O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

sábado, 25 de novembro de 2023

Imaginários sobre a mulher nórdica (A senhora da Tundra)

GIOMETTI, Paola. A Senhora da Tundra. Culturama, 2022.

 

 

Andréa Caselli

Doutora em Ciências das Religiões pela UFPB, integrante do NEVE

 

A autora Paola Giometti é brasileira e vive na Noruega, na cidade de Tromsø. Desde o seu primeiro livro, a autora já citava a mitologia e os animais do ártico como referência para o enredo de suas histórias. Quando se mudou para o norte da Noruega, ela conseguiu experimentar o cotidiano com a natureza e a cultura nórdica que deram maior embasamento para escrever A Senhora da Tundra. Dessa forma, o livro foi escrito e ambientado no norte da Noruega. Para ter melhor conhecimento sobre o tema e dar mais fidelidade às referências culturais em A Senhora da Tundra; a autora fez um curso sobre sagas islandesas medievais na Universidade da Islândia.

A protagonista do livro, Jarnsaxa, é a filha bastarda do rei Drakkar e também é a general dos draugar no Reino de Vholtor. A jornada dela mantém os leitores atentos a cada uma de suas provações e aventuras. O enredo apresenta a rivalidade entre os draugar e os humanos (chamados de mundanos pelos draugar). Atormentada por uma revelação do passado que envolve o seu rei, ela que é conhecida como a Ursa da Tundra, se torna uma desertora e inicia uma busca por vilarejos, montanhas e santuários à procura de um homem que dizem ser um enviado das Nornas e de Odin e que poderá matar Drakkar. A ambientação e as referências culturais fazem com que a narrativa seja muito detalhada em relação à natureza e ao modo de vida nórdicos. A narrativa se passa em uma época em que os nórdicos acreditam que o ragnarok já aconteceu e, por esse motivo, os deuses desapareceram.


 

 Ilustração do interior do livro: “Jarnsaxa com sua cabeça de urso Berserker”. Por Alexandre Santos, Lucas Willian de Oliveira Silva, Andrés Bertachini Deranian e Antônio Rizzatti de Abreu.

 

O mais encantador do livro é o glossário de termos nórdicos que também apresenta os fonemas em português para que o leitor aprenda a forma correta de pronunciar as palavras provenientes dos idiomas escandinavos. A autora teve o cuidado de, no glossário, colocar todas as palavras de origem e pronúncia escandinavas contidas no livro. Algumas dessas palavras têm o seu sentido real apresentado no glossário, para que o leitor entenda o motivo te terem sido usadas na narrativa com um conceito fictício. Por exemplo, no glossário a autora explica o motivo de ter dado sentido fictício e criado personagens a partir da palavra draugr, que nomeia seres folclóricos habitantes das praias escandinavas à procura de carne humana e preciosidades e que foram, no passado, pescadores ou navegadores que morreram afogados no mar.

  Ilustração do interior do livro: “Haraks, os draugar que caminham sob a luz”. Por Alexandre Santos, Lucas Willian de Oliveira Silva, Andrés Bertachini Deranian e Antônio Rizzatti de Abreu.

 

Os deuses nórdicos também são incluídos no glossário e inseridos na narrativa, com seus atributos e atividades sendo mencionados em alguns momentos. Os gigantes também são mencionados algumas vezes, principalmente o gigante Ýmir, que também pode ser chamado de Mímir (nome que significa “Memória”, segundo Régis Boyer (1997, p. 101–102) e Rudolf Simek (2007, p. 216–217). Ele é um gigante ancestral, citado principalmente da Edda em Prosa de Snorri Sturlusson. Mímir guarda uma fonte sob a árvore primordial Yggdrasill, que é utilizada por aqueles que querem obter o conhecimento.

Em cenas de A Senhora da Tundra, os personagens passam algumas vezes por um local conhecido por Montanha de Ýmir, no qual acontecem episódios relacionados à cura e à magia. Por exemplo, neste local, uma fornalha que ficava acesa de forma permanente brilhava e fazia tanto barulho, que um dos personagens percebeu que aquele fogo era uma comunicação dos deuses, que indicavam a cura e a força. O fogo da cabana norueguesa - que está na vela, no fogão e na lareira - remete à ideia de luz interna.

A iluminação com grande destaque participativo na composição de lugar é um dos grandes elementos da formação da ideia romana de genius loci, utilizada por Norberg-Schulz no seu discurso sobre a fenomenologia na arquitetura, para descrever o espírito do lugar (1980, p. 52-67). A luz nórdica é filtrada por nuvens e folhas de árvores das densas florestas, a luz obliqua cria longas sombras que obscurecem as silhuetas, dissolvendo os objetos num misticismo romântico. Todos os lugares tem as suas caraterísticas específicas, tendo a luz um papel fulcral na sua caraterização, permitindo a revelação e a simbiose de quem habita tais lugares. Os ambientes alteram-se com mudanças climáticas ou sazonais, mas, mesmo assim, existe a característica própria do lugar que está sempre presente.

            A floresta norueguesa é composta principalmente de altos pinheiros que filtram a incidência de luz solar no solo, ofertando uma visão profunda e impenetrável. O sentido de descoberta é estimulado em uma liberdade de movimento infinita dentro dela. O bosque, a tundra, os lagos e os fiordes são indissociáveis da vida das pessoas e a liberdade é um percurso de descoberta. A existência nórdica encontra-se precisamente nesta busca incessante pela revelação e pela conquista, em vez da consequente aceitação do que é dado. A sobrevivência humana neste ambiente se manifesta no sentimento de misticismo que há ao redor. A relação entre natureza e sagrado propicia o estudo de como se transforma um espaço em um lugar, e como a arquitetura é o instrumento para essa transformação, na Noruega, um país com privilegiada relação com o meio natural.


