Doutorando em Ciências das
Religiões pela UFPB
Membro do NEVE
Devido à popularidade da mitologia
nórdica e da história da Era Viking atualmente no cinema, na televisão, na
literatura e nos videogames, muita gente que até então desconhecia os mitos, ou
conhecia pouco a respeito, passou a se interessar mais pelo assunto. No intuito
de prestar um favor aos leitores de primeira viagem que pouco conhecem a
respeito do universo fantástico dos mitos nórdicos, esse texto se prestou no
intuito de apresentar de forma simples e direta o que seria o mito do Ragnarök,
que voltou a ficar em evidência atualmente.
O
que é o Ragnarök?
O Ragnarök trata-se de um mito de origem
nórdica, referente aos povos da Escandinávia medieval. Neste caso, as
populações que hoje compreendem os atuais territórios da Dinamarca, Noruega,
Suécia e Islândia. Na Idade Média, entre os séculos V e XI, nos chamados
Período Vendel (V-VIII) e Era Viking (VIII-XI), os mitos nórdicos se
encontravam em vivência, entendendo aqui a condição de eles serem contados,
aprendidos, recontados, vivenciados, debatidos, acreditados, etc.
Neste caso, o Ragnarök consistia num
mito escatológico, sendo a escatologia a doutrina que se refere a
acontecimentos futuros, num período não especificado de tempo, no qual
ocorrerão acontecimentos catastróficos que mudarão profundamente o mundo da
forma como conhecemos. Pelo senso comum as narrativas escatológicas costumam
ser interpretadas como o “fim do mundo” ou “fim dos tempos”, porém, não se
trata de uma ideia de fim propriamente, mas de finalidade para algo. Geralmente
dizem respeito a um período de mudanças. No caso, a escatologia é encontrada
não apenas na mitologia, mas nas religiões também.
Porém, existem também narrativas
escatológicas que não abordam a salvação eterna, mas dizem respeito à
restauração da ordem universal, o inaugurar de uma nova era, longe dos
problemas e máculas anteriores. Tal perspectiva é vista entre os hindus,
budistas, maias, hopis, nórdicos, etc.
Ainda hoje é comum ler que Ragnarök,
palavra do nórdico antigo que significaria “Crepúsculo dos Deuses”, porém, tal
interpretação entre os mitólogos e demais estudiosos do assunto se encontra em
baixa. A ideia de que o Ragnarök estaria relacionado a uma espécie de
“crepúsculo” surgiu com o famoso compositor, maestro, ensaísta e diretor de
teatro alemão Richard Wagner (1813-1883), principalmente conhecido por algumas
de suas óperas pautadas na mitologia germano-escandinava.
Figura 1: Ilustração de Max Brückner para o ato final da ópera Götterdämmerung, o qual se refere ao incêndio que consome Valhala. 1894.
Hoje em dia o conceito de Ragnarök já possui distintas interpretações: alguns adotam a expressão “julgamento dos deuses”, “julgamento dos poderes”, “destino dos poderes”, “destino dos deuses", “consumação dos poderes antigos”, etc. Para os mitólogos do século XX e XXI, Ragnarök seria referência a deuses ou poderes (divinos), mas não um crepúsculo, mas uma ideia de julgamento e destino. A hipótese de destino é mais próxima do mito, pois como veremos adiante, trata-se de uma profecia escatológica que está destinada a ser cumprida e é inevitável. Entretanto, a hipótese de julgamento é problemática, pois o Ragnarök não se assemelha a concepção de um “juízo final”, pois não há julgamento.
As
fontes escritas:
As fontes escritas para se ler a
narrativa do Ragnarök encontram-se nas Eddas,
obras escritas em islandês medieval, as duas principais obras que versam sobre
a mitologia nórdica, sendo composta de dois livros que possuem relações entre
si, já que os manuscritos mais antigos conhecidos datam do mesmo século, além
de que a narrativa da segunda Edda
foi pautada em alguns poemas da primeira Edda.
Figura
2: Fotografia do Codex Regius que contém o manuscrito mais antigo conhecido da
Edda Poética.
Neste caso para se estudar o Ragnarök,
nos interessa o Ciclo Mitológico, em especial os seguintes poemas: o Völuspá (A profecia da Advinha) e o Vaftrudnismál (Os ditos de Vafthrúdnir),
os quais consistem nos poemas com o maior número de relatos ao Ragnarök.
Figura 3: Cena do poema Vaftrudnismál, representando Odin e Vafthrúdnir durante sua conversa gnóstica. Ilustração de Lorenz Frølich, 1895.
Figura
4: Capa de uma versão da Edda em Prosa do século XVIII, conhecida como
manuscrito IB 299 4to, depositado no Icelandic National Library.
A terceira parte é o Skáldskaparmál (Linguagem da Poesia),
que consiste num diálogo entre o gigante Égil e Bragi, o deus da poesia. Snorri
como era um poeta, ele procurou escrever uma espécie de manual de poesia para
instruir os novos poetas (skald) a
como compor poesia de base mitológica, daí ele apresenta no Skáldskaparmál e na quarta parte, o Háttatal (“Lista de versos”) instruções
sobre métrica, rimas, composições, etc.
