elementos dos seus romances, em especial Skugga-Baldur e Rökkurbýsnir, podem ser encontrados no filme (em particular na presença da raposa azul). Não menos importante, a consultoria dos professores da Universidade da Islândia, Terry Gunnell e Jóhanna Katrín Friðriksdóttir, que trabalharam em conjunto com o professor da Universidade de Uppsala, oferecendo insights nos mais absurdos detalhes que nos invade quando assistimos o filme, segundo uma matéria nos sites do Smithsonian, The Arts STL e no site do periódico TheNew Yorker (acessos em 21 de maio de 2022).

            A cena, como escrito anteriormente, aparece no ato Draugsþatr, The Night Blade Feeds, e ela é uma referência direta ao único testemunho direto de um funeral Rus, um termo utilizado para descrever, entre outras coisas, os escandinavos que navegavam nos rios do Leste Europeu. O relato do árabe Aḥmad Ibn Faḍlān, que relata os primeiros acontecimentos nos anos de 921 ou 922 (309 ou 310 H.)  preservados em manuscritos a partir do século XIII (encontrados, pela primeira vez no Irã, em 1923), que estava em missão diplomática pelo califado abássida para financiar, armar e instruir na fé islâmica os eslavos representados pelo elteber Almaš Ibn Yalṭwār do Volga, em oposição ao domínio do Canato Cazar na região, relata os costumes de diferentes povos encontrados no Volga.

            Os leitores brasileiros têm acesso a tradução de Pedro Martins Criado e tomamos a liberdade de citarmos aqui os trechos que nos interessam para essa análise e iremos destacar as partes mais interessantes. Não vamos reproduzir as cenas, por questões legais: o filme ainda se encontra nos cinemas, no momento da escrita desse artigo, podendo ser acrescidas posteriormente, na ocasião do lançamento nos serviços de streaming e outras mídias digitais. Segue a tradução de Pedro Martins Criado sobre o relato de Aḥmad Ibn Faḍlān:

 

Morte de Pobres e Ricos

Disseram-me que, quando um de seus líderes morre, eles lhe fazem diversas coisas, das quais a última é queimá-lo. Eu quis saber mais sobre isso, até que fiquei sabendo da morte de um homem importante e fui ao seu túmulo. Haviam-no colocado ali com um telhado por cima durante dez dias, até que terminassem de cortar e costurar suas roupas.

Quando o falecido é um homem pobre, constroem um pequeno barco, colocam-no dentro e queimam. Quando é rico, reúnem o dinheiro dele e dividem em três terços: um para a família, um para fazerem suas roupas e um para o vinho do dia em que a escrava dele se mata e queima com seu proprietário.

Eles tomam muito vinho, bebem dia e noite. Às vezes, um deles morre com uma caneca na mão. Quando um dos líderes deles morre, a família pergunta a suas escravas e escravos: “Quem de vocês morrerá com ele?”, ao que algum deles responde: “Eu”. Se o disser, fica obrigado a fazê-lo sem poder voltar atrás. Mesmo que queira, não pode. Na maioria dos casos, quem se habilita são as escravas.

 

Funeral de um Nobre

Quando morreu aquele homem que mencionamos, disseram às suas escravas: “Quem morrerá com ele?” e uma delas disse: “Eu”. Nisso, apontaram duas escravas para vigiá-la, ir com ela aonde fosse e até mesmo, por vezes, lavar-lhe os pés com as próprias mãos. Então, voltaram a atender o falecido, cortar suas roupas e acertar todas as coisas de que ele precisasse. A escrava bebeu e cantou alegre e contente todo o dia.

No dia de queimá-los – ele e a escrava -, compareci ao rio em que estava seu barco. Haviam tirado o barco da água para que ele recebesse quatro pilares de madeira ḫaḏank e outras. Também colocaram à sua volta o que parecia ser uma grande estrutura de madeira, como um celeiro. Então, o barco foi puxado para cima daquela estrutura. Eles se aproximaram, indo e vindo, falando palavras que eu não entendi, enquanto o falecido ainda jazia no túmulo. Trouxeram um estrado, puseram-no no barco e o preencheram com um colchão e almofadas de brocado bizantino. Nisso, vi uma mulher velha a quem eles chamam “anjo da morte” e estendeu os estofados que mencionamos. Ela é encarregada de costura-los e arrumá-los, além de matar as escravas. Vi que ela era uma feiticeira enorme e sinistra.

