A BRUXA NÓRDICA DE GOD OF WAR
Thais Gomes Trindade
Mestranda em Estudos da Tradução pela USP
A apropriação e
ressignificação de mitos não é algo novo. Atualizações sempre ocorreram e
continuam a ocorrer. Com a diversa gama artística e criativa que temos contato
na atualidade, assim como a acessibilidade de textos míticos e mitológicos,
essa prática de ressignificação se acentua. Tem-se como exemplo a série de
jogos do estúdio Santa Monica, intitulada God of War, lançada em 2005 para o
Playstation 2, que em seus primeiros jogos se apropriou da mitologia grega para
desenvolver a história de seu protagonista, Kratos. Agora em seu oitavo jogo,
quarto entre os maiores da série, o God of War lançado em abril desse ano foi
responsável por trazer seu protagonista à esfera mítica nórdica acompanhado de
seu filho Atreus e das cinzas de sua esposa, as quais deve levar à mais alta
montanha dos nove mundos.
Logo nos primeiros
minutos de jogo, o espartano e seu filho conhecem a “bruxa” da floresta, assim
chamada por Atreus ao vê-la tentar utilizar magia – “You’re a witch!” (“Você é
uma bruxa!”). Tal encontro se origina da flechada de Atreus, que é orientado
por seu pai a atirar em um animal com o intuito de praticar tal habilidade, nisso
acerta um javali. Este é “amigo” da “bruxa” da floresta, que logo se apresenta
e tenta socorre-lo, “he’s my friend” (“ele é meu amigo”).
Comum à Mitologia Nórdica,
a figura do javali aparece na Edda
poética, em Hyndluliod (A canção
de Hyndla), em que a deusa Freya disfarça seu protegido, Ottar, como seu
javali, “Battle-hog” (Song of Hyndla,
7.4). Dentro da Mitologia Nórdica, essa deusa costuma ser representada
acompanhada de gatos ou de seu javali em suas viagens. Nesse evento, o disfarça
para poder trazê-lo consigo a Jötunheim, em que procura a gigante Hyndla, de
quem busca obter informações da genealogia de Ottar. Porém, para que este não
seja notado por Hyndla, o traz como seu “javali”. Nota-se que há uma relação de
proximidade entre a deusa e o animal, bem como entre a bruxa e o javali em God
of War. Nesse evento ainda, Freya busca favorecer Ottar contra Angantyr,
protegido por Odin, tendo-se uma rivalidade entre ambos nesse contexto.
Enquanto tenta salvar seu
amigo javali por magia, a personagem feminina de God of War profere a Kratos
uma promessa “I promise you, he’s safe” (“Eu te prometo, ele está seguro”). Nota-se
em seu discurso uma tentativa de estabelecimento de trégua e confiança,
afabilidade. Da Mitologia Nórdica tem-se em Freya o maior símbolo de
afabilidade em oração, sendo considerada a mais acessível entre os deuses a se
orar, segundo a Edda em prosa (Gylfaginning) – embora sua especialidade seja em questões amorosas.
No evento em que a
personagem feminina dessa série diz a Kratos “I know you’re a god” (“Eu sei que
você é um deus”), ela explicita ao protagonista saber não apenas da origem
dele, mas de Atreus também, expressando seu conhecimento prévio, sabedoria do
assunto. Essa vidente possibilidade de conhecimento é associada entre os deuses
nórdicos à deusa Frigg na Lokasenna,
poema em que Freya aconselha a Loki tomar cuidado com suas profanas explanações
uma vez que Frigg saberia do destino de todos, embora não o predizesse (Loki’s Quarrel, 29). Se do início a
caracterização da personagem de God of War é aproximada a Freya, aqui isso é
feito em relação aos poderes de Frigg pela atualização da figura feminina como
detentora do conhecimento, “sábia”.
