A FREYDIS DA SÉRIE VIKINGS: VALHALLA E A IDEALIZAÇÃO DA MULHER NÓRDICA
Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)
johnnilanger@yahoo.com.br
Os Vikings voltaram - mais uma produção midiática representando os nórdicos está disponível ao grande público. Nosso objetivo neste ensaio é refletir sobre as idealizações em torno da sociedade e de personagens específicos da literatura nórdica pela série Vikings: Valhalla. O texto será dividido em três partes: a primeira, analisando aspectos genéricos; a segunda, refletindo especificamente a personagem Freydis. E por último, um vislumbre sobre as origens culturais da guerreira nórdica idealizada.
Aspectos gerais da série Vikings: Valhalla
O primeiro e óbvio elemento a ser considerado é o uso do sentido étnico da palavra Viking. Em toda a primeira temporada da série, se utiliza Viking enquanto sinônimo de identidade cultural para todas as populações nórdicas, da Groelândia à Noruega, sejam pagãs ou cristãs. Essa generalização idealizada provém do Romantismo, popularizada a partir do poema Vikingen de 1811 (Langer; Menini, 2020, pp. 709-738). Este referencial se afasta do sentido original, preservado pelas inscrições rúnicas: Viking seria uma atividade ocupacional definida pelas incursões náuticas (Langer, 2018, pp. 705-718). Mais especificamente, alguns diálogos aprofundam um referencial estereotipado: "um Viking verdadeiro busca a glória" (episódio 1), "como Viking meu objetivo é a vingança" (episódio 3). A primeira frase provém diretamente da imagem criada por Erik Gustaf Geijer no aludido poema Vikingen, enquanto a segunda é uma síntese de algumas situações de conflito presentes nas sagas islandesas, transferida para a imagem genérica do Viking.
A cultura material apresentada na série possui vários equívocos: indumentárias, equipamentos, arquitetura, urbanismo, etc., do qual não vamos detalhar aqui. Algumas são produtos de simples desconhecimento, outras foram ocasionadas pelo reaproveitamento de equipamentos de outras filmagens pelo estúdio. E ainda, possivelmente vários elementos da cultura material foram exagerados ou fantasiados para conceder efeito estético ou de impacto visual.
No tocante à religiosidade, o confronto entre cristianismo e paganismo foi exagerado para criar tensões e situações dramáticas. O processo de conversão da Escandinávia nem sempre foi violento e nem sempre constituiu um fenômeno social "de cima para baixo" (conversão em massa a partir de uma liderança) (Oliveira, 2018, pp. 153-157). Em Ribe, na Dinamarca, ocorreu convívio pacífico entre as duas religiões décadas antes da conversão oficial e da construção da primeira igreja (860). O exagero fica ainda maior na criação de personagens ditos berserkir cristãos que exterminam pagãos na rota ao santuário de Uppsala na Suécia. Todas as referências presentes nas sagas islandesas representam os berserkir enquanto campeões (e inclusive fanáticos) do paganismo, devotos do culto de Odin. Essa possivelmente é a primeira referência midiática de berserkir cristãos, criada com o intuito de promover uma maior tensão ao espectador (o visual deles é sinistro e lembra cavaleiros maléficos de outras mídias).
