O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

domingo, 8 de agosto de 2021

Os berserkir realmente existiram?

 


BERSERKIR E ÚLFHEĐNAR


Pablo Gomes de Miranda (NEVE)

Doutor em ciências das Religiões pela UFPB

pgdemiranda@gmail.com



Guerreiros furiosos que lutam com pouca ou nenhuma proteção? Soldados dedicados a uma vida de luta e agraciados com a magia do deus Óðinn? O que é história, o que é lenda nos relatos sobre o guerreiro Berserkr? O nome Berserkr não nos diz muito, é possível que o prefixo Ber- se refira a Urso, que unido ao termo -serkr nos entrega o significado de Camisa de Urso. Assim, o Berserkr seria algum tipo de guerreiro antigo dedicado a uma vida de soldado profissional que seria empregado por antigos reis ou chefias poderosas e identificado pelo uso de peles em campo de batalha. Essa explicação encontra lastro na contraparte lupina desses guerreiros, o Úlfhéðinn, cujo o nome significa Capa de Lobo. Contudo, o prefixo Ber- poderia significar ainda ausência de proteção, um nome que poderia significar “sem camisa”, no fim das contas uma possibilidade tão misteriosa quanto a anterior (PRICE, 2019, p. 302).

Eles eram personagens muito famosos da literatura escandinava medieval e conquistaram o espaço principalmente como antagonistas nas sagas fantásticas, impondo dificuldades a serem vencidas pelos heróis, geralmente na forma de duelos. Exceções podem ser feitas aqui a Bödvar Bjarki, o campeão do rei Hrólfr de Lejre, que enquanto ficava desfalecido em um transe, um medonho urso assumia o seu lugar no campo de batalha, e Sigmundr e Sinfjǫtli que se transformam em lobos ao se cobrirem com peles mágicas que só podem ser retiradas após dez dias nessa condição (MIRANDA. 2014, pp. 68 e 69). Todavia, para termos um foco maior nas fontes que se concentram nas possibilidades reais desses guerreiros serem algo mais que lendários, vamos voltar os nossos olhares para um famoso conflito no sul da Noruega. 

Navegando para o sul, nos mares gelados da velha Jaðarr, o rei Haraldr Cabelos-Belos e os seus homens se preparavam para aquela que seria uma das maiores batalhas navais descritas nas sagas islandesas, a batalha de Hafrsfjörðr, próxima a cidade norueguesa de Stavanger (onde hoje se encontra um marco de comemoração a esse conflito). Essa batalha marcou o fim de uma série de conflitos que empoderou o jovem rei Haraldr na posição de chefe do nascente reino da Noruega. Lutando com o apoio de uma série de aliados que preferiram confiar em sua visão política e capacidade marcial, ele assegurou o controle após destronar uma associação de pequenos reis distritais, consolidando no século IX a sua autoridade sobre as regiões do sul da Noruega.

A Haralds saga Hárfagra, documento biográfico de base oral, provavelmente formulado pelo cronista islandês Snorri Sturlusson (1179 – 1241) séculos depois e presente em um compilado de sagas sobre os reis noruegueses, a Heimskringla, não nos descreve o conflito em grandes detalhes. Contudo, para a nossa sorte, os documentos escritos preservaram as palavras do escaldo, o poeta nórdico, Þórbjörn hornklófi que pode ter pessoalmente testemunhado e composto o poema laudatório Haraldskvæði em homenagem ao rei Haraldr Cabelos-Belos, e são aqui que encontramos as menções mais antigas sobre esses guerreiros especiais que chamamos de Berserkir (no singular Berserkr) e outro grupo também muito especial de guerreiros, os Úlfheðnar (no singular Úlfheðinn).

