O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

sábado, 14 de maio de 2022

Os rituais do filme "O Homem do Norte" (2022)

                               

Os rituais do filme "O Homem do Norte" (2022)


Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

johnnilanger@yahoo.com.br


O filme O homem do Norte (The Northman, 2022) é uma produção estaduninense dirigida por Robert Eggers e roteiro de Eggers e Sigurjón Birgir Sigurðsson (Sjón). A sua trama é baseada na estória de Amleto (Amleth), popularizada no século XI com o livro Gesta Danorum (Saxo Gramático, 2013), mas com diversas modificações. O personagem principal (Amleth) procura vingar a morte de seu pai (o rei Aurvandill) por seu irmão. Amleth foge para a região Leste, habitada pelos Ru´s, torna-se um bersekr e depois, se passando por um escravo, vai para a Islândia para tentar matar o seu tio. O filme é repleto de referências mitológicas, folclóricas, conteúdos das sagas islandesas, cultura material, indumentárias e diversas outras questões visuais e estéticas, do qual não vamos nos ocupar. Vamos apenas fornecer alguns referenciais genéricos e filmográficos, passando a seguir em especial uma breve análise de cenas rituais que o filme aborda.

De forma geral, a produção vai na contramão de recentes produções sobre a temática. O termo "Viking" sequer é mencionado, ao contrário, por exemplo, da série Vikings: Valhalla (1a. temporada de 2022), em que surge a todo momento como identidade étnica de todos os escandinavos. Com isso, o filme de Eggers se afasta da tradicional filmografia norte-americana (popularizada com o filme The Viking, 1928) e se aproxima muito mais de produções islandesas, como À sombra do corvo (Í skugga hrafnsins, 1988). O tom da narrativa é muito mais o desenvolvimento do personagem central e as cenas de conflitos e lutas são muito locais (bem típica das sagas de família), ao contrário das grandes produções de Hollywood, onde as cenas de grandes batalhas ou do encontro de enormes exércitos sempre constitui o clímax dos filmes épicos (vide: Vikings, os conquistadores, 1958 ou mesmo a série Vikings). Com certeza aqui temos uma influência objetiva do roteirista, o escritor islandês Sjón.

Mas o diretor também flerta com o próprio gênero de fantasia medieval e aventuras épicas: em pelo menos dois momentos percebemos estas influências. A cena final do duelo é muito semelhante ao encontro de Arthur e Mordred no desfecho do filme Excalibur (1981), enquanto que o personagem Amleth ao retirar a espada da mão de um draugr é muito semelhante a de Conan, o bárbaro (1982), no momento em que este pega a espada de um rei defunto.

De todas as cenas de rituais do filme, apenas uma é baseada diretamente em fontes históricas - o funeral, como veremos depois. O diretor utilizou como consultores dois dos maiores especialistas sobre religiões nórdicas pré-cristãs da atualidade: Neil Price e Terry Gunnell.

Uma das primeiras cenas do filme é quando o rei Aurvandill chega em seu salão e é recebido por várias pessoas segurando um argola em suas mãos para o alto. Com certeza esta cena foi baseada na famosa estela de Tängelgårda da ilha da Gotlândia, onde vários homens e um cavaleiro portam uma argola, bem próximo de três imagens de valknuts. Em escavações de locais sagrados da Escandinávia pré-cristã foram recuperadas grandes argolas e sabemos pelas sagas como elas eram utilizadas para juramentos, acordos, alianças e vínculos, além de objetos mágicos relacionados aos deuses (como o anel de Odin) (Miranda, 2015, p. 33-36). Também no salão aparece uma reprodução quase fiel da tapeçaria de Oseberg (séc. IX, a cena dos sacrificados). Foram mantidos os mortos pendurados na árvore e o símbolo do quadrefólio no lado direito, mas a suástica que aparece originalmente na base esquerda da árvore foi retirada. Evidentemente para evitar problemas com os atuais supremacistas dos EUA e Europa. Esta cena da árvore com enforcados vai servir de paradigma visual para todo o filme: na tapeçaria, os mortos parecem "flutuar" sobre os galhos, uma ideia que o diretor vai aproveitar magistralmente, brincando com a noção de tempo na própria trajetória dos personagens. A noção de destino e seus vínculos com entidades sobrenaturais (como as nornas) também é algo recorrente em todo o filme.