Quando chegaram ao túmulo do homem morto, removeram a terra que estava sobre a madeira e depois a própria madeira. Tiraram-no com as roupas que estava usando quando morrera. Vi que ele ficara preto por causa do frio daquela terra. No túmulo, haviam colocado vinho, frutas e um tambor. Tiraram tudo isso de lá. Ele não fedia e nada, exceto sua cor, havia mudado.

Vestiram-lhe ceroulas, meias, botas, túnica e um cafetã de brocado com botões de ouro. Puseram-lhe na cabeça um gorro pontudo de brocado e pele de zibelina. Carregaram-no e dispuseram-no na tenda que estava sobre o barco. Deitaram-lhe o corpo no colchão e a cabeça nas almofadas, e colocaram vinho, frutas e manjericão com ele.

Trouxeram pão e carne e puseram à sua frente. Trouxeram um cão, partiram-lhe ao meio e lançaram-no ao barco. Então, trouxeram todas as suas armas e colocaram ao seu lado. Pegaram dois cavalos, fizeram-no correr à exaustão, cortaram-nos em pedaços com a espada e lançaram sua carne ao barco.

Então, trouxeram duas vacas, também as cortaram em pedaços e lançaram ao barco. Depois, prepararam um galo e uma galinha, mataram-nos e os colocaram nele também.

Enquanto isso, a escrava que quis se matar ia e vinha, entrando em cada uma das tendas. O dono da tenda fazia sexo com ela e dizia: “Diga ao seu proprietário: só fiz isso por amor a você”.

 

O Anjo da Morte

             Na sexta-feira, quando chegou a hora da reza da tarde, trouxeram a escrava até uma estrutura que haviam armado e que parecia um batente de porta. Ela apoiou as pernas na palma das mãos dos homens, até que pudesse ver aquele batente, disse algumas palavras e eles a desceram. Ergueram-na uma segunda vez e ela fez como fizera da primeira, então a desceram e a subiram uma terceira vez, e ela fez como fizera das outras duas vezes. Então, deram-lhe a galinha, ela arrancou sua cabeça e a arremessou longe. Pegaram a galinha e a jogaram no barco.

             Perguntei ao intérprete sobre o que ela estava fazendo. Ele disse: “Da primeira vez que a levantaram, ela disse: ‘Lá vejo meu pai e minha mãe’; da segunda, disse: ‘Lá vejo todos os meus parentes mortos sentados’; e da terceira: ‘Lá vejo meu proprietário no paraíso junto com homens e escravos, e o paraíso é bom e verde. Ele está me chamando, então me mandem até ele!’” Eles a levaram até o barco, ela tirou as duas pulseiras que estava usando e deu à mulher chamada de “anjo da morte”, que é quem mata a escrava. Tirou as duas tornozeleiras que usava e as deu às duas escravas que tinham ficado a serviço dela, que são filhas da mulher conhecida como “anjo da morte”.

             Então, subiram-na no barco sem colocá-la dentro da tenda. Os homens vieram com escudos e bastões de madeira e deram a ela uma caneca de vinho, para a qual ela cantou e então bebeu. O intérprete me disse: “Ela faz isso para se despedir das companheiras”. Então foi-lhe entregue outra caneca, a que ela pegou, estendendo a cantoria, ao que a velha a incitava a beber e entrar na tenda em que estava seu proprietário. Vi que ela se embriagara, pois queria entrar na tenda, mas colocou a cabeça entre ela e o barco. A velha pegou sua cabeça, empurrou-a para dentro da tenda e entrou junto.

Os homens começaram a bater os bastões nos escudos para que não se escutasse o som dos gritos, os quais assustariam as outras escravas, fazendo-as não querer mais morrer com seus proprietários. Então, seis homens entraram na tenda e todos fizeram sexo com a escrava, sem exceção, e então deitaram-na ao lado de seu proprietário, dois segurando-a pelos pés e dois pelas mãos. A velha chamada de “anjo da morte” colocou em seu pescoço uma corda, cruzando as duas pontas e passando-as a dois homens para que puxassem, e veio com uma adaga de lâmina larga. Começou a enfiá-la entre as costelas dela aqui e ali, e então a tirar enquanto os dois homens a enforcavam com a corda, até que ela tivesse morrido.