Porém, vale notar que a
magia praticada pela bruxa, muito a aproxima de Freya, que embora não apareça
praticando magia nas referências de mitologia nórdica, é vista como mágica uma
vez que ensinou aos Æsir a magia seidr.
Essa referência é derivada da Ynglinga
Saga de Snorri Sturluson e da Völuspa,
da Edda poética, conforme indicações
de John Lindow (2001:265), que pouco nos explica sobre a magia em si, apenas
referindo a ela como muito relacionada a práticas femininas, embora também seja
praticada por homens, como Odin. Enrique Bernárdez faz referência à mesma
magia, em Los mitos germánicos, em
que explica como o seidr estaria
relacionado a uma ideia de sexo e morte (2002:175, 177).
Entretanto, tem-se ainda
mais referências a tal magia, que são trazidas por Johnni Langer no verbete
“seidr” do Dicionário de Mitologia
Nórdica: símbolos, mitos e ritos. Langer explica que o seidr, além de associado a mulheres, associa-se à clarividência, à
cura de doenças e, por alguns, ao canto, também tendo usos maléficos em
utilização para insultos e ofensas. Assim como, Lindow (2001:265), Langer se
refere a uma característica xamânica da magia (2015:451). Nas situações de God
of War supracitadas, temos o uso da magia seidr,
pela bruxa, à cura do javali e uma latente clarividência quanto à origem e ao
espírito tanto de Kratos quanto de Atreus, o que aproxima essa característica
de vidência e sabedoria da bruxa tanto a Frigg como a Freya.
Os diálogos e interações
de Kratos e Atreus com a bruxa de God of War vão abrindo espaço não apenas a
conhecê-la, mas também ao entendimento da adoção e atualização da Mitologia Nórdica
dentro desse texto. Sua constituição é intrinsicamente hesitante, ao que cada
pausa dá ao espectador impressão de que ela sabe mais do que proclama
superficialmente. Nisso lembra a Frigg. Exemplos de seus momentos hesitantes
são: “Whatever you’re hiding, you cannot protect him forever” (hesitation) (“Seja
lá o que estiver escondendo, você não pode protegê-lo para sempre” (hesitação))
e “This mark will hide you from (hesitation) those who might make your journey
(hesitation)… difficult” (Essa marca irá escondê-lo (hesitação) daqueles que
podem tornar sua jornada (hesitação)... difícil” – em que é dado ao espectador
como ela traz em seu discurso pesar e conhecimento por experiência pessoal,
concomitante a uma retração à explicitação da verdade, pausa à evidência de
quem dificultaria o caminho.
Do evento em que comenta
sobre a natureza pouco aberta dos deuses de Asgard, a personagem feminina
emenda sua frase com “Trust me, I know” (“Acredite, eu sei”), mais uma vez se
revelando ao mesmo tempo em que se esconde, moldando-se como sábia, detentora
do conhecimento seja por saber do que não lhe é dito, como a origem de Kratos, com
uma espécie de vidência, como nesse caso, seja por experiência pessoal.
Na Mitologia Nórdica há
dois grupos de divindade, os Vanir e os Æsir, os quais se deram trégua pela
troca de membros. Porém, não há relatos de abertura a personagens de origem
externa, na verdade, percebe-se uma contínua manutenção de fronteiras e
afastamento de outras figuras, a exemplo da construção das muralhas de Asgard e
no afastamento contínuo de gigantes, sendo Loki uma exceção. Essa pouca
possibilidade de intercâmbio entre terras na Mitologia Nórdica, uma vez que
cada mundo é constituído de personagens que ali se mantêm, também é reiterada
no jogo.
Ao reportar a Kratos que
os “deuses desse reino não gostam de pessoas de fora” – “The gods of these
realms don’t take kindly to outsiders” –, caracteriza os Æsir como divindades
“puristas”, porém, além disso, abre espaço à noção de sua origem, que não seria
de lá, mas de outro reino, muito lembrando a Freya, deusa Vanir.