 

 

 

   Ilustração do interior do livro: “Mapa de Real Vholtor”. Por Alexandre Santos, Lucas Willian de Oliveira Silva, Andrés Bertachini Deranian e Antônio Rizzatti de Abreu.

 

O silêncio dos bosques, a solidão de um vasto território pouco povoado, uma paisagem dominada por fenômenos naturais como a aurora boreal, os intermináveis dias de verão ou a sempre presente escuridão das noites de inverno; todas essas manifestações na paisagem influenciam na criação arquitetônica, que, por sua vez, também criam o lugar. A experiência espacial do perambular entre troncos de árvores, rochas, arbustos e lagos. Uma multiplicidade de diferentes e indefinidos lugares encontrados no mundo nórdico.  

A tundra é um bioma no qual a baixa temperatura e estações de crescimento curtas impedem o desenvolvimento de árvores. É uma região montanhosa com vegetação rasteira e poucas árvores ou nenhuma. A temperatura não ultrapassa 10 graus celsius e, dentre os animais que lá vivem, os principais predadores são os ursos polares, os lobos e o boi almiscarado. Durante os momentos de vento e neve, a visão humana tem acesso às formas criadas pelo movimento da ventania que espalha a neve e o gelo, deixando o ambiente turvo e propício a ilusões em relação ao que é visto, ouvido e sentido. Assim, a tundra também tem seu aspecto de contato com o sobrenatural.

A protagonista circula entre as comunidades de draugar e humanos. No decorrer das suas andanças pelas paisagens nórdicas, outras comunidades são apresentadas, contendo também outros entes folclóricos, como, por exemplo:

 

·         a huldra: De acordo com a sabedoria popular do folclore escandinavo, a ninfa da floresta é a Huldra, nome que deriva de uma raíz, que significa algo aproximado a “segredo”. Ela é descrita como uma bela jovem, quando vista de frente. Mas quando vista por trás, suas costas são ocas como um toco de madeira. Em outras narrativas, em vez de ocas, elas têm uma espessa cauda de raposa ou de vaca. Como todos os outros guardiões sobrenaturais, ela protege seu domínio (Hultkrantz, 1961). Aparece na forma de uma mulher pequena e bonita, com um temperamento aparentemente amigável. Aqueles que são atraídos a segui-la pela floresta nunca mais são vistos.

  


Huldra, por Theodor Kittelsen, 1892. Fonte: Wikipedia. Domínio Público.

 

·         o ratatosk: De acordo com os textos medievais que narram a mitologia nórdica, o ratatosk é um esquilo que vive naárvore Yggdrasill correndo para cima e para baixo, transportando mensagens entre a águia Hræsvelgr que fica empoleirada no topo da árvore e a serpente Níðhöggr, que mora embaixo das raízes da árvore. Ratatosk é citado na Edda Poética. Ele é um dos poucos esquilos existentes em mitos europeus. 



 Manuscrito islandês do século XVII que mostra Ratatosk com um chifre. Fonte: Wikipedia. Domínio Público.

 

Porém, o ser mitológico essencial para a narrativa de A Senhora da Tundra é a serpente Grafvölludr, que no livro foi adaptada para a personagem Grafvölludr-Gulon. Já no glossário a autora explica que ela é um lindworm (um tipo de serpente mitológica), citada por Odin no poema éddico Grímnismál, como uma das serpentes que estão sob a árvore Yggdrasill. A autora também esclarece que, ao compor o nome da serpente, fez referência à criatura do folclore escandinavo chamada Gulon, que é conhecida por ser glutona e capaz de comer demai; já que a personagem Grafvölludr-Gulon é devoradora de humanos. No decorrer da narrativa, o leitor descobre, aos poucos, mais curiosidades sobre esta misteriosa e poderosa serpente.

O livro também aborda questões mais sutis, como o sentimento religioso de um guerreiro antes de ir para o campo de batalha e as pinturas faciais elaboradas com pigmentos naturais. Muito interessante também é o momento da narrativa no qual há a descrição do ritual necessário para transformar um humano em draugr, mas o que acontece nesta parte tão impressionante eu deixo para que o leitor descubra ao folhear o livro. A história é convida o leitor adentrar no folclore, na mitologia e na magia nórdicos, percorrendo paisagens cheias de mistério e um enredo repleto de cenas de batalhas memoráveis.

 Referências:

 BOYER, Régis. “Mímir”. Héros et dieux du Nord. Paris: Flammarion, 1997, pp. 101–102.

HULTKRANTZ, Åke. The supernatural owners of nature: Nordic symposion on the religious conceptions of ruling spirits (genii loci, genii speciei) and allied concepts. Stockholm studies in comparative religion, 0562-1070; 1. Stockholm: Almqvist & Wiksell, 1961.


NORBERG-SCHULZ, 1980, Genius Loci: towards a phenomenology of architecture, Rizzoli, New York.

SIMEK, Rudolf. “Mímir/Mímir’s well/Mímir’s head/Mímir’sons”. Dictionary of northern mythology. Londres: D.S. Brewer, 2007, pp. 216–217.