O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

domingo, 17 de maio de 2020

17 de Maio: o dia nacional da Noruega


Figura 1: Pessoas chegando para a festa pública do 17 de maio em Oslo, 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
















Andréa Caselli
Doutoranda em Ciências das Religiões pela UFPB/NEVE
adea.caselli@gmail.com

É primavera e tudo está florido: os acostamentos das estradas, os túmulos nos cemitérios, as praças e as frentes das casas que, além de muitas flores, exibem uma ou mais bandeiras hasteadas. Na madrugada em que não anoiteceu, é possível ouvir instrumentos musicais sendo afinados. Neste momento, poucos são os que dormem e os motivos para isso são muitos: a noite que não chegou porque o lindo sol não se pôs, o barulho dos últimos ensaios dos músicos em suas casas,  as zelosas mulheres que preparam os perfumados cafés da manhã compostos por champagne e bolos decorados, as crianças ansiosas por tudo o que viverão em algumas horas. Finalmente o sol chega no meio do céu e aos poucos as ruas vão sendo preenchidas por pessoas vestidas em suas melhores roupas, que lotam as paradas de trens, as avenidas, as calçadas e as barracas de comida. Uma multidão envolvida em aromas, cores, música e sorrisos.

A celebração do Dia da Constituição Norueguesa envolve ritos, símbolos, emblemas e diversos costumes tradicionais que - muito além de caracterizarem o sentimento nacionalista - envolvem também o folclore e a diversidade cultural dos processos de migração. Em idioma    norueguês, o Grunnlovsdag (Dia da Constituição), também é conhecido como Nasjonaldag (Dia Nacional) ou Syttende Mai (17 de Maio). No ano de 2019, participei do feriado e pude realizar uma pesquisa de campo através da vivência, que consistiu em uma observação participativa, sem questionários ou entrevistas, mas inserindo uma análise do comportamento dos envolvidos em seu ambiente real. Também foi realizada a coleta de dados referente ao evento e a interpretação deles.
Trata-se de uma comemoração nacionalista? Sim, mas o clima não-militarista e alegre aliado ao lugar especial das crianças torna a festa muito pouco polêmica atualmente. Um costume recente deste dia é que as pessoas vão às ruas apenas para comer uma enorme quantidade de sorvete e cachorro-quente, desfilar nas praças e avenidas com trajes folclóricos, participar de brincadeiras nas escolas locais e dançar em festas particulares à noite. Todavia, o devir histórico do 17 de maio apresenta conflitos étnicos e políticos que contribuíram para a tranquilidade coletiva nas comemorações mais recentes...
Como em outras celebrações nacionais, há o ritual como prática de um comportamento realizado de maneiras definidas. O hábito repetitivo, festivo e sazonal; tendo funções em práticas culturais estabelecias. Envolve ação e performance dos participantes. Para compreender um rito nacional como o 17 de maio, há de compreender que rituais e seus elementos são conservadores em sua essência, com mudanças lentas que, quando acontecem, a transição se desenvolve em uma comunicação que parte do núcleo do grupo para gradativamente atingir larga escala (Cf. Anderson, 1991). Nesse sentido, o rito do dia nacional oferece uma abordagem para entender a cultura. A contribuição social do ritual e a sua compreensão subjetiva podem ser encontrados nos níveis micro e macro, tendo significados individuais ou coletivos. Não é apenas um ato, mas também contém significado tanto para seus participantes quanto para seus espectadores.


Figura 02: Estandarte de escola no desfile infantil do 17 de maio em Oslo, 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

A democracia exige fronteiras e estas, por sua vez, precisam do Estado-nação. Quaisquer modos pelos quais as pessoas definam a própria identidade em relação ao lugar a que pertencem têm um papel a desempenhar na consolidação do sentido de nacionalidade. Compreendendo o nacionalismo como o pertencimento comunitário de lealdade e compromisso, não se pode esquecer que ele é compartilhado entre concidadãos para sustentar o estado de direito e as formas consensuais de política (Cf. Scruton, 2015). O comprometimento com o território, a história e os costumes nacionais levam a rituais que vinculam os vizinhos a um senso comum de lar, de lealdade compartilhada. O 17 de maio pode ser entendido também como um ritual de afirmação que diz respeito às tradições valorizadas que os noruegueses querem preservar.

