NOVA TESE SOBRE O DEUS THOR
Prof. Dr. Johnni
Langer |(PPGCR-UFPB/NEVE)
Thor é a deidade mais popular da Escandinávia pré-cristã, recebendo
desde o século XIX as mais variadas análises e estudos, além de seu grande
sucesso na arte e na cultura popular do Ocidente até nossos dias. Uma tese de
doutorado vem agora implementar um novo fôlego aos que se dedicam ao estudo dos
mitos envolvendo esse importante deus nórdico: Understanding diversity in Old Norse religion
taking Þórr as a case study,
disponível aqui, defendida na Universidade de Aberdeen (Escócia) em 2015 por
Declan Ciaran Taggart, sob orientação de Stefan Brink e Tarrin Wils.
A
pesquisa possui uma farta documentação de fontes primárias e bibliografia
analítica, concentrando seu foco na literatura medieval produzida sobre Thor,
com o intuito de estudar as mudanças e estabilidades nas representações
mitológicas. A metodologia adotada é a da Ciência Cognitiva da Religião,
especialmente a Psicologia e estudos de memória, com o fim de se conhecer os
fatores da transmissão oral ao conservar e adaptar contextos narrativos. O tema
central da tese é a análise dos fenômenos do trovão e relâmpago associados com
a divindade e neste sentido, a tese se aproxima de muitas pesquisas que vem
resgatando o referencial naturalista na mitologia nórdica (Perkins, 2001).
Claro que não se trata mais do naturalismo defendido pelos românticos
oitocentistas, que procuravam explicar todos os relatos míticos pela simples
observação da natureza. Aqui a relação com o ambiente natural é vista como
dependente da interação social, cultural e histórica e não simplesmente como o
seu produto. A própria figura de Thor torna-se um conceito sobrenatural
flexível e não mais um mito dogmaticamente fechado em torno de conceitos
prontos, tão populares nos manuais mais célebres do romantismo.
O autor dialoga
essencialmente com diversos mitólogos do século XX (a exemplo de Jan de Vries,
Turville-Petre, Hilda Davidson, 1964; Blinkengerg, 1911) e com produções mais
recentes (como Bertell, 2003; Perkins, 2001; Motz, 1997; Lindow, 1994). Um dos
primeiros pontos interessantes da tese é a opção pela continuidade do conceito-termo
religião para o mundo pré-cristão, questionado por alguns acadêmicos (que entre
2006 e 2010 adotaram a expressão “costume antigo”, forn
siðr). A partir da
crítica ao emprego conceitual desta expressão contida nas fontes primárias (Lindberg,
2009, p. 114), a maioria dos trabalhos mais recentes vem empregando
massivamente o termo Religião Nórdica Antiga. Aqui o autor também emprega o
termo “nórdico antigo” para perspectivas culturais, religiosas e literárias do
mundo escandinavo pré-cristão, enquanto que “islandês antigo” é empregado mais
para questões linguísticas. Essa tendência também vem sendo adotada por
escandinavistas ibéricos (Antón, 2014). Declan
Taggart também concede continuidade aos polêmicos termos viking e Era Viking,
mas em situações especificamente didáticas (Taggart, 2015, p. 7-11).
Seu referencial de mitologia
é como uma coleção de textos de determinada época, enquanto que o mito recebe
uma categorização de narrativa sagrada, uma opção bem tradicional. A crítica
das fontes primárias foi influenciada diretamente por Margaret Clunies Ross e
John McKinnell com seus referenciais estruturalistas e no tocante à conservação
dos materiais, enquanto que a crítica interna é obtida de Joseph Harris e John
Lindow. O debate sobre a autenticidade das fontes literárias foi influenciado
por Anthony Faulkes e Preben Sørensen. O uso da runologia e fontes iconográficas
recebeu colaboração de Neil Price e Henrik Willians. Muito atento às questões
das mudanças e da diversidade das crenças pré-cristãs, o autor também utilizou
as diversas contribuições de Terry Gunnell, Jens Peter Schødjt e Anders Andrén. E ainda, dentro de seu
referencial metodológico sobre cognição e memória, empregou as idéias sobre
mitologia de Pascal Boyer e Justin Barrett (Taggart, 2015, p. 12-68).