“Eles reúnem os homens/e brancos escudos,/lanças ocidentais/e espadas francas./Urraram os berserkir;/era o momento da batalha;/uivavam os úlfheðnar/e agitavam as armas”. Outros versos do mesmo poema são encontrados em outro compilado, também do século XIII, a Fagrskinna: “Do equipamento berserkir lhe pergunto,/provador do sangue do mar:/qual provisão é entregue,/a eles que avançam para a batalha,/os homens valentes?” e “Úlfheðnar são chamados/em combate eles/carregam escudos ensanguentados;/avermelham as lanças/quando entram na batalha;/lá eles atuam unidos./Apenas de homens corajosos/eu acredito, que sob a confiança/do senhor estavam esses veteranos,/os destruidores de escudo” (Haraldskvæði, 8, 12 e 13).

Os versos do escaldo parecem ter sido bastante populares, já que as sagas do século XIII, em especial os relatos da Egils saga Skallagrímssonar e da Vatnsdœla saga, onde os Berserkir e os Úlfheðnar esses guerreiros estão em posições de prestígio, nas bordas do navio, mais vulneráveis e onde, nas batalhas navais escandinavas, os conflitos eram mais fáceis de acontecer. Na primeira saga, é dito que do navio do rei, todos aqueles que ocupavam os lugares além mastro, onde a batalha havia sido mais severa, todos estavam feridos, menos os Berserkir a quem o ferro não machucava. Na segunda saga, ficamos sabendo que os Úlfheðnar vestem peles e são eles os Berserkir do rei Haraldr. 

Não devemos acreditar integralmente nos relatos da Batalha de Hafrsfjörðr como nos é contado nas sagas, tampouco sabemos se houve uma batalha decisiva pela tomada política da Noruega, mas é um evento bastante popular nas sagas islandesas, pois alguns dos personagens que estão na gênese das famílias de colonos noruegueses que migraram para a Islândia são mencionados como participantes dessa batalha e como homens de prestígio na corte do rei Haraldr Cabelos-Belos. 

Os Berserkir vão ser personagens muito populares nas sagas islandesas, sendo descritos como arruaceiros, invasores de granjas, e uma constante ameaça aos colonos, surgindo em bandos para tomar as terras, esposas e filhas dos colonos. Contudo algumas dessas menções nos dão um panorama da existência desses guerreiros especiais já que mostram uma concordância com os versos do poema Haraldskvæði.

A descrição mais vívida e que os conectam ao deus Óðinn surge na Ynglinga saga, presente também no Heimskringla, aquela compilação que falamos anteriormente e que contém o poema de Þórbjörn hornklófi. Nesta saga em específico, quando nos são faladas as qualidades e poderes de Óðinn, segue a passagem: 

“Porém, quando ele ia para a guerra, aparecia com aspecto terrível aos seus inimigos; isso acontecia porque ele conhecia as habilidades que trocam a aparência e a forma como ele bem desejava. Outra razão era que ele falava de forma inteligente e polida, sendo ouvido em tudo, pois achavam isso verdadeiro; ele dizia tudo em rimas, aquilo que agora é recitado, de poesia é chamado; ele e seus sacerdotes são conhecidos como artesões de canções, pois esse saber começou com eles nas terras do Norte. Óðinn era conhecido por tornar seus inimigos cegos, surdos e medrosos em batalha. As armas inimigas apenas feriam pouco mais que varetas, seus próprios homens iam sem armadura e agiam como cachorros e lobos, mordendo seus escudos; eram fortes como ursos e touros. Eles matavam pessoas e nenhum fogo ou aço os afetava; isso é chamado berserksgangr” (Ynglinga saga, 6). 

Curiosamente ele é um deus descrito como tendo o domínio sobre muitos campos mentais, e seus interesses vão da feitiçaria e magia, ao domínio das palavras e da poesia. O seu nome está relacionado a expressão Óðr que quer dizer louco ou frenético; e quando conectado a palavra maðr, pode ser traduzido como homem louco e ainda furioso, violento, ardente. Contudo, pode ainda significar mente, sensação; canção, poesia; sendo óðarsmiðr,um sinônimo para poeta. Por outro lado, óðr hundr é como se refere a um cachorro louco. Ainda mais, a expressão ainda pode significar “mente, espírito, alma ou sentido” em referência ao mito da criação dos homens onde os deuses conferem önd, óðr e læ, espírito, mente e calor.