Uma história vermelha, azul e branca

A primeira constituição norueguesa foi assinada em 17 de maio de 1814. Após esse dia, a Noruega deixou então de fazer parte da Dinamarca – mas ainda estava unida à Suécia, da qual se livrou apenas no séc. XX através de muitos acordos e perdas de territórios. A Noruega contemporânea é caracterizada por um nível elevado de bem-estar, igualdade de género e estabilidade económica. Como nação, as raízes da Noruega remontam ao século IX. O país conquistou a independência da Suécia em 1905 e desde então tem sido uma monarquia constitucional. A Constituição Norueguesa de 1814 é a segunda constituição escrita mais antiga do mundo que ainda está em uso.
Seguindo a história do 17 de maio, vê-se que a tradição da festa está em constante evolução: No começo, foram homens de camadas mais altas da sociedade elaboraram as propostas de independência e também da comemoração dela. No final do século XIX, o resto dos civis – incluindo as mulheres - entraram e as crianças receberam seus próprios desfiles. A participação das mulheres nas lideranças do evento foi marcada por anos de conflito entre partidos políticos. Porém tais divergências e proibições em relação à participação feminina foram amenizadas após a II Guerra Mundial, tanto porque a população masculina estava reduzida em toda a Europa, quanto porque após um longo período de ocupação nazista em terras norueguesas, todos os habitantes estavam ansiosos por poder celebrar novamente os seus símbolos nacionais como antes da Guerra, e não ao modo  Nacional-socialismo.  Nos últimos anos, os imigrantes viram sua marca no desfile nacional. O desfile público absorveu o desenvolvimento da sociedade e a passagem dele pela história pode ser interpretada como uma personificação simbólica do desenvolvimento da nação. Mas isso não apenas aumentou a evolução passiva, nem foi uma revolução (Brit Marie Hovland; Olaf Aagedal, 2001, p. 27-53).


Figura 03: Banda de escola tocando em frente ao Storting (prédio do Parlamento de Oslo), no 17 de maio de 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.


Durante o séc. XX, a imigração foi um tema de constante conflito e aprendizado constantemente refletido no dia nacional, que é também um momento de expressão política. Quando o Dia da Constituição foi declarado feriado oficial em 1947 na Noruega, o objetivo era que o desfile das crianças incluísse todas as crianças que frequentavam escolas norueguesas. Esse debate atingiu o auge em 1983, depois que a Escola Sagene sofreu ameaças raciais por incluir os imigrantes de segunda geração no desfile. A escolha da paquistanesa Rubina Rana, integrante do Partido Trabalhista, como líder do comitê de 17 de maio em Oslo, em 1999, contribuiu para simbolizar a participação dos imigrantes em um âmbito formalmente político (Høie, 2010, p. 07). Desde 2008, houve alguma controvérsia sobre a inclusão de outras bandeiras nacionais na celebração. Esses aspectos ilustram que o debate é histórico e atual.
A Noruega tem atualmente 14% de sua população constituída por imigrantes. A Noruega também tem várias minorias nacionais e, como resultado da globalização, tornou-se um país mais multicultural. Desde meados de 1990, o número de imigrantes dobrou no país, que passou a receber levas de trabalhadores da África, do Leste Europeu e da América Latina. A Somália está no topo do ranking de pedidos de asilo, seguido pelo Afeganistão, Eritréia, Irã e Iraque (Site da Embaixada Real da Noruega em Brasíllia, 2019). Os refugiados recebem apoio financeiro, treinamento profissional, orientação cultural e aulas de norueguês para sua inserção no mercado de trabalho. O mesmo não acontece com os imigrantes, que sob circunstâncias especiais recebem apenas as aulas de norueguês. Contudo, parece que as condições de vida compensam diante do que seus países de origem oferecem.