             Então, veio o parente mais próximo daquele falecido, pegou um bastão e o jogou no fogo, andando para trás – de costas para o barco e de frente para as pessoas – com a tocha em uma mão e a outra cobrindo o ânus, pois estava nu, acendeu a madeira que fora distribuída embaixo do barco. Depois disso, puseram o corpo da escrava que haviam matado ao lado de seu proprietário.

             Então, as pessoas vieram com bastões e lenha. Cada um tinha um bastão, cuja ponta haviam acendido e que lançaram àquela madeira. O fogo pegou na lenha, no barco e então na tenda, no homem, na escrava e em tudo o mais que estava lá. Nisso, bateu uma ventania assustadora, as chamas cresceram e o calor se intensificou. Ao meu lado, havia um dos rus que eu escutei conversando com o intérprete que estava comigo. Perguntei ao intérprete o que ele dissera. Ele disse: “ele diz: vocês árabes são tolos”, e eu disse: “Por que isso?”. Ele disse: “Vocês colocam as pessoas a quem mais amam e respeitam a terra, onde as minhocas e os vermes as comem. Nós as queimamos com fogo em um instante, assim elas entram no paraíso na mesma hora”.

             Então, ele riu demais. Eu perguntei sobre aquele vento e ele disse: “O amor de seu Senhor por ele é tão grande que Ele enviou o vento para leva-lo em uma hora”. De fato, não passou uma hora até que o barco, a lenha, a escrava e o falecido tivessem virado cinzas e pó. Depois, no local por onde haviam tirado o barco do rio, construíram como que um morro redondo e fincaram um grande poste de madeira ḫaḏank no meio. Escreveram nele o nome do homem, o nome do rei dos rus e foram embora.

 

                A primeira consideração que devemos fazer é em relação a dinâmica de nossa análise sobre o filme e os nossos objetivos aqui. Não queremos apontar o que o filme fez certo ou errado, simplesmente porque essa oposição não cabe à dinâmica da representação da obra cinematográfica, cuja obrigações estão contidas ao campo da Arte, enquanto que nosso olhar, dentro da História das Religiões, é a de estabelecer as referências das cenas no ato já apontado anteriormente. Aqui, o problema a ser considerado dentro de uma abordagem metodológica histórica é necessariamente de ordem hermenêutica, de contenção dos significados dentro da própria fonte, mas sobretudo semiótica nas relações com os filtros ideológicos, de um certo “conteúdo latente” e da realidade social externa ao filme em que este se encontra integrado (CARDOSO e MAUAD, 1997, p. 573, 583-584).

            A segunda consideração está no âmbito das traduções e dos olhares sobre a fonte escrita e o longa-metragem. Não é o caso de estarmos aqui, apontando aos leitores, passagens de uma tradução direta do árabe ao português, já que não estamos interessados nas minúcias de uma possível análise do texto, mas a maneira como os nossos interlocutores traduzem esses olhares para nós. Se por um lado Aḥmad Ibn Faḍlān admite, ele mesmo, utilizar um tradutor que lhe explique as palavras desses Rus, por um outro, as expressões como “Anjo da Morte” e “Paraíso” podem ser as suas tentativas de explicar aos leitores de sua fonte, esse testemunho. As Ciências das Religiões apresentam suas próprias preocupações em relação as conexões com o olhar do viajante árabe com o sagrado do outro, e a representação figurada no cinema a partir dessa referência. Há aqui a preocupação de separar esses elementos em duas ordens do sagrado relacionadas a fontes primárias de naturezas diferentes: uma textual e uma cinematográfica, onde se reconhece na primeira uma relação com a esfera do sagrado em que temos acesso pelas lentes da alteridade (ou entre culturas com visões de mundo diferente, como pretende KAVKA, 2012, p. 206) que faz o seu melhor para traduzir o que vê, e em seguida a produção do filme que busca não só se inspirar, mas ressignificar a conexão com o sagrado, retraduzindo as passagens conforme os filtros apontados no parágrafo anterior. Se faz necessário relembrar que ambas as fontes não se pretendem passar por expressões do sagrado, mas indiscutivelmente ambas se recobrem de alguma autoridade que lhes permite expressar adequadamente esse sagrado (testemunho ocular, ou a presença de especialistas).

