Prof. Dr. Johnni
Langer (UFPB/NEVE)
Johnnilanger@yahoo.com.br
Dentro
do referencial em que a arte elaborou suas representações (num sentido militar:
profissionais da cavalaria pesada; num sentido nobiliário: estritamente
aristocrática e nobre), todo medievalista sabe que a cavalaria medieval possuem conotações associadas ao
período que vai do século XII ao XV, tendo a França como epicentro
sócio-cultural. Mas então, como teria surgido esse imaginário artístico moderno?
Em
primeiro lugar temos que perceber que os artistas visuais e os escritores
modernos não tinham contato com uma visão histórica da cavalaria medieval, ao
contrário, eles consumiam obras medievais onde foram elaboradas as
idealizações, fantasias e ideologias sobre a cavalaria. Especialmente as obras
arturianas eram as preferidas, um mundo onde os cavaleiros medievais, acima de
tudo, eram perfeitos modelos de virtude e comportamento, de paixão e aventura –
é o que o historiador Jean Flori denomina de “mito da cavalaria” (2002, p.
196): a literatura medieval em língua vulgar celebra e transforma a cavalaria
em mitos, onde os personagens são heróis ideais, valentes, sábios, intrépidos,
virtuosos. Um ideal cavaleiresco, profano e ambíguo (p. 197).
No
contexto da segunda metade do século XVIII, a origem da retomada europeia da
literatura medieval, os artistas buscavam elementos para fugir ao Neoclassicismo
que imperava nas artes em geral, mas também buscavam escapar do racionalismo
iluminista que se impunha no momento. Logo, o período pré-romântico viu nascer
um movimento que vai incendiar os intelectuais europeus. Ele vai buscar nos
antigos mitos, epopeias e folclore, elementos que possam fornecer temas para
uma arte contestadora do racionalismo (o sublime e a melancolia, que vão ser
alguns dos temas preferidos do posterior Romantismo) e para fortalecer uma
identidade nacional, que busca suas origens.
Paralelamente
temos alguns movimentos literários que caminham numa direção semelhante a esse
movimento estético referido, como o Sturm und Drang na Alemanha. E em
1762 o poema Ossian de James Macpherson torna-se uma febre na Europa, levando
cada país a procurar suas próprias tradições mítico-folclóricas em particular,
mas elevando o passado celta a um patamar absoluto – muitas obras posteriores
vão confundir germânicos antigos com Celtas e nórdicos, seja na literatura ou
nas artes visuais. Por exemplo, até final do século XIX os druidas serão o
referencial estético de sacerdotes para todos estes povos antigos da Europa. A
própria noção de “Norte” aqui precisa ser matizada – não se trata somente da
Escandinávia, mas de todo o norte europeu que se mescla indiferentemente a um
passado Celta e Germânico, tanto historicamente quanto linguisticamente. As
fronteiras não são bem demarcadas, originando as “confusões” deste período.
Em
1755 inicia-se na Dinamarca o denominado Revival Nórdico (ou Renascimento
Nórdico) que vai ser muito influente na França e nos países de línguas
germânicas em geral. As Sagas e as Eddas passam a ser traduzidas, estudadas e
recebem novas versões, mas mãos de jovens escritores empolgados. Mas como
representar os antigos deuses e deusas? Como representar visualmente os antigos
nórdicos? Não se conheciam nesta época as fontes visuais antigas e o estudo da cultura material do medievo era muito precário.
Então, os pintores e escultores apelavam para a sua imaginação e os recursos
que dispunham neste momento – e a cavalaria medieval filtrada pela literatura
era uma excelente opção.
Acompanhar
todos os estereótipos criados em torno dos nórdicos e suas conexões é complexo.
Elaboramos uma tabela com dez estereótipos positivos e negativos sobre os
vikings (a ser publicada na próxima edição da revista Scandia: “A invenção
romântica do Viking”), que vão do medievo até o século XX, destacando os
seguintes elementos: Aventura,
Comportamento, Sociedade, Equipamentos, Guerra, Nacionalismo, Origem nacional,
Abdução, Mulher nórdica, Ambiente e Comportamento. O que nos interessa
diretamente aquí, a construção do Viking como um cavaleiro medieval, tem
relação como o último elemento: o comportamento.
