O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

sábado, 11 de agosto de 2018

A bruxa nórdica de God of War




A BRUXA NÓRDICA DE GOD OF WAR


Thais Gomes Trindade

Mestranda em Estudos da Tradução pela USP



A apropriação e ressignificação de mitos não é algo novo. Atualizações sempre ocorreram e continuam a ocorrer. Com a diversa gama artística e criativa que temos contato na atualidade, assim como a acessibilidade de textos míticos e mitológicos, essa prática de ressignificação se acentua. Tem-se como exemplo a série de jogos do estúdio Santa Monica, intitulada God of War, lançada em 2005 para o Playstation 2, que em seus primeiros jogos se apropriou da mitologia grega para desenvolver a história de seu protagonista, Kratos. Agora em seu oitavo jogo, quarto entre os maiores da série, o God of War lançado em abril desse ano foi responsável por trazer seu protagonista à esfera mítica nórdica acompanhado de seu filho Atreus e das cinzas de sua esposa, as quais deve levar à mais alta montanha dos nove mundos.

Logo nos primeiros minutos de jogo, o espartano e seu filho conhecem a “bruxa” da floresta, assim chamada por Atreus ao vê-la tentar utilizar magia – “You’re a witch!” (“Você é uma bruxa!”). Tal encontro se origina da flechada de Atreus, que é orientado por seu pai a atirar em um animal com o intuito de praticar tal habilidade, nisso acerta um javali. Este é “amigo” da “bruxa” da floresta, que logo se apresenta e tenta socorre-lo, “he’s my friend” (“ele é meu amigo”).

Comum à Mitologia Nórdica, a figura do javali aparece na Edda poética, em Hyndluliod (A canção de Hyndla), em que a deusa Freya disfarça seu protegido, Ottar, como seu javali, “Battle-hog” (Song of Hyndla, 7.4). Dentro da Mitologia Nórdica, essa deusa costuma ser representada acompanhada de gatos ou de seu javali em suas viagens. Nesse evento, o disfarça para poder trazê-lo consigo a Jötunheim, em que procura a gigante Hyndla, de quem busca obter informações da genealogia de Ottar. Porém, para que este não seja notado por Hyndla, o traz como seu “javali”. Nota-se que há uma relação de proximidade entre a deusa e o animal, bem como entre a bruxa e o javali em God of War. Nesse evento ainda, Freya busca favorecer Ottar contra Angantyr, protegido por Odin, tendo-se uma rivalidade entre ambos nesse contexto.

Enquanto tenta salvar seu amigo javali por magia, a personagem feminina de God of War profere a Kratos uma promessa “I promise you, he’s safe” (“Eu te prometo, ele está seguro”). Nota-se em seu discurso uma tentativa de estabelecimento de trégua e confiança, afabilidade. Da Mitologia Nórdica tem-se em Freya o maior símbolo de afabilidade em oração, sendo considerada a mais acessível entre os deuses a se orar, segundo a Edda em prosa (Gylfaginning) – embora sua especialidade seja em questões amorosas.

No evento em que a personagem feminina dessa série diz a Kratos “I know you’re a god” (“Eu sei que você é um deus”), ela explicita ao protagonista saber não apenas da origem dele, mas de Atreus também, expressando seu conhecimento prévio, sabedoria do assunto. Essa vidente possibilidade de conhecimento é associada entre os deuses nórdicos à deusa Frigg na Lokasenna, poema em que Freya aconselha a Loki tomar cuidado com suas profanas explanações uma vez que Frigg saberia do destino de todos, embora não o predizesse (Loki’s Quarrel, 29). Se do início a caracterização da personagem de God of War é aproximada a Freya, aqui isso é feito em relação aos poderes de Frigg pela atualização da figura feminina como detentora do conhecimento, “sábia”.

Porém, vale notar que a magia praticada pela bruxa, muito a aproxima de Freya, que embora não apareça praticando magia nas referências de mitologia nórdica, é vista como mágica uma vez que ensinou aos Æsir a magia seidr. Essa referência é derivada da Ynglinga Saga de Snorri Sturluson e da Völuspa, da Edda poética, conforme indicações de John Lindow (2001:265), que pouco nos explica sobre a magia em si, apenas referindo a ela como muito relacionada a práticas femininas, embora também seja praticada por homens, como Odin. Enrique Bernárdez faz referência à mesma magia, em Los mitos germánicos, em que explica como o seidr estaria relacionado a uma ideia de sexo e morte (2002:175, 177).

Entretanto, tem-se ainda mais referências a tal magia, que são trazidas por Johnni Langer no verbete “seidr” do Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. Langer explica que o seidr, além de associado a mulheres, associa-se à clarividência, à cura de doenças e, por alguns, ao canto, também tendo usos maléficos em utilização para insultos e ofensas. Assim como, Lindow (2001:265), Langer se refere a uma característica xamânica da magia (2015:451). Nas situações de God of War supracitadas, temos o uso da magia seidr, pela bruxa, à cura do javali e uma latente clarividência quanto à origem e ao espírito tanto de Kratos quanto de Atreus, o que aproxima essa característica de vidência e sabedoria da bruxa tanto a Frigg como a Freya.

