Introdução
O escritor e poeta Robert Ervin
Howard (1906-1936) escreveu centenas de contos e poemas, sendo um prolífico
autor nas pulp fiction, revistas
baratas que apresentavam histórias de fantasia, ficção científica, terror,
aventura, romance e erotismo, que foram populares nos Estados Unidos nas
décadas de 1920 e 1930. Howard se notabilizou por suas publicações nos gêneros
da fantasia e do faroeste, no caso da fantasia destacam-se três personagens
seus: Solomon Kane, Kull, o Conquistador e Conan, o Bárbaro.
Conan o bárbaro da Ciméria surgiu
em 1932, quando sua primeira aventura intitulada A Fênix na Espada foi publicada na Weird Tales, uma das mais importantes revistas pulp da época. O
icônico bárbaro da literatura de fantasia foi criado pelo escritor baseado em
outro personagem seu, chamado Kull, o Conquistador, lançado em 1929 na mesma
revista.
Howard decidiu se dedicar nos
anos seguintes a escrever vários contos sobre esse guerreiro corajoso e
impulsivo, que agia como mercenário, ladrão, pirata, mas também chegou a ser
rei da Aquilônia e até teve seus atos de heroísmo. As aventuras de Conan se
tornaram bastante populares, gerando inclusive um subgênero da literatura de
fantasia chamado de espada e feitiçaria (sword and sorcery), que inspirou
romances, novelas, contos, histórias em quadrinhos, filmes, séries e jogos de
RPG.
À medida em que Howard trabalhava
nas narrativas sobre Conan, ele foi expandido o mundo fantástico em que a trama
ocorria, um mundo antigo contendo monstros e magia, tomado pela selvageria e a
violência, esses eram os tempos da Era Hiboriana, uma época num passado
fantástico inspirado na Europa, África e Ásia. E isso é visível na geografia
criada por Howard para seu mundo fantástico.
Neste caso, além dessa geografia
baseada um pouco na realidade, o autor também utilizou referenciais de nomes de
lugares e de povos antigos para criar suas civilizações e países, além do
evidente uso das referências mitológicas, destacando-se as de origem egípcia e
mesopotâmica, embora que em algumas narrativas temos elementos da mitologia
grega, indiana, eslava e nórdica.
Todavia, no geral, Howard fazia
mais uso do nome de deuses e lugares mitológicos para citar em seus contos
sobre Conan, ele não costumava aprofundar esses referenciais. Condição essa que
quando pegamos os elementos mitológicos de origem nórdica, o leitor perceberá
que pouca coisa foi escrita. Embora as aventuras de Conan tenham sido escritas
também por outros autores, nesta análise optamos em usar apenas o material
original produzido por Robert E. Howard, sendo assim, temos quatro fontes as
quais encontramos referências à mitologia nórdica.
A primeira vez que encontramos
referências a mitologia nórdica advém do conto de estreia do personagem, A Fênix na Espada (The Phoenix in Sword), nesta narrativa Conan é retratado como um
homem de quarenta e poucos anos tendo se tornado rei da Aquilônia, estando este
situado ao sul da Ciméria, sua terra natal.
Neste conto de introdução ao
mundo fantástico da Era Hiboriana, que estava em início de construção, em um
dos diálogos, Conan comenta sobre a geografia do mundo, citando alguns países e
povos, então ele fala da Ciméria e que ao norte da sua terra natal havia os
reinos que formavam Nordheim,
estando situadas as regiões de Asgard onde
viviam os aesires e Vanaheim, o lar
dos vanires.