Para situar alguns leitores acerca do
nome de deuses, monstros e lugares que estão relacionados ao mito do Ragnarök,
aqui segue uma breve nomenclatura, com dados básicos.
·
Balder: filho de Odin e Frigga. Deus
conhecido por ser belo, inteligente, justo, honrado e sábio. É admirado pelos
deuses. Sua importância é somente encontrada nos mitos.
·
Bifrost: ponte em forma de arco-íris que
conecta Asgard (terra dos deuses) a Midgard (terra dos homens).
·
Fenrir: o lobo gigante filho de Loki e
Angrboda.
·
Freyr: filho de Njörd e irmão gêmeo de
Freyja. Freyr é o deus da caça e da fertilidade.
·
Garm: o cão de guarda de Hel.
·
Heimdall: deus que guarda Asgard e
sentinela da Bifrost.
·
Hel: Filha de Loki e Angrboda. É a deusa
dos mortos que vão para Hel.
·
Hoder: filho de Odin e Frigga. É o deus
cego.
·
Hrymir: gigante que comandará os
exércitos de Jotunheim (terra dos gigantes).
·
Jormungand: a Serpente de Midgard,
colossal criatura que habita os mares, circundando o mundo. É um dos três
filhos monstruosos de Loki e Angrboda.
·
Loki: o trickster da mitologia nórdica. É um gigante que vive entre os
deuses, que ora os ajuda ou ora os atrapalha e causa problemas.
·
Mimir: gigante conhecido por sua
sabedoria. Foi morto por Odin, porém, o deus lhe cortou sua cabeça e lhe
concedeu vida, para que assim pudesse conversar com Mimir e tomar conselhos.
·
Modi e Magni: filhos de Thor. Magni é
filho de Thor e a giganta Járnsaxa, porém, se desconhece a mãe de Modi.
·
Nagflar: navio feito com as unhas dos
mortos.
·
Odin: rei dos deuses, senhor da guerra,
um dos deuses dos mortos. Odin também está relacionado com a sabedoria e o
conhecimento rúnico.
·
Sól e Mani: deuses que representam o Sol
e a Lua.
·
Skoll e Hati: lobos gigantes filhos de
Fenrir.
·
Surt: gigante de fogo, senhor de
Mulspelheim.
·
Thor: filho de Odin e Jörd. É o deus do
trovão, raios, tempestades e chuvas. Campeão dos deuses e protetor dos homens.
·
Tyr: deus da guerra (apesar de que Odin
e Thor tivessem mais significância religiosa para a guerra do que ele).
Conhecido por sua bravura e honra. Perdeu a mão direita para Fenrir.
·
Valhala: literalmente o “salão dos
mortos”, é um dos salões de Asgard, morada de Odin, e para onde vão os bravos
guerreiros que faleceram em combate.
·
Vali: filho de Odin e Rindi. Deus de
pouca expressividade na mitologia.
·
Vidar: filho de Odin e Frigga, conhecido
por sua força e impetuosidade. Possui pouca relevância nos mitos e nenhuma
conhecida na religião.
·
Vigrid: planície na qual ocorrerá a
grande batalha do Ragnarök.
·
Yggdrasil: árvore que sustenta o mundo.
Personifica a árvore da vida, a árvore cósmica.
A narrativa do Ragnarök pode ser
dividida em três partes: na primeira, temos as profecias e o cumprimento
destas, as quais desencadeariam a grande guerra; na segunda, temos a marcha dos
exércitos e o relato sobre a Batalha de Vigrid, onde deuses, gigantes, monstros
e os homens lutariam; na terceira, a descrição dos acontecimentos após o
término da guerra. Com base nessa divisão vejamos um resumo da narrativa,
apresentando aqui uma mescla dos relatos contidos no Völuspá e no Gylfaginning,
assinalando que ambos apesar de possuírem semelhanças, ainda assim, eles
possuem diferenças também, inclusive.
a. Morte
de Balder tramada por Loki, e executada ingenuamente por Hoder, o deus cego. (Völuspá 33;
Gylfaginning 49).
Figura 5: A morte de Balder. Christoffer Wilhelm
Eckersberg, 1816.
b. Skoll
e Hati finalmente devorarão o sol e a lua, deixando o mundo em profunda
escuridão. (Völuspá 40; Vaftrúdnismál 45-46; Grimnismál 39; Gylfaginning 51).
c. O
cantar de três galos: o galo de madeira (Fjalar) do gigante Eggther; o galo
dourado (Gollinkambi) em Valhala e o galo vermelho-ferrugem em Hel. (Völuspá 42, 43).
d. Garm,
o cão de guarda de Hel, quebrará sua corrente e participará da batalha final. (Völuspá 44, 49, 58).
e. O
Ragnarök ocorrerá na Era dos Lobos (Vargöld),
uma alusão aos lobos Skoll e Hati que perseguem os deuses Sól (Sol) e Mani
(Lua). Todavia, no poema Völuspá se
menciona que a Era dos Lobos será precedida de outras três épocas: a Era dos
Machados (Skeggjöld), a Era das
Espadas (Skalmöld) e a Era dos Ventos
(Vindöld). Essas três eras seriam
marcadas por guerras, desordem, depravação, imoralidade, etc., seriam tempos
difíceis e severos. (Völuspá 45, Gylfaginning 51).