Os diálogos e interações de Kratos e Atreus com a bruxa de God of War vão abrindo espaço não apenas a conhecê-la, mas também ao entendimento da adoção e atualização da Mitologia Nórdica dentro desse texto. Sua constituição é intrinsicamente hesitante, ao que cada pausa dá ao espectador impressão de que ela sabe mais do que proclama superficialmente. Nisso lembra a Frigg. Exemplos de seus momentos hesitantes são: “Whatever you’re hiding, you cannot protect him forever” (hesitation) (“Seja lá o que estiver escondendo, você não pode protegê-lo para sempre” (hesitação)) e “This mark will hide you from (hesitation) those who might make your journey (hesitation)… difficult” (Essa marca irá escondê-lo (hesitação) daqueles que podem tornar sua jornada (hesitação)... difícil” – em que é dado ao espectador como ela traz em seu discurso pesar e conhecimento por experiência pessoal, concomitante a uma retração à explicitação da verdade, pausa à evidência de quem dificultaria o caminho.

Do evento em que comenta sobre a natureza pouco aberta dos deuses de Asgard, a personagem feminina emenda sua frase com “Trust me, I know” (“Acredite, eu sei”), mais uma vez se revelando ao mesmo tempo em que se esconde, moldando-se como sábia, detentora do conhecimento seja por saber do que não lhe é dito, como a origem de Kratos, com uma espécie de vidência, como nesse caso, seja por experiência pessoal.

Na Mitologia Nórdica há dois grupos de divindade, os Vanir e os Æsir, os quais se deram trégua pela troca de membros. Porém, não há relatos de abertura a personagens de origem externa, na verdade, percebe-se uma contínua manutenção de fronteiras e afastamento de outras figuras, a exemplo da construção das muralhas de Asgard e no afastamento contínuo de gigantes, sendo Loki uma exceção. Essa pouca possibilidade de intercâmbio entre terras na Mitologia Nórdica, uma vez que cada mundo é constituído de personagens que ali se mantêm, também é reiterada no jogo.

Ao reportar a Kratos que os “deuses desse reino não gostam de pessoas de fora” – “The gods of these realms don’t take kindly to outsiders” –, caracteriza os Æsir como divindades “puristas”, porém, além disso, abre espaço à noção de sua origem, que não seria de lá, mas de outro reino, muito lembrando a Freya, deusa Vanir.

Essas referências dos parágrafos anteriores, que preveem uma relação entre a bruxa e as duas principais deusas nórdicas, não ficam apenas em espera de confirmação, pois elas encontram certeza após a reanimação da cabeça de Mimir, dada pela fala de Mimir, então repetida por Atreus: “Freya! The goddess, Freya?” (“Freya! A deusa Freya?”). Ela então explica que havia sido líder dos Vanir um dia – “Leader of the Vanir once, yes… but no longer” (“Líder dos Vanir um dia, sim... mas não mais”). Então relata a Atreus que os Vanir apresentavam ameaça aos Æsir até o casamento entre Freya e Odin lhes trazer paz - “The Vanir were the greatest threat to the Æsir until our marriage brokered Peace” (“Os Vanir eram a maior ameaça aos Æsir até nosso casamento estabelecer paz”).

Nota-se, porém, que na Mitologia Nórdica, não é um laço entre Freya e Odin que traz paz aos Vanir e Æsir, mas a troca de outras deidades. Além disso, Freya é casada com Odr, viajante, o qual tenta encontrar utilizando nomes diversos entre desconhecidos, e Frigg com Odin. Essa deusa, caracterizada por diversos nomes por sua constante viagem em busca de Odr é aproveitada no jogo, em que é conhecida por dois nomes: Freya, de sua origem Vanir, e Frigg, dado a ela por Odin à relação aos Æsir como meio de diminui-la.

Segundo Mimir e suas pequenas historietas contadas entre loads de telas, Odin chamaria a Freya de Frigg por significar “beloved”, “amada”, porém, ao passar do tempo, se aproveitaria desse apelido para apagar aos olhos de todos os feitos da grande “Freya”, atribuindo toda ação sua posterior ao casamento a Frigg, o que diminuía sua influência entre a população.

Essa associação de Frigg e Freya a uma única divindade não é única ao jogo, sendo defendida por Enrique Bernárdez no que diz respeito à Mitologia Nórdica, que coloca na relação Frigg, Freya e Iörd uma tríade de deusa nórdica. Frigg seria uma representação de deusa mãe e esposa, enquanto Freya seria deusa associada à fertilidade e à sexualidade e Iörd à função de mãe-terra. Embora não se encontre nas mitologias germânicas referências ao nome Freya, muito se encontra ao nome Frigg. Ainda assim, Bernárdez propõe o argumento de que Frigg e Freya possam ter constituído uma divindade única e una no início da mitologia e ainda que não se encontrem registros ao nome além da esfera literária escandinava, sabe-se que muitas “funções” divinas são comuns às diversas mitologias, como a tríade que propõe (2002:159-160).

