A similaridade visual entre alguns símbolos afro-brasileiros e de tradição escandinava voltou a ser tema de debates e discussões pelas redes sociais no Brasil. Inicialmente o NEVE produziu um artigo em 2017 que se tornou a publicação de maior sucesso do Blog: mais de 159 mil acessos!
O artigo Símbolos vikings e umbandistas: cópia ou coincidência?, em síntese, defende um ponto de vista que não existem conexões históricas entre as duas tradições mágicas, sendo uma simples coincidência visual.
Esta mesma ideia básica foi retomada pelo pesquisador lusitano João Francisco Testa Garção Härger Branquinho de Figueiredo (mais conhecido pelo seu pseudônimo nas redes sociais de Arith Härger) em um vídeo no Youtube (Similarities Between Icelandic Magic Staves and Umbanda Symbols) que alcançou a marca de 86 mil visualizações, desde que foi ao ar em agosto de 2021:
O pesquisador, apesar do caráter religioso no referido canal (sobre paganismo nórdico), também tem uma nítida preocupação histórica e de combate ao racismo, desmistificando e esclarecendo várias questões envolvendo símbolos e mitos no passado e sua recepção e usos no presente.
O tema da suposta conexão entre símbolos escandinavos e umbandistas teve um novo incremento e popularidade com a republicação do artigo do NEVE pelo portal Livros Vikings em fevereiro de 2022 (clique aqui para acessar):
Desde então, alguns novos comentários na internet sobre essa similaridade vão desde uma suposta autoria de povos desaparecidos (como atlantes: que teriam formado uma base de origem para a tradição nórdica e a africana); vínculos comuns por serem magias relacionadas à ancestralidade; os símbolos de alguns pontos riscados da Umbanda teriam a mesma origem dos veves do Haiti ou a escrita Nsibidi da África.
Em primeiro lugar, com relação ao atlantismo: apesar de ser uma teoria muito popular no esoterismo e no ocultismo moderno, ele não tem respaldo na Arqueologia e História. Uma origem comum na Atlântida para os povos europeus e África foi muito mais um produto da fantasia de certos escritores como Helena Blavatsky e Samael Aun Weor do que uma teoria elaborada a partir de evidências concretas ou plausíveis. Muitas vezes, os referidos escritores utilizavam o argumento que suas ideias foram retiradas do "registro akáshico", mundo espiritual, tiveram visões, viagens astrais ou outros meios que são factíveis somente no terreno da crença - que devem ser respeitados, por sinal, como qualquer pensamento religioso - mas estão fora do alcance da perspectiva histórica, que é a que nos interessa aqui.
Quanto ao segundo ponto: comumente o praticante de magia alega uma hegemonia ou padrão para a sua prática e a de outros povos do passado, mas de um ponto de vista histórico a questão é muito mais complexa. Cada tipo de magia ligada a questões étnicas deve ser pensada (de um ponto de vista acadêmico) somente pela perspectiva histórica e pelo contexto social de sua experiência. Como já comentamos no referido artigo do Blog (e também referendado pelo vídeo de Arith Härger), os símbolos mágicos do Galdrabók devem ser refletidos pelas diversas influências e mesclas que a Islândia conheceu no fim do Medievo, como as tradições mágicas cristãs e judaicas (consequência da popularização dos grimórios). Neste caso, qual seria a ancestralidade destes símbolos na atualidade? Os símbolos afro-brasileiros da Umbanda que são semelhantes ao Ægishjalmr ou ao Vegvísir não remetem a um passado africano (a cultura Iorubá, os veves do Haiti ou a escrita Nsibidi), mas são todos produtos do hibridismo cristão com as religiões de matriz africana no Brasil do início do século XX. Eles não existiram em nosso passado colonial e não foram um legado dos escravos trazidos da África (como apontado no artigo do Blog). Então, novamente: que ancestralidade é essa?
Tanto para o caso escandinavo quanto para o afro-brasileiro, a ancestralidade mágico-simbólica de comunidades ou indivíduos do presente só pode ser entendida se apelarmos para o que o historiador Eric Hobbaw descreveu como invenção das tradições. O passado é reinventado, ressignificado, repensando dentro de convenções modernas. Aqui não estamos distante dos usos oraculares e místicos das runas, de tatuagens rúnicas pela cultura pop ou de símbolos que são retomados pelos supremacistas para referendar suas ideologias racistas.
Concluindo: não tenho o intuito de deslegitimar ou criticar nenhum pensamento religioso. A liberdade de crença é um direito de todos. Mas quando este pensamento torna-se parte de uma sociedade, torna-se dever do historiador refleti-lo de um ponto de vista acadêmico. Não estou aqui defendendo uma causa dogmática ou uma verdade absoluta, apenas debatendo para que a questão torne-se ainda mais alargada e quem sabe, seja objeto de pesquisas mais profundas e detalhadas.
Referências (para bibliografias detalhadas, consultar os links abaixo):
HOBSBAWN, Eric. Introdução: A invenção das Tradições. In: HOBSBAWN, Eric & RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
Símbolos vikings e umbandistas: cópia ou coincidência?, Blog do NEVE, 2017:
http://neve2012.blogspot.com/2017/10/simbolos-vikings-e-umbandistas-copia-ou.html
Símbolos vikings e umbandistas: cópia ou coincidência?, Livros Vikings, 2022: https://www.livrosvikings.com.br/post/simbolos-vikings-e-umbandistas-copia-ou-coincidencia
Similarities Between Icelandic Magic Staves and Umbanda Symbols, Arith Härger, 25 de agosto de 2021: https://www.youtube.com/watch?v=JGa-b1YgNi4