Uma terceira consideração, na qual o filme, ainda que não tenha a obrigação com a “Verdade”, indubitavelmente os seus produtores apostaram no discurso da veracidade em oposição a obras que também se propuseram a falar dos Vikings e esse discurso de veracidade passa pelas lentes da tradução (como representar ritos tão estranhos de maneira inteligível para uma audiência moderna?), de tal maneira que essa terceira consideração é uma de modo que as duas primeiras considerações se encontram também envolvidas aqui. O desafio de estudar as religiões a partir das representações visuais envolvem elementos como símbolos visuais, ordens espaciais, e, novamente, elementos semióticos, em paridade com as estruturas ritualísticas, ao mesmo tempo em que é imprescindível compreender as dinâmicas religiosas na intersecção das representações entre a produção audiovisual e a cultura iconográfica, segundo KNOBLAUCH, 2011, p. 441 e HARVEY, 2011, p. 519. Como não tem obrigação com a “Verdade”, o filme O Homem do Norte não tem também obrigação com a “Religião”.  

Façamos então uma exposição das cenas propostas, e aqui, para facilitar nossa análise, dividimos em quatro partes:

1 - No início observamos uma mulher ser erguida sobre algo que não sabemos o que é, aparecendo apenas o seu rosto enquanto ela diz “Eu vejo o meu pai e minha mãe” (“I see my father and mother”), sendo abaixada e desaparecendo de nossa vista. Ela é erguida novamente e fala “Eu vejo meus parentes mortos” (“I see my dead kindred”), para daí as ações se repetirem, onde ela é abaixada e desaparece. Erguida uma terceira vez, ela retorna a falar: “Eu vejo o meu mestre no salão de Freyja. Ele chama por mim” (“I see my master in Freyja’s hall. He calls me to him”), sendo ovacionada por vozes de pessoas que em primeiro momento não estão projetadas, para só então a câmera acompanhar essa mulher, que é uma escrava, nos revelando que ela estava sendo erguida acima de uma estrutura que lembra uma porta. Ela está ricamente adornada com broches, contas de vidro, pingentes e pulseiras, o barulho das ovações é cortado pelo seu repentino cantar e que finalmente revela ser este o momento do funeral de Þórir.

Aqui há uma referência direta às palavras da escrava do relato de Ibn Faḍlān que se voluntaria para a morte. Ela é igualmente erguida ao batente da porta e menciona seus parentes, antepassados e o morto que lhe chamam desde o paraíso, um lugar bom e verde. Essa porta é um espaço liminar, e ali a escrava está vendo algo misterioso que é a sua aceitação nesse espaço. Aqui, o paraíso relatado por Ibn Faḍlān é representado como O Campo dos Povos ou o Campo do Bando, Fólkvangr, um pós-vida guerreiro presidido pela deusa Freyja que recolhe para si metade dos mortos trazidos pelas valquírias, um espaço apropriado. A escolha dos roteiristas é curiosa, pois ela é mencionada como um espaço também apropriado para as mulheres na já mencionada Saga de Egill Skllagrímsson, bem como uma referência ao deus Freyr, adorado por Fjöllnir e sua família.

O anjo da morte, aqui é uma sacerdotisa que habita a fazenda de Fjöllnir e que está responsável pelo bem espiritual da área, já que nos créditos do filme, a atriz Olwen Fouéré é mencionada como Áshildur Hofgythja (podendo ser traduzido o termo hofgythja, em nórdico antigo, enquanto “sacerdotisa”). As duas pulseiras aparecem com a escrava, que não as retira no filme, tampouco a galinha aparece aqui. Tampouco aparecem aqui menção a quaisquer ajudantes ou preparos fúnebres.