Em relação ao paganismo, houve algumas repetições e algumas novidades. Os fantasiosos sacerdotes de Uppsala estão menos macabros do que na série original (tendendo ao um visual "xamânico"), mas a exacerbada violência associada aos rituais pagãos ainda é conservada - o sacrifício voluntário ocorrido dentro de um salão da fictícia cidade de Kattegat (episódio 8) é totalmente fantasioso, recordando as antigas torturas ocorridas até o século XVIII. Uma velha forma de representação fílmica sobre o paganismo (presente na maioria das produções épicas dos anos 1940 a 1960) ainda é presente na série: o exotismo - na fictícia cidade de Kattegat, no salão principal, repleto de convidados, um velho maquiado realiza movimentos furtivos com uma serpente (recorda muito a situação de exotismo com as danças sinuosas de salão da produção The Saga of the Viking Women and Their Voyage to the Waters of the Great Sea Serpent, 1958). Algumas alterações (como a tríade de deuses de Uppsala descrita por Adão de Bremen, modificada para Odin, Thor e Freyja) são reflexos da importância que o roteiro vai conceder ao feminino. A deusa Freyja é citada em várias situações ao longo da temporada, algumas de forma equivocada, como no episódio 3, no qual se afirma que ela conduziria os mortos em batalha ao Valhalla, mas na verdade, ela conduziria a metade dos mortos ao seu próprio salão divino. Outra confusão é com a deusa Syn, guardiã do salão de Freyja e que na série se transforma na receptora dos mortos no Valhalla (episódio 6) e guardiã do mar (episódio 6).
Mas em especial, a criação da personagem Estrid Haakon reforça esse feminismo. Estrid é uma africana que foi levada para a Escandinávia, casou e acabou se tornando Jarl, obviamente uma situação fantasiosa do ponto de vista histórico, mas que condiz com a atual situação de inclusão social e étnica das mídias modernas (basta lembrar de Heimdal, dito o mais branco dos deuses nas fontes medievais, e que foi interpretado por um ator negro no filme Thor, 2011). Também Estrid lidera um bando de donzelas do escudo, da qual Freydis será treinada (episódio 6).
Fig. 1: Freydis na nova série Vikings: Valhalla, durante prova para se tornar uma donzela do escudo (episódio 6)
A representação de Freydis na série Vikings: Valhalla
Freydís Eiríksdóttir é uma personagem que vai surgir em duas sagas islandesas: a saga dos groenlandeses e a saga de Erik, o vermelho. Com elas duas, temos uma diferença objetiva com relação à série: nas sagas, Freydis somente transita entre a Groelândia e a América do Norte, enquanto na série ela vai para a Noruega. Outra diferença também diz respeito aos próprios habitantes da Groelândia e Vinlândia: em nenhum momento as sagas os caracterizam como Vikings. Nestas duas regiões, não existiram piratarias, conquistas ou guerras (no sentido extensivo de batalhas territoriais, como as apresentadas na série com Canuto e sua empreitada na Inglaterra). As expedições islandesas com destino à Groelândia se trataram de empreendimentos colonizadores. O objetivo dos viajantes era o de se tornarem fazendeiros e criadores de animais. Podemos definir os personagens das duas sagas mencionadas como colonos armados. Na série, Fredyis é apresentada originalmente como tendo sido uma caçadora (episódio 6), o que condiz muito mais com a sua posterior transformação em uma guerreira. A caça fazia parte do cotidiano na Groelândia, por certo, mas a vida na fazenda era mais importante. Freydis não era uma caçadora, e sim uma fazendeira. Ela acabou se envolvendo em situações de conflito e chega a matar outras colonas. Mas isso não faz dela uma guerreira. Em outra cena famosa, ela pega uma espada e espanta os indígenas invasores, mas sem derramar uma gota de sangue. Fica a imagem de uma mulher destemida.
Outro detalhe muito importante para entendermos a nova ressignificação da personagem é o fato de tanto Leif quanto Freydis já serem cristãos de nascimento, por parte de mãe. O último pagão na Groelândia foi Erik, o vermelho, mas a sua mulher logo tratou de construir uma igreja na região, cujos remanescentes são visíveis até hoje. Essa transformação de Freydis em uma campeã do paganismo, por certo, faz parte de uma nova visão da religião nórdica antiga pela mídia, tornando-a positiva para os espectadores. Tradicionalmente, dos anos 1920 até a década de 1980, o paganismo nórdico sempre foi representado de forma amplamente negativa pelo cinema (Langer, 2015b, pp. 155-180). Apesar de na série existirem guerreiros tanto pagãos quanto cristãos, mulheres armadas só ocorrem no contexto pagão, especialmente na fictícia cidade de Kattegat. A referência constante da deusa Freyja, as cenas com donzelas do escudo e a trajetória de Freydis representam o triunfo de uma mulher representada unicamente no espaço bélico (tipicamente masculino em grandes produções fílmicas de 1940 a 1960). Apesar de existirem mulheres poderosas na política (em especial rainhas), Freydis vai dar continuidade ao sucesso da mulher guerreira (e rainha) protagonizado por Lagertha na série original. Mas esse sucesso público não é recente, na realidade tem raízes muito distantes, ainda no século XVIII.