O estereótipo primeiramente teve inicio na França: “Tout
ce que nous appelons esprit chevaleresque, nous le devons aux Scandinaves”
(Cherade-Montbron, 1801, p. 266).* Em 1825 o escritor sueco Esaias Tégner
publicava a sua versão de Frithiof, onde o herói protagonista possui diversos
elementos de um cavaleiro medieval. No mesmo ano, na França criou-se a idéia de
que foi no Norte europeu que teria nascido a cavalaria: “Ce qui prouve d´une
manière incontestable que la chevalerie est venue du Nord”. (Lerebours, 1825,
p. 176). A partir daí, varios outros intelectuais franceses continuaram a defender
essa noção:
“Oi aime à
reconnaître que l´esprit de galanterie des Européens modernes est un héritage
des Scandinaves, et que l´odinisme a été le berceau de la chevalerie” (Saint-Genies,
1824, p. XII)
“Il faut savoir que la Scandinavie, d´où sont sortis les
Normands, est le véritable berceau de la chevalerie” (Hagberg, 1835, p. 245).
“L´Europe Méridionale et occidentale n´avait pas l´esprit
de chevalerie avant l´invasion gothique et germanique” (Gräber, 1838, p. 85).
Desta maneira, o nórdico/normando torna-se não somente um
herói do romantismo, mas também um modelo de virtude e bom comportamento dos
tempos passados: “On a pu voir qu´il y avait dans les moeurs scandinaves,
toutes rudes et barbares qu´elles étaient, quelque chose de chevaleresque; pour l´exaltation de la
bravoure, l´avidité de la glorie, la fraternité des armes, l´amour du beau
sexe, le goût de la poésie héroique, enfin pour toutes les passions fortes, ils
étaient chevaliers”. (Depping, 1826, p. 367)
Mesmo para os leitores de sagas islandesas, essas
características cavalheirescas parecem dominar as antigas ações dos nórdicos,
onde o espírito de galenteria estaría atrelado aos valores de conduta, fraternidade,
respeito pelas mulheres e o apreço pelo combate honroso.** Até mesmo o duelo
(hólmganga) é visto a partir de uma nostalgia de uma Idade Média dos torneios.
Nem mesmo o famoso filósofo e poeta, Arthur de Gobineau, escapou a essa
irressistivel visão: “(…) Rollon et sa bande hardie (…) De marins qu´ils
étaient devinrent chevaliers” (Gobineau, 1838, p. 165). Não se trata aqui de
interpretações fiéis aos textos medievais nórdicos, claro, mas de filtragens
que iam de encontro à recepção daquele momento. E nada poderia exemplificar melhor
do que as artes visuais. Nesse caso, tudo começou em 1826.
Frithiof dreper to troll på havet (Frithiof matando dois
trolls no mar), pintura de Carl Peter Lehmann, 1826, óleo sobre tela, 86 x 115
cm, acervo do KODE (Museu de Artes de Bergen, Noruega).
Quase tudo nesta pintura de Carl Lehmann é fantástico. Não
se conheciam muito bem as embarcações nórdicas, por isso o barco de Frithiof
mantém quatro mastros e velas latinas e a proa contém uma especie de esporão. O
herói está de armadura completa – apesar dos cavaleiros medievais começarem a
utilizar armaduras completas somente a partir do século XIV (e seu uso foi extensivo
até o século XVII) - o imaginario artístico generalizou sua utilização para todo o
medievo. Frithiof se mantém altivo e viril na proa da embarcação, destacando
seu papel de herói e guerreiro.
Ilustrações de Hugo Hamilton, Teckningar ur
Skandinaviens Äldre Historia. Stockholm: Gjöthström & Magnusson, 1830.
Nestas duas imagens de Hugo Hamilton representando o
mundo nórdico da Era Viking, percebemos o uso da espada longa tardo medieval e
a armadura completa. Mas um detalhe salta aos olhos: o segundo cavaleiro porta
um elmo com asas, que posteriormente vai tornar-se uma imagem icônica associada
aos Vikings (os chifres surgem apenas depois de 1890), no qual elaboramos três
teorias de origem iconográfica paralelas ou consecutivas (a serem detalhadas no
estudo: “Barbarian warriors, romantic heroes: the visual invention of the
Vikings through Western art, 1831-1910”).
Ilusrações de Johan Holmbergsson para a quinta edição da Frithiof saga, de Esaias Tégner.
Stockholm: Tryckt Hos PA Norstedt & Soner, 1831.