2 - A família enlutada veste branco, os homens acompanham o cântico batendo os seus escudos, a mulher é levada a um barco que está parcialmente inserido dentro de um pequeno montículo. No barco está o corpo de Þórir vestido ricamente e em armadura, deitado em uma cama com um travesseiro, várias plantas ao seu redor, o seu elmo ao lado, uma mulher de branco e com uma adaga na cintura deposita a sua espada em cima do defunto após receber a mulher que canta na embarcação. Nessa cena é possível perceber uma estátua que parece ser de Freyr pelo seu avantajado falo. A câmera se aproxima ainda mais revelando que o nariz de Þórir foi selado de alguma maneira com o que parece ser argila ou barro.

O bater dos escudos e a cantoria das mulheres talvez não cumpra a mesma função no relato de Ibn Faḍlān, porque não está claro no filme se as vozes das mulheres são das escravas ou das habitantes da fazenda. De qualquer modo os homens batem os escudos aqui mais para acompanhar o ritmo do cântico e menos para esconder algo dos outros escravos. O corno de bebida é entregue pela sacerdotisa que a esfaqueia ali na frente de todos.

Todas as referências ao sexo inexistem no filme, bem como as tendas que poderiam ser diferentes espaços com significados ritualísticos únicos, bem como diferentes animais sacrificados no relato do viajante árabe: galinha, cão e vacas (a exceção é o cavalo, como veremos adiante). As referências ao tambor, frutas e ao vinho ficam representados aqui, talvez, pela presença do visco ao redor do corpo de Þórir. O detalhe do nariz tapado é desconhecido para nós.

3 - Em um novo ângulo, com a estátua de Freyr em nossa frente, a escrava vira um corno de bebida enquanto a mulher de branco recita parcialmente a estrofe 76 do poema Hávamál “... deyja frændur, deyr sjálfur ið sama; en orðstír, deyr aldregi, hveim er sér góðan getur” (... os parentes morrem, do mesmo modo eu mesma morrerei; contudo o renome nunca morrerá, para quem obtém boa fama). A câmera se afasta mais uma vez e em um novo plano, Fjöllnir encosta a sua cabeça na de um cavalo pronto para montaria e anuncia o fim do luto por Þórir enquanto entrega uma espada ao seu, agora, único filho que anuncia o sacrifício do cavalo com as seguintes palavras “Que a cerveja do pescoço desse rápido garanhão lhe carregue rápido para a árvore mais alta das urdidoras de batalhas” (“May the neck-ale of this swift steed hasten you to the highest tree of the battle-weavers, brother”) para então sacrificar o animal com vários golpes da lâmina. No plano ao fundo, enquanto a câmera retorna para nos dar uma visão geral da cena, a escrava é enforcada por um homem enquanto a mulher de branco lhe apunhala várias vezes entre as costelas.

A referência ao cavalo aqui é curiosa porque são animais presentes em diferentes ritos fúnebres, mas há uma provável conexão ao culto do deus Freyr em uma saga conhecida como a Saga de Hrafnkell, o Sacerdote de Freyr (Hrafnkels saga Freysgoða) onde um fazendeiro possui uma ligação única com o cavalo nomeado Freyfaxi, dedicado ao deus Freyr. As palavras do jovem Gunnar (Elliott Rose) sobre o sangue que jorra do garanhão e da árvore mais alta das urdidoras da batalha, deve ser uma referência tanto ao papel do cavalo como psicopompo, o animal que atua na passagem entre os mundos, como também uma referência as Nornas, mencionadas durante todo o filme (uma possível associação às valquírias aqui também é possível, já que elas aparecem analisando a batalha em uma tapeçaria no poema Darraðarljóð onde elas analisam, nos fios, os mortos da batalha de Clontarf).

4 - O cavalo sacrificado tem a sua cabeça separada, o sangue recolhido e Gúdrun asperge o sangue no marido e filho que estão nús, anunciando ser ele o novo herdeiro da fazenda, pois é o único filho vivo. Fjöllnir declara o fim de seu luto pessoal e, consoante ao barulho dos escudos batidos, berros dos homens e do cantarolar das mulheres, nú e girando uma matraca sobre a sua cabeça, também declara o momento de sua vingança contra Amleth.