Logo em seguida, no salão real, o rei Aurvandil e seu filho participam de um ritual imitando lobos e bebendo no chão uma poção com alucinógenos, visto que logo depois ambos tem visões e entram em uma espécie de transe. Eles obedecem ao comando de um homem portando uma máscara (semelhante a que foi encontrada no casco de uma embarcação em Hedeby, imagem abaixo).


A cena foi inspirada na Saga dos Volsungos (séc. XIII, tradução ao português: 2009), onde o rei Sigmund e seu filho Sinflioti usam peles de lobo e imitam o comportamento destes animais em uma floresta. Sabemos que entre vários guerreiros desde a Idade do Ferro era comum a utilização de vestuários, presas e dentes de ursos e lobos, animais totêmicos relacionados ao deus Odin (Langer, 2023). Mas não temos como verificar diretamente a sua  existência histórica em um contexto aristocrático e da realeza. O uso de psicotrópicos em rituais nórdicos também é muito polêmico na Escandinávistica e não há um consenso neste sentido. O filme em outra cena, vai fazer referência ao Amanita muscaria, o cogumelo associado aos transes nórdicos desde os anos 1960. Mas que ainda não é possível a comprovação histórica de seu uso na Era Viking.


Amleto como berserkr no filme O homem do Norte

Outro momento ritualístico, o principal de todo o filme, é quando Amleth se encontra no Leste, na terra dos Ru´s. Vários berserkir cantam e dançam em torno de uma fogueira. Primeiro uivam e gritam, depois se movem circularmente em torno do fogo, para depois gritarem novamente. Sabemos que existiram cultos guerreiros ligados à movimentos e danças. Figurações em bracteatas e placas de elmos dos séculos V ao VII atestam isso. Constantine Porphyrogenitus em seu livro Administrando Imperio (séc. X) descreve varegues dançando ritualmente no Jól (Boyer, 1997, p. 27). Mas não sabemos como eram efetivamente estes rituais: quando tempo duravam e o que era feito neles. O diretor Robert Eggers deve ter utilizado para seu filme os documentos (e diversos filmes a respeito) sobre os guerreiros indígenas norte-americanos em seus rituais para a guerra: todos dançam quase nus ou seminus em volta de uma fogueira, realizando movimentos circulares e em alguns momentos param e gritam ou ainda entoam brados de guerra. 
      
                                                  
Cena de Berserkr que imita Odin 

Neste mesmo contexto, um outro detalhe foi recuperado da iconografia antiga para o filme: a figura de um ancião, cego, imitando o deus Odin - portando um elmo com chifres e segurando dois dardos cruzados. Uma imagem que é encontrada em dezenas de pingentes e também na tapeçaria de Oseberg (séc. IX). Vários pesquisadores vem considerando a possível existência de dramatizações e performances em antigos rituais nórdicos - uma pessoa encarnaria um deus (neste caso aqui, Odin) (Schjødt, 2020, p. 589-642). Mas qualquer tipo de reconstituição moderna sempre vai ser altamente conjectural e ainda mais em se tratando de mídia artística.


A profetisa da terra dos Ru´s

Em outro momento, o diretor também parecer ter sido influenciado pela estética do xamanismo indígena norte-americano. Na representação de uma profetisa da área eslava, a mesma porta um grande cocar, mas em vez de penas, são feixes de trigo (várias deusas eslavas eram ligadas ao trigo) ou ainda, uma modificação da tradicional coroa de flores vinok para um cocar. Em suas mãos, ela segura e desfia um fuso de lã, um ato simbólico associado à profecia, as nornas e a deusa Freyja na arte ocidental desde o século XIX (Filomé-Rommé, 2021, p. 13-51). Mas também a deusa eslava Mokosh protegia a tecelagem e a fiação. Atrás da profetisa, foi inserida uma estátua, muito semelhante à uma das efígies do pilar quádruplo que foi encontrado na região de Zbruch, Ucrânia e datado do século IX. Ao redor da profetisa e da estátua situa-se uma paliçada, mas o local não parece uma edificação fechada, o que condiz com as pesquisas arqueológicas da região dos Ru´s.


A profetisa e a estátua de uma deidade


Já na Islândia, um pequeno templo dedicado ao deus Freyr surge junto a dois sacerdotes. A representação destes líderes cúlticos ficou muito mais crível do que as apresentadas na série Vikings: enquanto nesta eles eram carecas, com pinturas nos olhos e comportamento sinistro, os sacerdotes do filme são normais, se diferenciando das outras pessoas de sua região apenas pelo uso de um manto muito simples. Em outro momento, vai aparecer em espaço aberto uma estátua com um pênis ereto - certamente o deus Freyr, deduzida pelo relato de Adão de Bremen e algumas descobertas de estatuetas e artefatos com caráter falocêntrico por diversas regiões escandinavas pré-cristãs.