A partir da página 69 inicia
a pesquisa temática propriamente dita da tese, primeiramente discutindo as
afinidades etimológicas entre armamento e movimento do relâmpago, entre carroça
e o deus Thor, entre clima e carroça, trovão e Thor, entre outros. Os estudos
toponímicos ajudam também a entender a relação entre o deus celeste e suas
afinidades agrárias. Um momento marcante da tese é a análise das conexões de
Thor com o trovão e o relâmpago na literatura medieval, além da relação da
deidade com os terremotos. A investigação do autor sobre o poema norueguês Haustlöng e a poesia islandesa de Steinunn
Refsdóttir é muito boa, apesar
de não ser completa e exaustiva, como veremos mais adiante. As menções ao
vulcanismo são bem atuais, indo de encontro a recentes pesquisas sobre
fenômenos climáticos e registros arqueológicos e sua influência nos mitos e na literatura
nórdica antiga (Taggart, 2015, p. 69-112).
O primeiro momento polêmico
do autor é quando rompe com a tradicional visão de Thor enquanto ferreiro
cósmico ou divino, especialmente na poesia escáldica, apesar de concordar que o
martelo possui conexões simbólicas com a ferraria e ser emblema de vários
ferreiros. Aqui o autor critica especialmente Davidson (1965) e Motz (1997),
mas concorda com Lindow (1994), quando menciona que o martelo nunca foi usado
como força criativa (Taggart, 2015, p. 129-137). Porém, a questão ainda está
muito longe de ser esgotada, como atestam vários estudos mais recentes sobre a
figura do ferreiro mítico (a exemplo de Wood, 2015, não citado pelo autor). A
relação entre martelo, ferraria, mitos e ritos de Thor ainda demandará muitas
problemáticas, especialmente quando confrontada com a cultura material nórdica e
com perspectivas comparativas da área européia antiga.
Discutindo a relação entre
Thor e os objetos mítico-mágicos, Taggart chega a outro ponto polêmico.
Questiona a interpretação clássica de Hilda Davidson de que poderiam ter
existido ritos a Thor envolvendo o simbolismo do relâmpago, fogo e pilares com
pregos, devido ao seu emprego de fontes tardias (especialmente Johannes
Schefferus, ver: Davidson, 2004, p. 63-74). Mesmo assim, termina sua longa nota
afirmando que a questão é intrigante e motivo para pesquisas futuras (Taggart,
2015, p. 147, nota 507).
A comparação com material folclórico
ou posterior à Era Viking volta a ser questionada em outro ponto, referente as
denominadas thunderstones (popularmente
conhecidas no Brasil por “pedras de raio”). Para o autor, não existem
evidências de que no mundo pré-cristão nórdico existiram crenças relacionando
os relâmpagos/trovões com a criação de pedras (de origem antrópica, como
objetos neolíticos; ou naturais, como fósseis, mas ambos creditados à uma
origem celeste), como queriam os pesquisadores Jacob Grimm, Turville-Petre, Jacqueline
Simpson e Lotte Motz. Essa associação teria sido criada na Grécia clássica,
percorrido o mundo medieval e tornada popular a partir do Renascimento, com a sua
primeira citação literária no mundo nórdico, na obra de Olaus Magnus.
Posteriormente, tais narrativas transformam-se em crença popular e se disseminam
no folclore escandinavo contemporâneo, resgatado por Blinkenberg em 1911
(Taggart, 2015, p. 177-188). Essa postura é complicada por vários motivos. Em
primeiro, algumas das fontes largamente citadas pelo autor, como Snorri e o Haustlöng mencionam uma etiologia que se
relacionada com o tema na Escandinávia medieval: logo após Thor provocar
trovões e relâmpagos, ocorre o choque celeste entre a amoladeira de Hrungnir e
o martelo de Thor, originando todas as amoladeiras do mundo (Skáldskaparmál 17, Sturluson, 1998, p.