A segunda fonte que aborda a
mitologia nórdica trata-se do conto Deuses
do Norte (Gods of North),
publicado em 1934 na revista Fantastic Fun. Esse é um conto a
parte, publicado fora da Weird Tales,
por ter sido rejeitado pelo editor. Como Howard tinha um acordo de quase
exclusividade com a Weird, ele então mudou o nome de Conan para Amri, um dos
nomes pelo qual o bárbaro é referido nos tempos que era ladrão. Em 1953 quando
esse conto foi republicado ele foi intitulado A Filha do Gigante de Gelo (The
Frost Giant’s Daughter), título original concebido por Howard, e que se conserva
até hoje. Embora seja uma narrativa curta, ela recebeu algumas adaptações para
os quadrinhos, e até para o desenho animado Conan the Adventurer
(1992-1993).
A terceira fonte é o conto A Rainha da Costa Negra (Queen of the Black Coast) publicado
também na Weird Tales, no ano de
1934. Nesta narrativa Conan se une ao bando de piratas de Bêlit, uma bela
princesa que abandonou a vida de nobre para se tornar uma capitã pirata,
passando a saquear as costas e portos de Argos e cercanias. Neste conto temos
algumas breves referências aos estereótipos dos vikings e a mitologia nórdica.
Por fim, a quarta fonte na qual
temos informações sobre os elementos da mitologia nórdica é o ensaio Era Hiboriana (Hyborian Age). Howard
disse que começou a escrevê-lo ainda em 1932, mas esse ensaio somente foi
publicado na revista The Phantagraph, em 1936, o que
permitiu o autor atualizar algumas informações, já que ele escreveu vários
contos nesse meio tempo. Todavia, o ensaio curiosamente não traz grandes
novidades sobre os elementos de mitologia nórdica, pois basicamente Howard
reutiliza informações já apresentadas em A
Fênix na Espada e A Filha do Gigante
de Gelo. Mas como é uma fonte originalmente escrita pelo autor, decidimos
citá-la mesmo assim.
As referências aos vikings e a mitologia
nórdica
No conto A Fênix na Espada, Conan
é rei da Aquilônia, em certo momento ele conversa com um de seus funcionários
de nome Próspero. Na ocasião mostra um mapa e diz que os reinos do Norte
estavam faltando, então ele inicia um diálogo com Próspero dizendo que ao norte
da Ciméria ficava Asgard e Vanaheim, duas terras as quais ele visitou em sua
juventude.
“— Asgard e Vanaheim… — Próspero
examinou o mapa. — Por Mitra, quase acreditei que esses países eram mitos.
Conan sorriu como um selvagem,
tocando involuntariamente as cicatrizes em seu rosto:
— Você pensaria diferente, caso
tivesse passado a juventude nas fronteiras ao norte da Ciméria! Asgard fica ao
norte, e Vanaheim, a noroeste de lá. E a guerra nas fronteiras é perene.
— Como é esse povo do norte? —
indagou Próspero.
— São altos, claros e de olhos
azuis. O deus deles é Ymir, o gigante do gelo, e cada tribo tem seu próprio
rei. Eles são ferozes e temperamentais. Lutam o dia inteiro e, durante a noite,
bebem cerveja e cantam canções selvagens.
— Então acho que você é como eles —
Próspero gracejou. — Ri, bebe bastante e gosta de boas canções; embora eu nunca
tenha visto outro cimério que só bebesse água, risse pouco ou cantasse hinos
lúgubres.
— Talvez seja por causa da região
onde vivemos — respondeu o rei.
— Nunca houve terra mais sombria…
repleta de montanhas e matas fechadas, sob um céu quase sempre cinza, com
ventos que sopram espectrais em meio aos vales”. (HOWARD, 2017a, p. 21).
Embora
Conan seja várias vezes descrito como sendo alto, robusto, musculoso e tendo
cabelos negros, ele é dito ter olhos azuis e pele branca, mas que ficava
bronzeada, já que normalmente anda sem camisa. Além disso, os cimérios, aesires
e vanires seriam povos aparentados, aqui temos características baseadas nos
estereótipos dos vikings, embora hoje saiba que eles não fossem tão altos e nem
todos eram louros e teriam olhos azuis. No tocante a Conan comentar que tais
homens gostavam de beber, comer e cantar, essa é outra característica associada
com os vikings, inclusive citada em algumas sagas.