Fig. 4: Freydis, ilustração de Stebba Ósk Ómarsdóttir para o livro Vinland, 2017. O navio está representado de forma tradicional (como na maioria dos filmes, livros didáticos e de História), onde a embarcação nórdica idealizada foi o langskip, com escudos laterais e figura de proa e popa. Mas na realidade, as embarcações utilizadas na Groelândia e América do Norte eram do tipo comercial (knǫrr), muito diferentes das embarcações longas de pirataria e guerra. Mas uma vez, o fazendeiro e colono nórdico foram retratados como Vikings (heróis e conquistadores).
As origens populares da guerreira nórdica idealizada
Foi após o Renascimento Nórdico (1750), fenômeno cultural onde as sagas islandesas e as Eddas foram traduzidas para as línguas modernas, que a representação visual da mulher marcial teve início. As artes visuais modernas praticamente não se interessaram pela mulher nórdica comum (especialmente a camponesa): a que trabalhava nas fazendas nos teares, cuidava da economia doméstica e dos animais. Ou então lidava com o comércio e a vida urbana nas grandes cidades-portos da Era Viking. As personagens preferidas para os artistas eram as donzelas de escudo e as valquírias, constantes das sagas lendárias e das Eddas. Neste sentido, a arte dinamarquesa vai privilegiar a personagem Hervör em várias pinturas e ilustrações do final do século XVIII até meados do século XIX. Em 1813 estreou em Copenhague a apresentação do balé Lagertha, com cenários e estrutura épica. Com a consolidação do protótipo do nórdico antigo com o poema Vikingen em 1811 - guerreiro, aventureiro, herói, conquistador (Langer; Menini, 2020, pp. 709-738), consequentemente os artistas passam a valorizar qualquer referencial feminino que tenha relação com o bélico.
Mas dentre as narrativas literárias disponíveis, nada fez mais sucesso do que as valquírias, seja na pintura, na música ou na escultura oitocentista. Na Alemanha e em toda a Escandinávia as valquírias tornam-se os modelos da própria nação, onde cada país vai criar modelos visuais inspirados nas belicosas ajudantes do deus Odin. Elas também acabam servindo como um referencial para países onde a marcialidade eram necessária para o discurso político e social do período. Mesmo que o campo de guerra no Oitocentos fosse estritamente masculino, elas inspiravam o sucesso nas batalhas (Langer, 2021, p. 2-13).
Fig. 5: Mor Danmark (Mãe Dinamarca), Elisabeth Jerichau Baumann, 1851; Fig. 6: Moder Svea (Mãe Suécia), Rolf Adlersparre, 1892; Fig. 7: Mor Norge (Mãe Noruega), Andreas Bloch, 1905.
No século XX o cinema mudo, ainda nos anos 1920, também representou a mulher nórdica como uma intrépida guerreira, vestida aos moldes da ópera wagneriana (The viking, 1928). Esse modelo ainda vai continuar nos anos 1950, mas somente nos filmes B, como The Saga of the Viking Women and Their Voyage to the Waters of the Sea Serpent (1958). No cinema de grande produção envolvendo os "Vikings" dos anos 1950 a 1990, a mulher nórdica foi retratada somente como meiga, subserviente, doméstica. Isso muda com o sucesso da série de fantasia Xena (1995). O modelo da mulher guerreira antiga e medieval volta a fazer sucesso, inspirando na criação de personagens belicosas nos filmes Coração de Dragão (1996) e Lenya, a guerreira (2001). Esta mudança nas representações midiáticas talvez tenham sido influenciadas pelos novos padrões femininos e feministas, algo a ser pesquisado.