Essas referências dos
parágrafos anteriores, que preveem uma relação entre a bruxa e as duas
principais deusas nórdicas, não ficam apenas em espera de confirmação, pois
elas encontram certeza após a reanimação da cabeça de Mimir, dada pela fala de
Mimir, então repetida por Atreus: “Freya! The goddess, Freya?” (“Freya! A deusa
Freya?”). Ela então explica que havia sido líder dos Vanir um dia – “Leader of
the Vanir once, yes… but no longer” (“Líder dos Vanir um dia, sim... mas não
mais”). Então relata a Atreus que os Vanir apresentavam ameaça aos Æsir até o
casamento entre Freya e Odin lhes trazer paz - “The Vanir were the greatest
threat to the Æsir until our marriage brokered Peace” (“Os Vanir eram a maior
ameaça aos Æsir até nosso casamento estabelecer paz”).
Nota-se, porém, que na
Mitologia Nórdica, não é um laço entre Freya e Odin que traz paz aos Vanir e
Æsir, mas a troca de outras deidades. Além disso, Freya é casada com Odr,
viajante, o qual tenta encontrar utilizando nomes diversos entre desconhecidos,
e Frigg com Odin. Essa deusa,
caracterizada por diversos nomes por sua constante viagem em busca de Odr é
aproveitada no jogo, em que é conhecida por dois nomes: Freya, de sua origem
Vanir, e Frigg, dado a ela por Odin à relação aos Æsir como meio de diminui-la.
Segundo Mimir e suas
pequenas historietas contadas entre loads de telas, Odin chamaria a Freya de
Frigg por significar “beloved”, “amada”, porém, ao passar do tempo, se
aproveitaria desse apelido para apagar aos olhos de todos os feitos da grande “Freya”,
atribuindo toda ação sua posterior ao casamento a Frigg, o que diminuía sua
influência entre a população.
Essa associação de Frigg
e Freya a uma única divindade não é única ao jogo, sendo defendida por Enrique
Bernárdez no que diz respeito à Mitologia Nórdica, que coloca na relação Frigg,
Freya e Iörd uma tríade de deusa nórdica. Frigg seria uma representação de
deusa mãe e esposa, enquanto Freya seria deusa associada à fertilidade e à
sexualidade e Iörd à função de mãe-terra. Embora não se encontre nas mitologias
germânicas referências ao nome Freya, muito se encontra ao nome Frigg. Ainda
assim, Bernárdez propõe o argumento de que Frigg e Freya possam ter constituído
uma divindade única e una no início da mitologia e ainda que não se encontrem
registros ao nome além da esfera literária escandinava, sabe-se que muitas
“funções” divinas são comuns às diversas mitologias, como a tríade que propõe
(2002:159-160).
Bernárdez também
interpreta os Vanir, por consequência, Freya, como deusa campesina, referência
de fertilidade, vida e preocupação com uso da magia à conservação dessas
funções sociais em oposição aos Æsir, que seriam representativos de
aristocratas dados à guerra, à poesia e ao governo, ao que em God of War temos Freya
banida a um ambiente campestre pelo governante poder opositor de Odin (2002:187).
Em outro evento, em que
Atreus sofre em luta interna contra sua origem dêitica, Freya indica a Kratos
ter um filho, “Did I tell you I have a son too?” (“Eu te disse que também tenho
um filho?”. Da Mitologia Nórdica Freya é referida como mãe de Hnoss e Gersemi,
embora a referência a Gersemi seja feita apenas em Skaldskaparmal na Edda em
prosa, enquanto Hnoss é comentada em Gylfaginning.