Inclusive os guerreiros desses
povos usariam elmos com chifres, algo destacado no conto A Rainha da Costa
Negra, em cuja narrativa ao descrever a aparência e traje de Conan, é dito:
“Seu elmo com chifres de touro era igual aos utilizados pelos aesires de
cabelos dourados de Nordheim; sua cota de malha e suas grevas eram dos melhores
artesãos de Koth; as peças com elos de correntes que protegiam seus braços e
pernas vinham da Nemédia; a lâmina em seu cinturão era uma espada longa
aquiloniana e seu deslumbrante manto escarlate não poderia ter sido adquirido
em outro lugar que não fosse Ophir”. (HOWARD, 2018b, p. 79).
A referência ao elmo com chifres
é algo citado até em outras narrativas de Conan, tendo se popularizado nos
quadrinhos, desenhos, filmes e jogos, sendo reflexo do estereótipo dos vikings
surgido no século XIX, mas ainda vigente na primeira metade do XX. É preciso recordar que na década de 1930,
quando essas narrativas do Conan foram escritas, a Vikingmania estava em alta,
e essa visão dos vikings como bárbaros ainda era bem forte, inclusive ela foi
um dos fatores para inspirar Howard na criação de Kull e Conan, retratando-o os
dois como bárbaros musculosos de pele branca bronzeada, embora fossem de
cabelos negros longos, barba feita e olhos azuis.
Figura 1: Conan confrontando dois guerreiros vanires. Ilustração de Frank Frazetta para Conan #2 (1969). Nota-se a presença dos elmos com chifres.
“— Não consigo dizer — ele murmurou
— se você é de Vanaheim e minha inimiga, ou se é de Asgard e minha amiga. Já
viajei muito, mas nunca vi uma mulher assim. Seus cachos me cegam com seu
brilho. Por Ymir, nem mesmo entre as filhas mais lindas dos aesires vi cabelos
assim!
— Quem é você para jurar por Ymir? —
Zombou ela. — O que sabe sobre os deuses do gelo e da neve?”. (HOWARD, 2018a,
p. 258).
A
misteriosa mulher chama-se Atali, e diz ser filha de Ymir, o deus dos homens do
Norte. Ela então convoca dois gigantes de gelo que atacam Conan. O cimério
percebe que caiu numa armadilha e tem que lutar pela sua vida. Por se tratar de
um conto curto, a história não explora mais outros elementos mitológicos que
são citados como os nomes de Heimdul, Bragi, Niord e Valhala. Apesar disso,
comentei o que foi apresentado.
Figura 2: Conan encontrando Atali. Ilustração de Jay Anacleto para a revista Cimmerian: The Frost Giant Daughter (2020). Nesta versão, Atali é representada como ruiva e tendo dois ursos polares gigantes.
Nesta narrativa encontramos um
elemento bem interessante baseado na mitologia nórdica: os gigantes de gelo,
personagens que nos mitos são constantemente causadores de problemas para os
deuses, embora que nem todos os gigantes sejam ameaças. No caso desse conto, os
dois gigantes são descritos tendo a pele branca e fria como o gelo. Eles dois e
Atali são ditos serem filhos de Ymir, o deus gigante cultuado pelos povos de
Asgard e Vanaheim.
Na mitologia nórdica Ymir
realmente é um gigante de gelo, embora não fosse uma divindade. Ele consiste
num ser associado com os mitos de origem do cosmos e do mundo. Ymir é o ser
primordial, de cujo corpo surgiu a raça dos gigantes, os quais se uniram a raça
dos deuses oriunda a partir dos filhos de Buri (o primeiro deus). Mais tarde
três netos de Buri, chamados Odin, Vili e Vé assassinaram Ymir e com as partes
de seu corpo eles criaram o mundo.
