Labirinto de Nauvo, Finlândia.
OS LABIRINTOS SÁMI
Victor Hugo Sampaio
Mestrando em Ciências das Religiões pela UFPB
Membro do NEVE
Os labirintos Sámi são um tipo
muito específico de estrutura cuja ocorrência se dá em praticamente toda a área
denominada Sápmi. Esse nome é usado para designar toda a região onde os
povos Sámi habitaram, abrangendo geograficamente parte dos atuais territórios
da Noruega, Rússia, Suécia e Finlândia. Tal região também já foi conhecida por Lapland,
algo como “Terra dos Lapões”, outro nome utilizado para se referir ao povo de
etnia Sámi.
Figura
1: A região chamada Sápmi, onde habitavam vários povos da etnia Sámi. Fonte:
https://www.offthemap.travel/wp-content/uploads/2016/12/Sapmi-Lapland-Annotated.png
Antes de prosseguir abordando a
questão dos labirintos, é interessante dizer algumas poucas palavras sobre os
povos Sámi. Eles também são chamados de Lapões, apesar do termo ter cunho
pejorativo e estar relacionado a um etnocentrismo, consolidado sobretudo por volta
do ano de 1673 por Johannes Schefferus, que via os nórdicos como superiores e
civilizados. Ao contrário de seus vizinhos nórdicos, os Sámi não eram um povo
de origem indo-européia: basicamente, eles seriam povos indígenas que habitavam
a área Ártica do norte da Europa, sendo nativos da região. Sobre a questão de
sua origem, os Sámi são considerados originários da família fino-úgrica, como
os finlandeses e estonianos, embora haja diferenças genéticas entre eles.
As
principais atividades desses povos eram a pesca, a caça de animais - tanto para alimentação, quanto para
extração e comercialização de suas peles -, e principalmente o pastoreio de
renas, animal de importância máxima para os Sámi. Eram também adeptos da
prática do nomadismo.
Figura
2: Família Sámi, mãe com seus dois filhos. Revista National Geographic, v.31,
pág. 556.
Partindo para a questão específica dos labirintos, é
interessante começar ressaltando alguns aspectos de sua morfologia. Esses
labirintos não eram construídos com paredes ou outras estruturas
intransponíveis erguidas: eram feitas escavações superficiais no chão e, em
seguida, eram depositadas pedras grandes, geralmente arredondadas, em cima das
linhas que haviam sido escavadas. Sua forma era relativamente padronizada,
seguindo geralmente uma tendência circular ou então com pequenas variações,
como por exemplo em formato oval ou em forma de ferradura de cavalo. Se vistos
de cima, os labirintos Sámi apresentavam seus contornos em um desenho que
lembra muito o cérebro humano representado de maneira bidimensional. Devido a
essas particularidades em seu desenho, formato e composição por meio de pedras,
por vezes pode ser difícil identificar a ocorrência de um labirinto Sámi
genuíno. Inclusive, já que eles são feitos por pedras posicionadas no chão,
deve-se tomar cuidado para não tomar certas paisagens naturais por labirintos:
por vezes, o arranjo natural e ocasional de pedras em certos locais específicos
pode dar a falsa impressão de que se trata de uma modificação intencional por
parte do homem.
Apesar
desse tipo de monumento Sámi ser chamado de labirinto, vale a pena ressaltar
que ele difere do típico conceito ocidental atribuído a essa palavra. Ao
contrário dos exemplos trazidos pela mitologia greco-romana, nos labirintos
Sámi não existem falsos caminhos e nem becos sem saída: no lugar disso, possuem
uma única entrada, muito bem definida, seguida por vários círculos concêntricos
que levam invariavelmente ao centro da construção.
Figura
3: Desenho representando a estrutura de um labirinto Sámi. Fonte: OLSEN, Bjornar,
Stone labyrinth in Arctic Norway.
A ocorrência dessas estruturas é
observada por todo território Escandinavo, mais precisamente em todas as
regiões da área denominada Sápmi, conforme explicado anteriormente.
Contudo, as regiões onde mais são encontrados esses labirintos são as dos atuais
territórios da Finlândia e Suécia, o que não é de modo algum uma surpresa,
visto a forte presença de povos Sámi nessas duas áreas. Contudo, ocorrências
menos numerosas são observadas também na Carélia e na Noruega, especialmente em
Finnmark, nome dado a uma área Ártica e costal da Noruega que faz
fronteira com a Finlândia e a Rússia, e que antes da colonização norueguesa era
habitada originalmente pelos Sámi.
Grande
parte desses labirintos são encontrados em regiões litorâneas e costais, ou
então próximos a grandes lagos – às vezes até mesmo em pequenas ilhas -, o que
levanta a hipótese de que haja uma relação entre eles e a água (Olsen, 1996).