Figura 04: Norueguesas muçulmanas de famílias imigrantes participam do desfile público escolar no 17 de maio de 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Os noruegueses passam por um processo de adaptação devido a tantas pessoas de diferentes etnias e religiões participando do seu cotidiano, o que gera tanto reações de hospitalidade e acolhimento, como reações xenofóbicas. Tudo vem mudando depressa e o receio de que a “invasão” de novas culturas traga problemas à paz cotidiana está sendo usada politicamente, como acontece em outros ambiente e sociedades. Pelas leis eleitorais da Noruega, somente cidadãos noruegueses podem votar para o Parlamento, mas em pleitos locais todos os residentes legais têm direito a participar.
Na festa pública do dia 17 de maio, imigrantes e refugiados que habitam o país participam da festa com seus trajes religiosos, a exemplo dos muçulmanos, e também com os bunads, o traje folclórico norueguês. Muitas crianças muçulmanas participam do desfile das escolas com trajes muçulmanos, principalmente meninas que usam véu na cabeça. Os noruegueses são tolerantes e incentivam a liberdade de expressão para todos os participantes da festa, inclusive os turistas, estes que fazem questão de comprar um exemplar da bandeira norueguesa para aumentar o sentimento de participação no evento.
Percebe-se aqui um grande exemplo de cooperação internacional como espaço de desenvolvimento não só da administração pública, mas também do planejamento econômico que afeta a disseminação de conhecimentos científicos, tecnológicos e culturais. A celebração não incita, mas apresenta o ambiente propício à reflexão sobre identidades entre cidadãos nativos, cidadãos imigrantes, turistas e instituições. A cooperação internacional é um entre os muitos elementos que compõem o processo de imaginação da nação e administração das convivências entre etnias na Noruega, nos últimos 50 anos.
Já o desenvolvimento da cooperação norueguesa junto ao povo Sàmi desempenhou uma atividade estratégica quando colocou em diálogo as agendas internas do país relativas aos povos indígenas, aos imigrantes e aos refugiados políticos, e suas agendas externas, combinando as temáticas do desenvolvimento e dos direitos humanos de um modo bastante peculiar (Cf. Hoffmann, 2008). As condições históricas específicas da Noruega como um país sem passado colonialista, tendo sido ela própria subordinada politicamente e com a população Sàmi, que obteve  status de povo indígena na década de 1970;  tiveram consequências importantes para a atuação do país sobre a construção dos mecanismos internacionais de reconhecimento e defesa dos direitos humanos e, portanto, para a afirmação de identidades étnicas dentro de outros países.
A cooperação internacional de tradição humanitária norueguesa junto aos povos nativos mostrou-se um terreno fértil para a observação de fenômenos simultâneos de formação o Estado e construção da nação, associando-se, como vimos analisando ao longo dos capítulos anteriores, às lutas políticas dos Sàmi para adquirir um estatuto próprio dentro do Estado norueguês, à expansão missionária dentro e fora da Noruega, e ao processo imigratório de refugiados no país. Sendo assim, o sucesso da missão internacional é comprovado em desfiles e festas públicas do 17 de maio, quando celebram todos os grupos étnicos, sem distinção, o dia nacional.


Figura 05: Família norueguesa participa da celebração pública com os trajes folclóricos, bunads, ao lado de turistas. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Os modernistas ou construtivistas enfatizam que símbolo, ritual e mitos são construídos por uma elite, enquanto os etnicistas acrescentam maior ênfase na continuidade do período pré-nacional e para ele era nacional moderna. O 17 de maio apresenta expressões da imaginação histórica manifestadas no contexto de orgulho nacional contemporâneo que evoluiu a partir do nacionalismo oitocentista discutido por Stephen Bann (1994, p. 20) acerca das invenções da história na Europa a partir do séc. XIX. A história, como uma presença que emerge a partir de uma infinidade de campos (pintura, literatura, museus, música, etc.), edifica um modelo integrado de representação histórica. Nesta trajetória, revelou-se tanto a fertilidade imaginativa quanto o investimento crescente de instituições, grupos e indivíduos na manutenção das tradições. Os símbolos e a celebração do 17 de maio foram constituídos em representações de longa durabilidade com preceitos e formatos etnocêntricos, explícitos ou não, revistos e atenuados com o tempo.
Em outras palavras, neste artigo busco acompanhar os meandros da invenção de uma tradição nacional, compreendendo-a não como uma espécie de falsa consciência, destinada a servir a propósitos estritamente funcionais ou ideológicos; mas como expressão de um imaginário, ele mesmo histórico. Nesse sentido, é importante analisar a questão apontada pelo historiador Stephen Bann, que não considera apropriada a ideia de que a história, tal como defendem Hobsbawn e Ranger, desmistifica as tradições, incorporando uma espécie de falsa consciência. Em sua opinião, a história seria o modo pelo qual uma cultura lida com seu próprio passado. Dessa forma, a compreensão histórica é uma empreitada cultural vital e a imaginação histórica uma importante faculdade humana que deveria enfatizar o fazer e não a busca de uma narrativa distorcida já que qualquer narrativa é uma invenção retórica e a invenção de histórias seria a parte mais importante da autocompreensão e da autocriação humana (Bann, 1994, p.23).
Nos dias atuais, o 17 de maio norueguês se destaca como a celebração nacional escandinava com a mais ampla participação popular. O simbolismo e o ritual dessa janela de exibição pode, portanto, ser uma realização da discussão da relação entre as tradições dos países destinatários, envolvendo os valores e estratégias dos imigrantes no processo de integração. Os últimos dias nacionais mostram que através do conflito simbólico nacional, o desfile de tem mudado constantemente o segmento das pessoas participantes. A entrada do imigrante é a mais recente expansão de símbolo. Os imigrantes agora são destacados como o símbolo de uma época em que a nação norueguesa é democrática e inclusiva.