Nas ilustrações de Johan
Holmbergsson percebemos a elaboração visual definitiva do nórdico como
cavaleiro medieval: ele se destaca pelo porte de uma armadura majestosa e
brilhante: na primeira imagem, ele dialoga com um guerreiro e na segunda, com
uma donzela. O seu elmo alado o destaca como líder e somente Frithiof porta-o
como equipamento. Ele se impõe pelos gestos e comportamentos: honrado, nobre,
valente. Ele não se destaca somente por ser um audacioso guerreiro, mas de ser
um homem que tem amor pelas damas e suas virtudes na corte (como os cavaleiros
corteses no medievo, Flori, 2005, p. 158-163).
A partir dos anos 1830 as representações visuais dos Vikings
na Europa abandonam paulatinamente o referencial do cavaleiro medieval,
permanecendo apenas o elmo com asas. As vestimentas e os equipamentos tornam-se
cada vez mais nórdicos. Mas do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos,
essa representação vai sobreviver até o século vinte.
Em 1832 foi descoberto nos EUA um esqueleto junto a uma
suposta armadura, inaugurando o mito nórdico naquele país (detalhes foram
abordados em nosso estudo anterior: Langer, 2012). Alguns anos depois, em 1841,
o escritor Henry Wadsworth Longfellow publicou o poema “The Skeleton in Armor”, influenciado pela
descoberta. Neste poema, foi mencionado pela primeira vez o termo Viking no continente amerricano, mas
as primeiras imagens associando essa narrativa com a idealização da cavalaria
medieval ocorreram somente em 1856.
Ilustração de John Gilbert para a edição inglesa do poema
The Skeleton in Armour, de Longfellow. Londres: George Routledge & Co.,
1856.
Na imagem de John Gilbert percebemos a arte vitoriana em
seu esplendor: O esqueleto dentro da armadura permanece de pé, impassível e
olhando e apontando a sua mão para o espectador, onde um manto e uma longa
espada criam uma atmosfera misteriosa e romântica.
Alice M.A. Baumgartner, The Skeleton in Armour, aquarela,
1870-1890, coleção particular.
No final do Oitocentos, a artista norte-americana Alice Baumgartner
recria a imagen de John Gilbert, dando vida ao personagem de Longfellow. Vários
outros ilustradores, já no século XX, vão prosseguir com a representação do
Viking como um cavaleiro medieval, mas também os escritores, a exemplo de Louis
de Saint-Pierre: “Le chevalier – cette réincarnation chrétienne du Viking”
(Saint-Pierre, 1949, p. 9).
Os Vikings ainda são extremamente interessantes tanto para os escandinavistas
quanto para os medievalistas e historiadores da arte perceberem que o tema da
recepção é repleto de possibilidades investigativas.*** Esperamos que no futuro outros pesquisadores abordem esse tema da fusão entre o Viking e o cavaleiro medieval, tanto na literatura quanto na arte e mídia em geral.
*Nota: comprovando a recepção do ideal cavaleresco
medieval na França nesta mesma época, Napoleão Bonaparte criou em 1802 a Legião
da Honra (Le Goff, 2009, p. 124).
**Nota: O historiador Dominique Barthélemy comenta que a
literatura cavaleiresca em francês do século XII poderia ter sido uma forma de
canalizar e moralizar a brutalidade da cavalaria “real” (2010, p. 460). Questionamos:
a recepção francesa no inicio do Oitocentos – ao fundir a imagem do cavaleiro
medieval com a do Viking/Normando – não estaría também tentando “civilizar” ou “moralizar”
a anterior imagem barbárica e brutal dos nórdicos, comum entre alguns
escritores no final do Setecentos?
***Nota: O quadrinho Príncipe Valente de Hall Foster (1937) pode conter alguns dos últimos ecos destas fusão: na narrativa, o personagem principal é descendente de Vikings da Noruega e se torna um dos cavaleiros do rei Arthur em Camelot (em plena Alta Idade Média).
Agradecimentos:
Kesia Eidesen (KODE Art
Museums and Composer Homes), pelo envio de informações.
Luciana de Campos (NEVE) por esclarecer algumas dúvidas sobre a língua francesa.
Luciana de Campos (NEVE) por esclarecer algumas dúvidas sobre a língua francesa.
Bibliografía:
Fontes
primárias:
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Fontes
secundárias:
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FLORI, Jean. A
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FLORI, Jean. Cavalaria.
In: LE GOFF & SCHMITT (Org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval.
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Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Rio de Janeiro: Vozes,
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