O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

domingo, 22 de maio de 2022

O filme O homem do Norte e o Ægishjálmur



O filme O homem do Norte e o Ægishjálmur


Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)
johnnilanger@yahoo.com.br

Uma das cenas mais intrigantes do filme O homem do Norte é o encontro do protagonista, Amleth, com um feiticeiro em uma caverna da Islândia.


Cena do feiticeiro com uma cabeça mumificada, O homem do Norte, 2022


A descrição de feiticeiros na Escandinávia da Era Viking é muito rara. Geralmente as sagas islandesas mencionam a ocorrência de mulheres envolvidas em atos mágicos, proféticos e de feitiçaria. No caso de homens, temos a menções ao spámaðr, seiðmaðr e galdramaðr. As descrições destes praticantes são praticamente inexistentes: não sabemos se utilizavam indumentárias, apetrechos ou objetos diferentes das mulheres. Tudo o que foi encontrado em termos de cultura material foram tumbas femininas contendo bastões mágicos e objetos como pingentes de cadeiras elevadas, vestígios de plantas, etc. 

Então de onde o diretor Robert Eggers retirou as informações para esta cena do filme? De um lado, ele utilizou a cena mítica da consulta de Odin com a cabeça de Mímir (Sigrdrífumál 14), para descobrir mais informações sobre o futuro. Mas não existem evidências do uso de cabeças de mortos para ações mágicas na Escandinávia antiga, sendo muito mais uma cena de impacto visual por parte do filme. De outro lado, Eggers vai usar o visual de feiticeiros existentes no Museu de Bruxaria e Feitiçaria (Galdrasafnið), situado na vila de Hólmavík, Islândia. A maior parte do acervo e das exposições são referentes à história da feitiçaria dos tempos modernos, após o século XV, além de peças artísticas que reconstituem o imaginário folclórico islandês. Um dos poucos objetos que supostamente seria da Era Viking é uma pedra que possui uma certa concavidade e teria sido utilizada para receber o sangue das vítimas animais, descoberta em Goðdalur (o vale dos deuses).



O feiticeiro, Museu da Bruxaria e Feitiçaria, Islândia

Outra atração do museu (sazonal) é um homem que porta indumentária medieval e faz o papel de um feiticeiro antigo (uma ação de Living History). Em sua cabeça, ele porta um barrete e em sua frente, uma tira de couro é fixada e desce entre os seus olhos, com um símbolo do Ægishjálmur gravado nele. Com certeza, essa foi a principal influência para  composição do feiticeiro do filme O homem do Norte, que também porta um barrete praticamente idêntico.

O Ægishjálmur que está na cabeça do feiticeiro tanto do museu quanto do filme é o padrão encontrado após o século XVI, popularizado com o Galdrabók. Ele possui oito radiações cujos terminais tem a forma de tridentes e cada braço também possui três linhas. O centro do símbolo é ocupado por um pequeno círculo.


 
O feiticeiro, Museu da Bruxaria e Feitiçaria, Islândia

O Ægishjálmur também é citado em várias fontes literárias medievais a partir do século XIII (sagas e poemas éddicos), como a Saga dos Volsungos e Fáfnismál. Ele geralmente é descrito como um objeto de poder e proteção que se porta entre os olhos, geralmente em situações belicosas, mas já no Galdrabók (séc. XVI) ele possui outros usos, como para afastar doenças ou questões amorosas. O problema é que a única fonte que temos do Medievo, no qual o símbolo é identificado nominalmente pela primeira vez a uma imagem é o Lækningakver, uma obra dedicada a curas mágicas (séc. XV). Mas ele é diferente da imagem popularizada pelo Galdrabók: possui apenas quatro terminais com tridentes. E seu uso também é diferente: ele seria utilizado para livrar o feiticeiro do ódio e da perseguição.

Percebemos então que o símbolo, tal como é descrito nas sagas e Eddas (com um caráter mais mítico) é diferente dos usos mágicos que se difundem após o Medievo tardio.


  
Esquerda para direita: 1. Símbolo encontrado em uma vaso de Hedeby, séc. X. 2. Ægishjálmur  do Lækningakver, séc. XV, AM 434 A 12MO. 3. Ægishjálmur do Galdrabók, séc. XVI.


Um vaso da Era Viking (Hedeby, séc. X), talvez contenha a mais antiga representação do Ægishjálmur na Escandinávia. Ele foi esculpido ao alto de uma cena com diversos cervos correndo e três suásticas. O seu sentido provavelmente é solar - e como as antigas rodas solares e a própria suástica, estão associados com a elite aristocrática-guerreira - são emblemas de sua autoridade, poder e prestígio. Ele tem praticamente a mesma forma que foi encontrada no manuscrito do Lækningakver, mas como vimos, numa significação totalmente diferente.

A cena do feiticeiro do filme de Eggers é de alto impacto visual e narrativo, concedendo um clima de mistério e exotismo ao espectador. Com certeza vai popularizar ainda mais o padrão renascentista do Ægishjálmur com o período Viking - algo que já corre em tatuagens, na mídia e na cultura pop. Nosso intento neste artigo é demonstrar ao leitor que nem tudo o que existe na cultura midiática provém de uma base histórica. Por certo não sabemos ainda quase nada da história antiga deste símbolo, de seu desenvolvimento visual até as menções literárias após o século XIII. Mas uma coisa é certa: o Ægishjálmur que existiu na Era Viking não tinha nenhuma relação visual direta ou de significação com o Ægishjálmur do Galdrabók. As imagens e símbolos dos grimórios islandeses são produtos de uma hibridização cultural com a tradição clássica e a tradição mágica cristã, reaproveitando experiências anteriores da tradição visual escandinava.

Bibliografia:

LANGER, Johnni. Simbolos mágicos nórdicos: guia visual e histórico. Blog do NEVE, 2020. 

LANGER, Johnni. Símbolos vikings e umbandistas: cópia ou coincidência? Blog do NEVE, 2017.

SIMEK, Rudolf. Aegir´s helmet. In: Dictionary of Northern Mythology. London: D.S. Brewer, 2007, pp. 2.


Videografia:

Qual o significado do Vegvísir e do Ægishjálmur? NEVE responde Ep. 12


The True Ægishjálmur [ Helm of Awe ]