Figura 3: Conan confrontando os gigantes de gelo. Ilustração de Cary Nord para a revista Conan: The Frost-Giant's Daughter and Other Stories (2004).
Nesta citação temos Conan se
mostrando cético quanto ao destino pós-morte, após ser indago por Bêlit, então
o cimério cita alguns exemplos. O interessante é que o reino de gelo e nuvens
que ele diz pertencer a Crom, lembra a descrição de Niflheim, um mundo de gelo
e neblina da mitologia nórdica, e onde estaria situado Helheim, um dos mundos
dos mortos. Por sua vez, Conan diz que o povo de Nordheim (os aesires e
vanires) acreditavam em Valhalla, com seus salões abobadados. Nos mitos Valhala
é o salão de Odin, o mais famoso dos mundos dos mortos na mitologia nórdica,
para onde iam os guerreiros valorosos que morreram. Observa-se que Howard
embora não tenha dado maiores detalhes sobre isso, utilizou duas localidades da
mitologia nórdica em seu trabalho.
No ensaio Era Hiboriana (1936),
Robert E. Howard retoma alguns comentários sobre Nordheim e seu povo. Aqui não
há muitas novidades, já que ele volta a comentar sobre a aparência dos aesires
e dos vanires, o fato de eles viverem numa região fria com densas florestas e
campos cobertos por neve, além de serem povos bárbaros como os cimérios e
pictos. Todavia, nesse ensaio ele escreveu que: “Ao Norte, bárbaros de cabelos
amarelos e olhos azuis, descendentes dos selvagens loiros do ártico, puseram
para fora dos países gelados o restante das tribos hiborianas, exceto o reino
da Hiperbórea, que resiste à matança. Seu país se chama Nordheimr, e eles se
dividem nos vanires ruivos de Vanaheim e nos aesires loiros de Asgard”.
(HOWARD, 2017b, p. 255).
Figura 4: Mapa do mundo de Conan durante a Era Hiboriana. No topo, os reinos de Asgard e Vananheim.
Em distintos momentos Conan diz
que os aesires e vanires estavam em guerra, mas isso nunca é justificado nos
contos, todavia, esse conflito é inspirado na mitologia nórdica em que ocorreu
a guerra entre os ases e vanes, quando os dois clãs de deuses lutaram entre si
e acabaram chegando a uma trégua em que Njörd e seus filhos Freyr e Freyja
passaram a habitar Asgard. O ocorrido foi celebrado com a saliva dos deuses que
foi depositada num caldeirão do qual originou Kvasir, um deus sábio e bondoso,
fruto da paz estabelecida entre os dois clãs.
HOWARD,
Robert E. A Fênix na Espada. In: HOWARD, Robert E. Conan, o Bárbaro: Livro 1. Tradução de Alexandre Callari. São
Paulo: Pipoca & Nanquim, 2017a, p. 12-43. 3v
HOWARD,
Robert E. A Rainha da Costa Negra. In: HOWARD, Robert E. Conan, o Bárbaro: Livro 2. Tradução de Alexandre Callari. São
Paulo: Pipoca & Nanquim, 2018b, p. 73-113. 3v
HOWARD,
Robert E. Os Anais da Era Hiboriana. In: HOWARD, Robert E. Conan, o Bárbaro: Livro 1. Tradução de Alexandre Callari. São
Paulo: Pipoca & Nanquim, 2017b, p. 249-270. 3v
HOWARD,
Robert E. A Filha do Gigante do Gelo. In: HOWARD, Robert E. Conan, o Bárbaro: Livro 2. Tradução de
Alexandre Callari. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2018a, p. 256-266. 3v
Referências
LANGER, Johnni (org.). Dicionário de mitologia nórdica: mitos,
símbolos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015.
OLIVEIRA, Leandro Vilar. Vikingmania: dois séculos de construção da representação dos vikings. Scandia: Journal of Medieval Norse Studies, v. 5, p. 469-502, 2021.