Bernárdez também interpreta os Vanir, por consequência, Freya, como deusa campesina, referência de fertilidade, vida e preocupação com uso da magia à conservação dessas funções sociais em oposição aos Æsir, que seriam representativos de aristocratas dados à guerra, à poesia e ao governo, ao que em God of War temos Freya banida a um ambiente campestre pelo governante poder opositor de Odin (2002:187).

Em outro evento, em que Atreus sofre em luta interna contra sua origem dêitica, Freya indica a Kratos ter um filho, “Did I tell you I have a son too?” (“Eu te disse que também tenho um filho?”. Da Mitologia Nórdica Freya é referida como mãe de Hnoss e Gersemi, embora a referência a Gersemi seja feita apenas em Skaldskaparmal na Edda em prosa, enquanto Hnoss é comentada em Gylfaginning. Nesse ponto nota-se um maior distanciamento da divindade Freya segundo as fontes nórdicas e uma atualização de Freya/Frigg que serve aos intentos da narrativa do jogo: ao comentar que ao nascimento de seu filho, as runas previram sua morte e que então soube que tudo faria para protege-lo, temos a aproximação das personagens do jogo a Baldr e Frigg – “At his birth, the runes foretold a needless death” (...) “I knew right then that I would do anything to protect him” (“No seu nascimento as runas previram sua desnecessária morte” (...) “Eu soube logo que faria qualquer coisa para protege-lo”).

Tanto na Edda em prosa quanto na Edda poética Frigg é caracterizada como mãe de Baldr. Este, já adulto, sonha com sua própria morte, ao que temos o poema Baldrs Draumar. Na Edda de Snorri seu sonho é dividido com os Æsir que, em conselho, decidem proteger a Baldr. Com esse fim, Frigg recebe de todas as coisas promessa de não causar mal a Baldr, com exceção de um visco, que lhe pareceu inofensivo. À parte das discussões sobre essa imagem, vale notar que no jogo a premonição não é dada através do sonho de um Baldr adulto, mas através das runas. Se na Mitologia Nórdica isso leva Frigg a pedir o juramento de todas as coisas em proteção a seu filho, em God of War é a magia de Freya/Frigg que o condena a “não sentir nada”, desse modo lhe protegendo.

Essa condenação à inércia de sensações é tamanha que ao ter sua mão perfurada pelo visco, sente-se extasiado. Deixando-se à parte sua raiva, pouco comum à caracterização mitológica de Baldr, Freya/Frigg faz de tudo para lhe proteger, intervindo na luta entre Kratos e Baldr continuamente. Para chegar até ele, também, utiliza um poder que é comum a Freya na Mitologia Nórdica: transformação em pássaro. Em Thrymskvida, Thor pede emprestado de Freya sua “camisa de asas” (“feather-shirt”), atributo que lhe permite se transformar em pássaro e voar (Thrym’s poem, 3.3). Tal atribuição da deusa é resgatada em God of War, em que se transforma em ave de rapina no momento em que necessita da mesma habilidade.

Assim a identidade da “bruxa” da floresta vai se desvendando em God of War e com sua constituição como personagem os espectadores ganham uma visita à mitologia e à sua atualização nas personas de Frigg e Freya, que ganham novo significado e ao mesmo tempo permitem o despertar do interesse pelas origens míticas. A reunião dessas duas figuras femininas permite ao público conhecer seus poderes, como a prática de magia seidr e o conhecimento do destino dos homens; criar uma rede complexa de relações entre outras personagens, como Baldr e esta; resgatar seus símbolos e elementos, como o javali e a “camisa de penas”; em certos pontos traduzindo em imagem propostas teóricas defendidas por Bernárdez, como a possibilidade de Frigg e Freya terem sido derivadas de uma única deusa. Embora o jogo não informe detalhadamente sobre esses fatos da mitologia, uma vez que não é seu dever, no intento cuidadoso de entreter acabar por abrir brechas à curiosidade pelas fontes míticas e suas relações com essa elaborada obra de atualização e ressignificação.



Referências

BARLOG, Cory (Dir.); WANG, Elizabeth Dahm et al. (Prod.). God of War. SIE Santa Monica Studio, 2018, PlayStation 4.

BERNÁRDEZ, Enrique. Los mitos germánicos. Madri: Alianza Editorial, 2002.

LANGER, Johnni. Seidr. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015. p. 451-453.

LARRINGTON, Carolyne (Trad.). The Poetic Edda. Oxford: 2014.

LINDOW, John. Seid. In: LINDOW, John. Norse mythology: a guide to the gods, heroes, rituals and beliefs. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 265.

STURLUSON, Snorri. Edda. Tradução de FAULKES, Anthony. London: Everymen, 1995.