É possível que haja uma ligação espiritual entre o deus Óðinn e esses guerreiros muito especiais, contudo nossas informações sobre essas conexões são extremamente limitadas às conjecturas que acabamos de apontar. Também são limitados as possíveis representações e informações desses guerreiros antes da Era Viking (793-1066): é possível que entre os guerreiros góticos representados na coluna de Trajano (SPEIDEL, 2004, pp. 34-36), aqueles que, entre eles, utilizam peles de ursos e lobos sob as suas cabeças, não sejam nenhum deles Vexilarii ou porta estandartes de nenhuma forma. Material arqueológico das áreas germânicas nos séculos posteriores também apresentam farto material do que parecem ser homens utilizando peles de animais em contextos ritualísticos, como as lâminas de prata de Gutenstein e a de Obrigheim, além da placa do elmo de Torslunda (HEDEAGER, 2011, p. 95; PRICE, 2019, p. 308; SPEIDEL, 2004, pp. 10-40). Mas essas são, novamente, apenas conjecturas já que as fontes primárias sobre os antigos germanos não mencionam guerreiros usando peles de ursos e lobos. 

 

Imagens: representações da bainha de Gutenstein e Obrigheim, placa do elmo de Torsulnda.


Algumas dessas pistas não podem ser interpretadas literalmente: os escandinavos escolhiam certos animais como referências poéticas para a batalha, como os corvos, as águias e, claro, os lobos. Por exemplo, na Batalha de Maldon, poema em Inglês Antigo composto antes do século XI, a referência aos invasores escandinavos como lobos da matança, wælwulfas (linha 96), deve ser entendido como uma metáfora, dentro do contexto poético, desses vikings que invadiam a Inglaterra, e, aqui, lutavam contra o earl Byrhtnoth e seus homens. Contudo, se continuarmos ainda buscando conexões com o mundo antigo, devemos nos lembrar dos Velites, soldados romanos especializados em armar emboscadas. Excetuando o escudo e seus capacetes, os Velites utilizavam dardos e nenhuma proteção, pois eram rapazes recrutados entre as camadas pobres. Sabemos que alguns deles cobriam seus capacetes com proteções  

Se eles foram reais e se representavam fortes conexões entre os deuses, os homens e as suas atividades marciais, é possível que esses guerreiros também tenham incorporado o comportamento desses animais na forma como lutavam. Diz na saga do rei Haraldr Cabelos-Belos, que quando ele decidiu tripular o seu próprio navio conforme lhe agradava, acabou colocando a sua guarda pessoal de Berserkir em um lugar chamado Rausn, ao qual já comentamos ser de grande prestígio. E que apenas a eles eram confiados os espaços na sua companhia pessoal. 

Talvez esses guerreiros ursos fossem usados para quebrar as fileiras de escudos quando os inimigos abordassem o navio, agindo como a tropa de choque pessoal do rei. Se for esse o caso, devemos lembrar que no poema de Þórbjörn hornklófi esses guerreiros lobos agitavam suas armas, que sabemos que eram as lanças ensanguentadas (elas próprias descritas como um instrumento de sacrifício ao deus Óðinn), talvez lutando coordenadamente como uma alcateia.

Muitas são as menções desses guerreiros em fontes e lendas tardias, como já falamos, mas poucas são as pistas sobre os verdadeiros costumes desses homens, e ainda que seja tentador especular mais sobre esses homens, é mais seguro nos mantermos fieis aos versos do escaldo que nos brinda com esses homens que urravam e gritavam no combate enquanto os conveses das embarcações eram manchados de sangue em Hafrsfjörðr.


Referências:

HEDEAGER, Lotte. Iron Age Myth and Materiality – an archaeology of Scandinavia ad 400-1200. Abingdon: Routledge, 2011.

MIRANDA, Pablo Gomes de. Berserkir. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de Mitologia Nórdica – símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2014.

PRICE, Neil. The Viking Way: magic and mind in late Iron Age Scandinavia. Oxford: Oxbow books, 2019.

SPEIDEL, Michael P. Ancient Germanic Warriors: warrior styles from Trajan’s Column to Icelandic sagas. Nova York: Routledge, 2004.