21-22). O tema da amoladeira (ou pedra de afiar em português; whetstone em inglês; hein em nórdico antigo) foi totalmente
omitido por Taggart. Ele não cita dois trabalhos fundamentais: o primeiro
(Simpson, 1979), que tratou das conexões do tema entre a literatura anglo-saxã
e os ritos nórdicos; Mitchell (1985), que retoma a questão analisando
primeiramente as amoladeiras dentro de um contexto ritual e politico no mundo
saxônico e nórdico, antes relacionadas a Tyr e depois a Thor. Outro trabalho
importante (Mees, 2015), já havia sido disponível parcialmente em paper de evento, bem antes da publicação
da tese de Taggart, enfocando amoladeiras da Era Viking com inscrições rúnicas
(estas mencionando encantamentos de batalha).
Quanto ao material
arqueológico, também é omitido de maiores detalhes. Ele não analisa objetos
vinculados às pedras de raios e amoladeiras no mundo nórdico, como os fósseis
marinhos, a exemplo dos exemplares de broches de bronze de museus da Suécia e
Suécia (confeccionados com fósseis ao centro), com um par de cabras e martelos
ao lado. O encontro de objetos líticos pré-históricos em sepulturas da Era
Viking (possivelmente tomados como pedras de raio ou objetos associados ao
culto de Thor) foram mencionados rapidamente, sem maiores aprofundamentos.
A opinião de que
originalmente o mjollnir era um machado (nas interpretações de Turville-Petre,
Motz e Davidson) é totalmente questionada por Taggart, assim como a idéia de
que as pedras de raio não influenciaram a morfologia deste objeto na literatura
medieval. A questão do envolvimento da suástica com o martelo e os mitos de
Thor foi tratada superficialmente em uma nota (Taggart, 2015, p. 177-188),
seguindo uma tradição de quase setenta anos sem estudos acadêmicos objetivos
sobre esse símbolo, ao contrário do que ocorria no Oitocentos. Como em muitos
casos, a política influencia o caminho acadêmico.
Outro grande problema da pesquisa é que
apesar do título e da proposta, existe muito pouca atenção aos aspectos rituais
envolvendo o culto de Thor e as mitologias celestes, no qual os fenômenos
atmosféricos do relâmpago e do trovão se inserem. Apesar de citar o livro de
Maths Bertell (2003) a respeito de questões historiográficas envolvendo a
deidade (notas 5, 47 e 59), não referencia o mesmo em sua principal questão, as
cosmologias relacionadas às divindades européias do trovão (com destaque para
Thor, evidentemente). Aliás, o tema da cosmologia vem ocupando grande atenção
de arqueólogos e historiadores das religiões no mundo nórdico, como Eldar
Heide, Clive Tooley, Catharina Raudvere, Anders Andrén, Lotte Hedeager, entre
outros, quase todos omitidos da tese. A Astronomia aparece muito rapidamente
quanto trata da identificação da constelação da Ursa Maior, seguindo a equivocada
interpretação de Jacob Grimm (Taggart, 2015, p. 77). Seria muito mais proveitoso
caso tivesse respaldado sua interpretação no recente trabalho de Thomas Dubois
(2014, pp. 184-260), que recorre a uma análise comparativa entre a área nórdica
e finlandesa e é uma das melhores reflexões sobre as crenças envolvendo
constelações na Escandinávia da Era Viking.
Para discutir questões
climáticas, o autor emprega um pesquisador chamado Markús Einarsson e o
panorama climatológico da Islândia moderna (Taggart, 2015, p. 203-204), mas o
mais correto seria utilizar pesquisas paleoclimatológicas da Europa
Setentrional durante a Alta Idade Média. Lembramos que Taggart criticou o uso
de fontes folclóricas para se entender o estudo de mito medievais, mas não
acaba fazendo o mesmo com o tema do clima? Afinal, como a sociedade, o clima de
uma região em uma perspectiva diacrônica possui permanências e mudanças. Resta
ao pesquisador o equilíbrio no momento da análise.
Apesar de
seus pequenos problemas, a tese de Declan Taggart é um ótimo referencial para todos os interessados nos
estudos nórdicos em geral e em especial, aos pós-graduandos que possuem temas
relacionados com a religiosidade medieval. A sua estrutura, aplicação de
análise, perspectiva analíticas e uma grande conclusão, dividida em oito
tópicos e abrindo para inúmeras possibilidades futuras de investigação, é um excelente
convite para leituras e interpretações acadêmicas.
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