A guerreira nórdica ressurge no filme Outlander (2008), onde a personagem Freyja é a filha de um rei, atuando ao mesmo tempo na vida doméstica/palaciana, quanto lidando com armas. Dentro da série de quadrinhos Northmen, foi publicado o suplemento Irmãs de Escudo (2010) onde podemos observar um grupo de mulheres nórdicas que se transformam em guerreiras e mercenárias, abolindo e maldizendo a "vida doméstica", entre os quais, a tecelagem. Além de idealizarem uma vida sem a influência objetiva de qualquer homem (Langer, 2012, p. 287). Aqui percebemos nitidamente modelos e referenciais tipicamente advindos do feminismo moderno, transferidos para o passado. No próprio modelo de valquíria, imaginado pelas sagas lendárias, as guerreiras teciam - como Brynhild na Saga dos Volsungos, não necessariamente ocorria um modelo antagônico de atividades para a fantasia social daquela época (ela tecia e guerreava). É a nossa sociedade que acaba criando representações baseadas nas experiências contemporâneas (Para mais detalhes, Langer, 2012).
Algumas crônicas medievais citam guerreiras nórdicas atuando em regiões exteriores à Escandinávia, além de recentes pesquisas arqueológicas que vem confirmando a realidade destas mulheres. Mas como era o seu papel na sociedade? Como eram os seus relacionamentos? Como eram vistas socialmente de um ponto de vista do gênero? Não sabemos. As dezenas de sagas de família, mais realistas e "históricas" (até certo ponto), são absolutamente silenciosas sobre estas mulheres. Eram poucas e não tinham tanta importância? Não sabemos. Elas abundam nas sagas lendárias e nos mitos - mas até que ponto estas fontes servem para uma reconstituição histórica e social? O que podemos afirmar é que a maioria das imagens criadas sobre as guerreiras escandinavas da Era Viking provém da fantasia, seja no passado, seja no presente (*). E a partir de 2013, Lagertha torna-se o principal referencial imaginário, fantástico e ficcional para a nossa época representar o tema. E é por ele que temos que refletir a Freydis da série Vikings: Valhalla. Fruto ao mesmo tempo de releituras das sagas do Atlântico Norte, a nova Freydis também é perpetuadora do modelo ideal de mulher nórdica antiga elaborado a partir da modernidade.
Nota:
(*) Talvez seja possível utilizar algumas descrições da Gesta Danorum de Saxo Grammaticus como um contraponto interessante para as pesquisas das guerreiras nórdicas antigas, apesar de sua influência classicista e grandes doses de fantasia.
Fontes primárias:
ANÔNIMO. Três sagas islandesas. Tradução de Théo de Borba Moosburger. Curitiba: Editora da UFPB, 2007.
ANÔNIMO. The Vinland Sagas: The norse discovery of America. Tradução de Magnus Magnusson e Hermann Pálsson. London: Penguin, 1965.
Fontes secundárias:
BOYER, Régis. Mulheres viris. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de Mitos literários. Brasília: UNB, 1997, pp. 744-746.
CAMPOS, Luciana de. Freydis Eiriksdóttir. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2018, pp. 287-289.
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. Sagas do Atlântico Norte. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2018, pp. 617-621.
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. Leif Eriksson. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Hedra, 2018, pp. 471-473.
LANGER, Johnni. Viking. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. são Paulo: Hedra, 2018, pp. 705-718.
OILIVEIRA, André Araújo de. Conversão ao cristianismo. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de História e Cultura da Era Viking. são Paulo: Hedra, 2018, pp. 153-157
LANGER, Johnni. Mulheres guerreiras nórdicas. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de Mitologia Nórdica. São Paulo: Hedra, 2015a, pp. 321-324.
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