Alguns deles são encontrados em áreas florestais e de caça. Há certos critérios
que foram empregados para que se descobrisse se esses labirintos eram de fato
autoria dos Sámi. Um deles surgiu por meio da observação de que grande parte
dessas estruturas são encontradas em áreas conhecidas por serem regiões de
pastoreio de renas, uma atividade extremamente típica e caracterizante desses
povos. Outro fator extremamente relevante é que frequentemente esses labirintos
encontram-se juntos ou muito próximos a sítios de inumação reconhecidamente
Sámi, evidenciando não somente a questão da autoria, mas também uma relação entre
essas estruturas e ritos funerários (Broadbent & Edvinger, 2007; Broadbent,
2010).
Figura
4: Foto de um labirinto Sámi encontrado na região de Finnmark. Fonte: http://arkitekturguide.uit.no/details.php?image_id=1465&template=big
É curioso notar que a existência desses labirintos
não havia sido relatada até a chegada da Idade Moderna, por mais que estudos e
exames arqueológicos apontem que as datas de sua construção propriamente dita
encontram-se sempre entre os anos de 1200 a 1700 d.C. Um dos principais
divulgadores dos labirintos Sámi foi o norueguês Ernst Manker. Em meio a suas
muitas expedições realizadas por volta dos anos de 1943-1956, patrocinado pelo
Museu Nórdico de Estocolmo, Manker teve contato e tornou-se familiarizado com
uma série de sítios sagrados, principalmente na região montanhosa da Suécia.
Ele colhia informações sobre esses monumentos diretamente com moradores locais,
e então, muitas das vezes – mas nem sempre -, ia até o suposto local verificar
as informações que havia recebido (Broadbent & Edvinger, 2007). Ernst
Manker posteriormente reuniu todas essas informações e as publicou, no ano de
1957, em um livro intitulado Lapparnas heliga ställen, ou seja, Sítios
sagrados lapões.
Nos
relatos trazidos pelo norueguês, algumas dessas estruturas eram diferentes
entre si na questão de morfologia, mas traziam algo em comum: além da
predominância do formato circular, todas estavam conectadas com relatos de
sacrifícios sendo realizados dentro de seu espaço. Algumas teorias
interpretativas que vinculam até hoje a respeito da utilização desses espaços
têm sua origem nesses relatos. Muitos pesquisadores creem que os Sámi
obviamente atribuíam poderes mágicos e sagrados a esses labirintos, o que os
levava então a praticar, nesse espaço, sacrifícios ritualizados. Estes eram uma
espécie de oferenda destinada às divindades, que visava trazer, para os Sámi,
êxito nas atividades de caça e pesca, o controle da maré e clima favorável; ou
então em situações de morte, doença, gravidez e nascimento (Broadbent &
Edvinger, 2007).
Uma teoria interessante a esse
respeito da utilização sagrada desses labirintos é a de Bjornar Olsen (1996).
Segundo ele, esses labirintos serviriam como metáfora física para um rito de
passagem muito específico: o da transição da vida para a morte. Similar a
outros ritos de passagem
o momento do morrer também é uma
situação em que as fronteiras entre um estado social e outro são rompidas e
transformadas. Portanto, quando um membro da comunidade morria, o xamã
conduziria esse ritual, entrando sozinho no labirinto – expressando a separação, tanto simbólica
quanto social, entre o indivíduo recém-falecido e sua vida -. Ao adentrar o
labirinto, o xamã demarcaria a separação entre o morto e sua vida/função
social. A cerimônia, então, terminaria com o xamã saindo do labirinto e
manifestando essa incorporação, agora plena, do indivíduo falecido nesse outro
estado, que seria o da morte.
Pode-se
indagar por quê necessariamente a estrutura de um labirinto para a prática
desse ritual. Não poderia qualquer estrutura cumprir essa função? A
religiosidade Sámi, forte e essencialmente xamânica (Abercromby, 1898; Rydving,
1993), concebia a passagem para a morte como uma jornada estreita, tortuosa,
difícil e longa, que deveria ser percorrida pelo falecido. Por isso a
representação dessa jornada em formato de um labirinto concêntrico, caminhado
por um xamã: enquanto alguém que conhece esse caminho, já o percorreu diversas
vezes e voltou, ele seria uma figura auxiliar e porta-voz do falecido,
ajudando-o a cumprir essa transição. Desse modo, somente o xamã pode incorporar
a alma do indivíduo morto e transportá-la para sua nova moradia (Olsen, 1996).
Conforme
pôde-se observar, os labirintos Sámi ainda despertam controvérsias e muitas
incertezas ainda giram ao seu redor. Afinal, são monumentos tão curiosos quanto
enigmáticos, e seus significados ainda estão por ser desvendados. Inclusive, o
número de estudos e menções a esses labirintos no meio acadêmico, até mesmo no
exterior, são ainda tímidos.
Referências