Curiosamente o barco onde se encontra os corpos de Þórir e da escrava, aqui não é queimado como no relato de Ibn Faḍlān, já que metade dele está em um montículo, então qualquer referência a queima ritualística da embarcação, também não está no filme. Desconhecemos o ato de aspergir o sangue do cavalo enquanto ritual jurídico, confirmando a autoridade de Gunnar como herdeiro da fazenda. Como não há a queima do navio, a nudez de Fjöllnir não é representada do mesmo jeito que no relato, onde o parente mais próximo do defunto inicia o fogo ao mesmo tempo em que cobre o ânus. Não só Fjöllnir não faz qualquer menção de se cobrir, como eleva o barulho ao seu redor com a matraca. Essa matraca, que aparece em cenas ritualísticas em outros momentos do filme, está conectada ao afastamento de maus espíritos e ao culto a Freyr na Gesta Danorum. É uma série de elos de ferro unidas e que pode ser encontrado entre os vestígios arqueológicos do navio funerário de Oseberg, e também presente em funerais com depósitos sacrificiais de cavalos.

É possível que a produção do filme tenha escolhido deliberadamente não representar cenas com os elementos sexuais do funeral, se for o caso, talvez tenham pretendido poupar os espectadores de cenas que poderiam causar mal-estar. Por que essa é uma questão importante? A produção não esconde a violência das razias escandinavas no leste europeu, em especial a maneira como capturam seus escravos, parte importante das atividades vikings. No relato de Ibn Faḍlān, as escravas se voluntariam para morrer com seus antigos donos, com a finalidade de os acompanharem no pós-vida. Contudo, na hora do sacrifício, os homens disfarçam os sons da morte com as pancadas nos escudos. Então essas mulheres saberiam, de antemão que seriam sacrificadas? De alguma maneira as três considerações anteriormente descritas se relacionam a uma preocupação, muito interessante, em como a violência será representada aqui, já que nem toda a violência é aceita pelo público nas telas.

            Uma prova da complexidade dessa dinâmica é observável na representação da escrava sacrificada. Realizamos uma live no perfil do NEVE na rede social Instagram no dia 24 de maio de 2022 (clique aqui para acessar) em parceria com a profa. Ma. Monicy Araújo, e em determinado momento, enquanto estávamos comentando as cenas do funeral de Þórir, a professora Monicy e muitas mulheres da nossa audiência insistiram que a escrava talvez não estivesse ali, no filme, voluntariamente, já que a atriz expressava medo em sua atuação. Talvez, no contexto do sacrifício, o sexo poderia se tornar algo repulsivo? Esses detalhes podem ter pesado, de alguma maneira, nas escolhas desses elementos para a escrita do roteiro.

            Por fim, nos resta dizer que essa é uma das melhores representações de uma descrição tão rica como a que temos do relato de Ibn Faḍlān no cinema. Excetuando as escolhas feitas pelos roteiristas do filme, aqui a ausência do sexo e dos sacrifícios de animais, a produção escolheu uma proximidade com o relato que até então não foi visto em outros filmes com a mesma temática. Ficamos, desde já, ansiosos para ler que tipos de outras conexões e representações chamará a atenção dos pesquisadores e da academia no geral, em vista da proposta desse filme, que apesar de não ser inusitada, decide privilegiar olhares tão ricos sobre o passado.

Referências

Fontes

Aḥmad Ibn Faḍlān, Viagem ao Volga. Tradução e Apresentação de Pedro Martins Criado. São Paulo: Carambaia, 2019.

O Homem do Norte. Robert Eggers. Produção de Official Focus Features. Estados Unidos; Islândia: Universal Pictures, 2022.

Bibliografia

CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. História e Análise de Textos. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 568 – 590.

HARVEY, John. Visual Culture. In: STAUSBERG, Michael; ENGLER, Steven. The Routledge Handbook of Research Methods in The Study of Religion. Londres: Routledge, 2011, p. 502 – 522.

KAVKA, Martin. Translation. In: ORSI, Robert A. The Cambridge Companion to Religious Studies. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2012, p. 186 – 208.

KNOBLAUCH, Hubert. Videography. In: STAUSBERG, Michael; ENGLER, Steven. The Routledge Handbook of Research Methods in The Study of Religion. Londres: Routledge, 2011, p. 433 – 444.

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Videografía: 

As religiões Nórdicas da Era Viking (canal do NEVE no Youtube)