O último ritual constante do filme, como já aludimos, é o mais histórico. Trata-se da cena do enterro do filho de Fjölnir. A produção aproveitou o famoso relato de Ibnd Fadlan em sua visita aos Ru´s no século IX (traduzido ao português: Fadlan, 2018). A maioria dos detalhes reconstituídos provém deste relato, desde a moça que se ofereceu para o sacrifício (e é erguida momentaneamente com um cântico), a morte do cavalo até o fato de Fjölnir ficar nú em volta do barco sepulcral. Mas a cena da imolação humana ficou um pouco exagerada. No relato, a moça é embebedada com algum narcótico e o "anjo da morte", uma anciã, a executa por trás, com um corte na garganta. O filme conserva a imagem de perfuração frontal de uma faca no ventre, como na série Vikings (nos preparativos do funeral de Lagertha, 6a. temporada). Mas de modo geral, a cena ficou muito mais detalhada e crível do que em produções como O 13o. guerreiro (1999) e a comentada série Vikings. Nesta última, pelo fato de terem agregado ao funeral de Lagertha uma série de elementos fantasiosos: vários sacerdotes lançam baldes de sangue na proa da embarcação e depois esta é arremessada em chamas dentro de um rio (um relato que só temos no mito: no funeral do deus Balder. E sabemos muito bem: mito não é rito, Langer, 2023).

O novo filme de Robert Eggers com certeza será extremamente paradigmático na filmografia sobre os Vikings. A grande maioria das produções, tanto de filmes europeus quanto norte-americanos, quase sempre representou a antiga religiosidade nórdica como exótica e macabra, dentro de um referencial cristocêntrico (Langer, 2015, p. 155-180). O filme O homem do Norte procura expor as crenças e os ritos de uma forma extremamente crível, fugindo de estereótipos e informações equivocadas. Por certo não consegue atingir um alto nível de veracidade histórica, pela falta absoluta de fontes primárias detalhadas (e também sabemos: Cinema não é História, é Arte), mas transmite ao espectador uma experiência visual única sobre o passado nórdico. Os antigos mitos e ritos da Escandinávia precisam de mais divulgações midiáticas que tenham envolvimento com as pesquisas acadêmicas. O filme de Eggers consegue atingir esse intento, além de produzir uma obra artística de grande nível.

Bibliografia:


Fontes primárias

ANÔNIMO. A saga dos Volsungos. Tradução de Theo de Borba Moosburger. São Paulo: Hedra, 2009.

FAḌLAN, Aḥmad Ibn. Viagem ao Volga. Tradução: Pedro Martins Criado. São Paulo: Carambaia, 2018.

GRAMÁTICO, Saxo. Historia Danesa. Tradução: Santiago Ibáñez Lluch. Madrid: Miraguano Ediciones, 2013.

Fontes secundárias

BOYER, Régis. Berserkr. In: Héros et dieux du Nord. Paris: Flammarion, 1997, p. 27.

FILOCHE-ROMMÉ, Susan. Fatal spinters: thread works in 19th-century artistic depictions of Norse mythological women. Scandia Journal of Medieval Norse Studies 4, 2021, pp. 13-51. 

LANGER, Johnni. O culto a Odin/O culto a Freyr/Templos e locais sagrados/As práticas mágicas. In: Runas, deuses e ritos: As religiões nórdicas da Era Viking. Livro impresso (a ser publicado em 2023).

LANGER, Johnni. Fé, exotismo e macabro: algumas considerações sobre a religião nórdica antiga no cinema. Ciências da Religião, Mackenzie Online, vol. 13, 2015, pp. 155-180.

MIRANDA, Pablo Gomes de. Anéis. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de Mitologia Nórdica. São Paulo: Hedra, 2015, pp. 33-36.

SCHJØDT, Jens Peter. Various ways of communicating/Crisis rituals/Cyclical rituals/Passage rituals. In: SCHJØDT, Jens Peter, et al (Eds.). The Pre-Christian Religions of the North: History and Structures, vol. I. Turnhout: Brepols, 2020, pp. 589-642; 781-796; 797-822; 823-851.


Videografía: