GIOMETTI,
Paola. A Senhora da Tundra. Culturama, 2022.
Andréa Caselli
Doutora em Ciências das Religiões pela UFPB, integrante do NEVE
A autora Paola
Giometti é brasileira e vive na Noruega, na cidade de Tromsø. Desde o seu
primeiro livro, a autora já citava a mitologia e os animais do ártico como
referência para o enredo de suas histórias. Quando se mudou para o norte da
Noruega, ela conseguiu experimentar o cotidiano com a natureza e a cultura
nórdica que deram maior embasamento para escrever A Senhora da Tundra. Dessa
forma, o livro foi escrito e ambientado no norte da Noruega. Para ter melhor
conhecimento sobre o tema e dar mais fidelidade às referências culturais em A
Senhora da Tundra; a autora fez um curso sobre sagas islandesas medievais na
Universidade da Islândia.
A protagonista do
livro, Jarnsaxa, é a filha bastarda do rei Drakkar e também é a general dos draugar
no Reino de Vholtor. A jornada dela mantém os leitores atentos a cada uma de
suas provações e aventuras. O enredo apresenta a rivalidade entre os draugar
e os humanos (chamados de mundanos pelos draugar). Atormentada por uma
revelação do passado que envolve o seu rei, ela que é conhecida como a Ursa da
Tundra, se torna uma desertora e inicia uma busca por vilarejos, montanhas e
santuários à procura de um homem que dizem ser um enviado das Nornas e de Odin
e que poderá matar Drakkar. A ambientação e as referências culturais fazem com
que a narrativa seja muito detalhada em relação à natureza e ao modo de vida
nórdicos. A narrativa se passa em uma época em que os nórdicos acreditam que o ragnarok
já aconteceu e, por esse motivo, os deuses desapareceram.
O mais encantador
do livro é o glossário de termos nórdicos que também apresenta os fonemas em
português para que o leitor aprenda a forma correta de pronunciar as palavras
provenientes dos idiomas escandinavos. A autora teve o cuidado de, no
glossário, colocar todas as palavras de origem e pronúncia escandinavas
contidas no livro. Algumas dessas palavras têm o seu sentido real apresentado
no glossário, para que o leitor entenda o motivo te terem sido usadas na
narrativa com um conceito fictício. Por exemplo, no glossário a autora explica
o motivo de ter dado sentido fictício e criado personagens a partir da palavra draugr, que nomeia seres folclóricos habitantes
das praias escandinavas à procura de carne humana e preciosidades e que foram,
no passado, pescadores ou navegadores que morreram afogados no mar.
Os deuses nórdicos
também são incluídos no glossário e inseridos na narrativa, com seus atributos
e atividades sendo mencionados em alguns momentos. Os gigantes também são
mencionados algumas vezes, principalmente o gigante Ýmir, que também pode ser
chamado de Mímir (nome que significa “Memória”, segundo Régis Boyer (1997, p. 101–102) e Rudolf Simek (2007,
p. 216–217).
Ele é um gigante ancestral, citado principalmente da Edda em Prosa de Snorri
Sturlusson. Mímir guarda uma fonte sob a árvore primordial Yggdrasill, que é
utilizada por aqueles que querem obter o conhecimento.
Em cenas de A
Senhora da Tundra, os personagens passam algumas vezes por um local conhecido
por Montanha de Ýmir, no qual acontecem episódios relacionados à cura e à
magia. Por exemplo, neste local, uma fornalha que ficava acesa de forma
permanente brilhava e fazia tanto barulho, que um dos personagens percebeu que
aquele fogo era uma comunicação dos deuses, que indicavam a cura e a força. O
fogo da cabana norueguesa - que está na vela, no fogão e na lareira - remete à
ideia de luz interna.
A iluminação com
grande destaque participativo na composição de lugar é um dos grandes elementos
da formação da ideia romana de genius loci, utilizada por Norberg-Schulz
no seu discurso sobre a fenomenologia na arquitetura, para descrever o espírito
do lugar (1980, p. 52-67). A luz nórdica é filtrada por nuvens e folhas de
árvores das densas florestas, a luz obliqua cria longas sombras que obscurecem
as silhuetas, dissolvendo os objetos num misticismo romântico. Todos os lugares
tem as suas caraterísticas específicas, tendo a luz um papel fulcral na sua
caraterização, permitindo a revelação e a simbiose de quem habita tais lugares.
Os ambientes alteram-se com mudanças climáticas ou sazonais, mas, mesmo assim, existe
a característica própria do lugar que está sempre presente.
A
floresta norueguesa é composta principalmente de altos pinheiros que filtram a
incidência de luz solar no solo, ofertando uma visão profunda e impenetrável. O
sentido de descoberta é estimulado em uma liberdade de movimento infinita
dentro dela. O bosque, a tundra, os lagos e os fiordes são indissociáveis da
vida das pessoas e a liberdade é um percurso de descoberta. A existência
nórdica encontra-se precisamente nesta busca incessante pela revelação e pela
conquista, em vez da consequente aceitação do que é dado. A sobrevivência
humana neste ambiente se manifesta no sentimento de misticismo que há ao redor.
A relação entre natureza e sagrado propicia o estudo de como se transforma um
espaço em um lugar, e como a arquitetura é o instrumento para essa
transformação, na Noruega, um país com privilegiada relação com o meio natural.
O
silêncio dos bosques, a solidão de um vasto território pouco povoado, uma
paisagem dominada por fenômenos naturais como a aurora boreal, os intermináveis
dias de verão ou a sempre presente escuridão das noites de inverno; todas essas
manifestações na paisagem influenciam na criação arquitetônica, que, por sua
vez, também criam o lugar. A experiência espacial do perambular entre troncos
de árvores, rochas, arbustos e lagos. Uma multiplicidade de diferentes e
indefinidos lugares encontrados no mundo nórdico.
A
tundra é um bioma no qual a baixa temperatura e estações de crescimento curtas
impedem o desenvolvimento de árvores. É uma região montanhosa com vegetação
rasteira e poucas árvores ou nenhuma. A temperatura não ultrapassa 10 graus
celsius e, dentre os animais que lá vivem, os principais predadores são os
ursos polares, os lobos e o boi almiscarado. Durante os momentos de vento e
neve, a visão humana tem acesso às formas criadas pelo movimento da ventania
que espalha a neve e o gelo, deixando o ambiente turvo e propício a ilusões em
relação ao que é visto, ouvido e sentido. Assim, a tundra também tem seu
aspecto de contato com o sobrenatural.
A protagonista
circula entre as comunidades de draugar e humanos. No decorrer das suas
andanças pelas paisagens nórdicas, outras comunidades são apresentadas,
contendo também outros entes folclóricos, como, por exemplo:
·
a huldra:
De acordo com a sabedoria popular do folclore escandinavo, a ninfa da floresta é
a Huldra, nome que deriva de uma raíz, que significa algo aproximado a
“segredo”. Ela é descrita como uma bela jovem, quando vista de frente. Mas
quando vista por trás, suas costas são ocas como um toco de madeira. Em outras
narrativas, em vez de ocas, elas têm uma espessa cauda de raposa ou de vaca.
Como todos os outros guardiões sobrenaturais, ela protege seu domínio
(Hultkrantz, 1961). Aparece na forma de uma mulher pequena e bonita, com um
temperamento aparentemente amigável. Aqueles que são atraídos a segui-la pela
floresta nunca mais são vistos.
Huldra, por Theodor Kittelsen, 1892. Fonte: Wikipedia. Domínio Público.
·
o ratatosk:
De acordo com os textos medievais que narram a mitologia nórdica, o ratatosk é
um esquilo que vive naárvore Yggdrasill correndo para cima e para baixo, transportando
mensagens entre a águia Hræsvelgr que fica empoleirada no topo da árvore e a
serpente Níðhöggr, que mora embaixo das raízes da árvore. Ratatosk é citado na
Edda Poética. Ele é um dos poucos esquilos existentes em mitos europeus.
Porém, o ser mitológico essencial para a narrativa de A Senhora da Tundra é a serpente Grafvölludr, que no livro foi adaptada para a personagem Grafvölludr-Gulon. Já no glossário a autora explica que ela é um lindworm (um tipo de serpente mitológica), citada por Odin no poema éddico Grímnismál, como uma das serpentes que estão sob a árvore Yggdrasill. A autora também esclarece que, ao compor o nome da serpente, fez referência à criatura do folclore escandinavo chamada Gulon, que é conhecida por ser glutona e capaz de comer demai; já que a personagem Grafvölludr-Gulon é devoradora de humanos. No decorrer da narrativa, o leitor descobre, aos poucos, mais curiosidades sobre esta misteriosa e poderosa serpente.
O livro também
aborda questões mais sutis, como o sentimento religioso de um guerreiro antes
de ir para o campo de batalha e as pinturas faciais elaboradas com pigmentos
naturais. Muito interessante também é o momento da narrativa no qual há a
descrição do ritual necessário para transformar um humano em draugr, mas o que
acontece nesta parte tão impressionante eu deixo para que o leitor descubra ao
folhear o livro. A história é convida o leitor adentrar no folclore, na
mitologia e na magia nórdicos, percorrendo paisagens cheias de mistério e um
enredo repleto de cenas de batalhas memoráveis.
HULTKRANTZ, Åke. The supernatural owners of nature: Nordic symposion on the religious conceptions of ruling spirits (genii loci, genii speciei) and allied concepts. Stockholm studies in comparative religion, 0562-1070; 1. Stockholm: Almqvist & Wiksell, 1961.
NORBERG-SCHULZ, 1980, Genius Loci: towards a phenomenology of architecture, Rizzoli, New York.
SIMEK, Rudolf. “Mímir/Mímir’s well/Mímir’s head/Mímir’sons”. Dictionary of northern mythology. Londres: D.S. Brewer, 2007, pp. 216–217.