Nesse ponto nota-se um maior distanciamento da divindade Freya segundo as
fontes nórdicas e uma atualização de Freya/Frigg que serve aos intentos da
narrativa do jogo: ao comentar que ao nascimento de seu filho, as runas
previram sua morte e que então soube que tudo faria para protege-lo, temos a
aproximação das personagens do jogo a Baldr e Frigg – “At his birth, the runes
foretold a needless death” (...) “I knew right then that I would do anything to
protect him” (“No seu nascimento as runas previram sua desnecessária morte”
(...) “Eu soube logo que faria qualquer coisa para protege-lo”).
Tanto na Edda em prosa quanto na Edda poética Frigg é caracterizada como
mãe de Baldr. Este, já adulto, sonha com sua própria morte, ao que temos o
poema Baldrs Draumar. Na Edda de Snorri seu sonho é dividido com
os Æsir que, em conselho, decidem proteger a Baldr. Com esse fim, Frigg recebe
de todas as coisas promessa de não causar mal a Baldr, com exceção de um visco,
que lhe pareceu inofensivo. À parte das discussões sobre essa imagem, vale
notar que no jogo a premonição não é dada através do sonho de um Baldr adulto,
mas através das runas. Se na Mitologia Nórdica isso leva Frigg a pedir o
juramento de todas as coisas em proteção a seu filho, em God of War é a magia
de Freya/Frigg que o condena a “não sentir nada”, desse modo lhe protegendo.
Essa condenação à inércia
de sensações é tamanha que ao ter sua mão perfurada pelo visco, sente-se extasiado.
Deixando-se à parte sua raiva, pouco comum à caracterização mitológica de
Baldr, Freya/Frigg faz de tudo para lhe proteger, intervindo na luta entre
Kratos e Baldr continuamente. Para chegar até ele, também, utiliza um poder que
é comum a Freya na Mitologia Nórdica: transformação em pássaro. Em Thrymskvida, Thor pede emprestado de Freya
sua “camisa de asas” (“feather-shirt”), atributo que lhe permite se transformar
em pássaro e voar (Thrym’s poem, 3.3).
Tal atribuição da deusa é resgatada em God of War, em que se transforma em ave
de rapina no momento em que necessita da mesma habilidade.
Assim a identidade da “bruxa”
da floresta vai se desvendando em God of War e com sua constituição como
personagem os espectadores ganham uma visita à mitologia e à sua atualização
nas personas de Frigg e Freya, que ganham novo significado e ao mesmo tempo
permitem o despertar do interesse pelas origens míticas. A reunião dessas duas
figuras femininas permite ao público conhecer seus poderes, como a prática de
magia seidr e o conhecimento do
destino dos homens; criar uma rede complexa de relações entre outras
personagens, como Baldr e esta; resgatar seus símbolos e elementos, como o
javali e a “camisa de penas”; em certos pontos traduzindo em imagem propostas
teóricas defendidas por Bernárdez, como a possibilidade de Frigg e Freya terem
sido derivadas de uma única deusa. Embora o jogo não informe detalhadamente
sobre esses fatos da mitologia, uma vez que não é seu dever, no intento
cuidadoso de entreter acabar por abrir brechas à curiosidade pelas fontes
míticas e suas relações com essa elaborada obra de atualização e
ressignificação.
Referências
BARLOG, Cory
(Dir.); WANG, Elizabeth Dahm et al. (Prod.). God of War. SIE Santa Monica Studio, 2018, PlayStation 4.
BERNÁRDEZ, Enrique. Los mitos germánicos. Madri: Alianza Editorial, 2002.
LANGER, Johnni. Seidr.
In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de Mitologia
Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015.
p. 451-453.
LARRINGTON, Carolyne
(Trad.). The Poetic Edda. Oxford:
2014.
LINDOW, John. Seid. In: LINDOW,
John. Norse mythology: a guide to the
gods, heroes, rituals and beliefs. Oxford: Oxford University Press, 2001.
p. 265.
STURLUSON, Snorri. Edda.
Tradução de FAULKES, Anthony. London: Everymen, 1995.
Leia também: A Mitologia Nórdica em God of War.