f. Ocorrência
de um longo inverno que duraria três anos seguidos, chamado de Fimbulvertr
(“longo inverno”). (Vaftrúdnismál 44;
Gylfaginning 51).
g. Prisão
de Loki. No Lokasenna a prisão não
tem relação direta com o Ragnarök, mas na Edda
em prosa Snorri relatou que os deuses ao descobrirem que Loki era
responsável pela morte de Balder, ele foi aprisionado por causa disso, vindo a
se libertar apenas no Ragnarök. (Gylfaginning
50).
Figura
6: Loki and Sigyn. Mårten Eskil Winge, 1863.
2.
Marcha
dos exércitos e a batalha: Apesar de se tratar de uma guerra,
os relatos mitológicos não a descrevem propriamente, apenas mencionam certas
particularidades, embora Snorri procurou fornecer mais informações sobre esse
conflito final.
a. Os
elfos estarão atônitos, os anões chorarão diante de suas portas de pedra, os
gigantes começaram a marchar, e os deuses se reunirão em conselho de guerra. (Völuspá 48; Gylfaginning 51).
b. O
gigante Hrymir comandará o navio Nagflar. (Völuspá
50; Gylfaginning 51).
c. Loki
liderará o exército dos mortos de Hel, vindo do Norte. (Völuspá 51, Gylfaginning
51).
d. Fuga
de Fenrir, o qual rasgará o céu com suas presas. (Gylfaginning 51).
e. A
Serpente de Midgard sairá do mar, causando maremotos, inundações e cuspindo
veneno sobre o mundo. (Gylfaginning 51).
f. Surt
liderará os filhos de Muspell, vindos do Sul, indo para o campo de Vigrid. (Völuspá 52; Gylfaginning 51).
g. Heimdall
soprará sua corneta Gjallarhorn, anunciando a vinda dos gigantes. (Völuspá 46; Gylfaginning 51).
h. Odin
visitará o Poço de Mimir para tomar conselhos antes de ir à guerra. (Völuspá 47; Gylfaginning 51).
i.
Odin cavalgará a frente do exército de
Valhala. (Gylfaginning 51).
j.
Odin lutará contra Fenrir, mas será
morto. (Völuspá 53; Gylfaginning 51).
Figura 7: Battle of the Doomed Gods. Friedrich Wilhelm Heine, 1882. Na
imagem podemos ver Odin contra Fenrir, Thor contra Jormungand, Freyr contra
Surt, entre outros guerreiros.
k. Vidar
lutará contra Fenrir, matando o lobo e vingando o pai. (Völuspá 54; Gylfaginning 51).
l.
Thor lutará contra Jormungand. Apesar de
conseguir matar a colossal serpente, acabará morrendo devido ao veneno desta. (Völuspá 55-56; Gylfaginning 51).
m. Freyr
lutará contra Surt, mas acabará sendo morto. (Gylfaginning 51).
n. Garm
lutará contra Tyr, ambos morrerão. (Gylfaginning
51).
o. Loki
e Heimdall lutarão e ambos se matarão. (Gylfaginning
51).
p. Surt
destruirá a ponte Bifrost e com sua espada flamejante, incendiará o céu. (Gylfaginning 51).
q. O
mundo continuará em trevas, as estrelas cairão do céu, toda a vida morrerá, e
as chamas arderão. (Völuspá 57; Gylfaginning 51).
3. A renovação do mundo:
a. O
mundo se regenera das catástrofes ocorridas. As águas baixarão, as plantas
voltarão a crescer, as águias voltarão a pescar entre os penhascos, etc. (Völuspá 59-62; Gylfaginning 53).
b. Os
deuses sobreviventes se reunirão em Idavoll para deliberar acerca do novo
mundo. (Völuspá 60).
c. Gimlé,
Brimir e Sindri serão novas moradas celestes. (Völuspá 64; Gylfaginning
52).
d. Balder
e Hoder retornarão de Hel. Balder se tornará o novo rei dos deuses. (Völuspá 62; Gylfaginning 53).
e. Vidar
e Vali sobreviverão. Modi e Magni também sobreviverão e herdarão o Mjölnir. (Gylfaginning 53).
f. Escondidos
em Hoddmimis, em algum lugar da base da Yggdrasil, estavam um casal de humanos
chamados Lif e Lifthrasir, os quais sobreviverão à destruição do mundo causada
por Surt. Consistindo nos únicos humanos a terem sobrevivido. (Gylfaginning 53). (Figura 8).
g. A
filha da deusa Sól, tornara-se o novo sol a iluminar o mundo. (Gylfaginning 53).
Figura 8: Lif e Lifthrasir, o casal de
humanos sobrevivente ao Ragnarök, segundo a Edda em Prosa. Ilustração de Lorenz Frølich, 1895.
Referências:
Fontes:
POETIC
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