Figura 06: Ao fim do desfile público, as famílias se confraternizam comendo cachorro-quente e sorvete (as comidas típicas deste dia) nas calçadas de Oslo Fonte: Arquivo pessoal da autora.

No que diz respeito à bandeira da Noruega, o empresário e membro da Assembléia Constitucional, Fredrik Meltzer, projetou, em 1821, a bandeira moderna da Noruega para substituir as bandeiras dinamarquesas e suecas modificadas em uso. Ele escolheu usar uma cruz nórdica para refletir os laços estreitos da Noruega com a Suécia e a Dinamarca; elegendo as cores vermelho, branco e azul para simbolizar os ideais liberais associados a países ocidentais democráticos. Foi a bandeira que venceu uma votação da Assembleia, dentre vários modelos desenhados por outros políticos. Porém, nos períodos de expansionistas medievais, o território norueguês foi representado, vez por outra, por estandartes de reis e guerreiros com os seguintes símbolos: serpente; leão dourado e coroado com machado de prata; corvo (Store Norske Leksikon, 2020)  O símbolo do leão teve mais prestígio e permanece na contemporaneidade como componente da bandeira real que é constituída de fundo vermelho com o leão dourado e coroado ao centro, em posição de perfil direcionado para a esquerda, em posição ereta, segurando o machado de prata.

A tradição dos bunads
A ocasião do 17 de maio é um pretexto para as pessoas exibirem seus bunads, os trajes tradicionais e folclóricos da Noruega que são usados em danças folclóricas ou grandes festas, como o Dia Nacional, casamentos, batismos, crismas e Natal. Existem centenas de variações desses trajes, com cores e estilos que indicam as origens ancestrais daqueles que os vestem. Tradicionalmente, cada bordado determina as características de um ramo familiar ancestral, que atualmente é reconhecido e preservado pelas regiões dos municípios. Os designs variam enormemente entre as regiões. Uma função principal do bunad de uma pessoa é servir como reconhecimento público e homenagem à sua erança norueguesa em geral e à sua cidade ou região da Noruega em particular. Contudo, existem bunads a serem vendidos em lojas com bordados de efeito estético apenas.


Figura 07: Detalhes de bunad de uma professora participante do desfile público, com bordados e peças em prata. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

A preparação para o grande dia já começa meses antes, com ensaios das bandas que irão participar da marcha, com a (s) festa (s) que marcarão este dia, e claro, o bunad, que é o traje tradicional norueguês, deve ser tirado do armário para ser finalmente usado. Existe bunad para homem e para mulher, são feitos geralmente de lã e eles variam de modelo de acordo com a região do país. O feminino é um vestido longo levemente rodado, relativamente simples, mas que varia bastante entre cores e bordados, mas todos têm alguma aplicação de metal, quase sempre de prata. Os bunads atuais não apresentam a estética camponesa de séculos passados, mas recebem inspiração desta. O traje que é vestido no 17 de maio tem criação no início do séc. XX, por entusiastas do folclore nacional. (Fossnes, 1993)
A prata é o metal mais usado no país devido ao grande comércio Sàmi de prata e suas técnicas de joalheria.  Ele é não raro feito pela mãe, e dado à filha sempre na 1ª comunhão dela, na religião luterana, que durante alguns séculos foi a religião oficial do país. Para os meninos, o uso do bunad varia bastante. Um bunad atualmente comprado em loja custa muito caro, devido à sua manufatura: em média 20.000 NOK (coroa norueguesa), ou 8.000 reais.


Figuras 08 e 09: Dois exemplos de adornos de cabeça diferentes para os bunads. Cada um representa regiões diferentes da Noruega. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Considerações sobre a observação de campo

Foi estudada uma amostra representativa da festa da independência norueguesa, na cidade de Oslo, uma vez que a totalidade do evento não pôde ser abordada pelo fato de ser uma celebração nacional que acontece em todas as cidades do país ao mesmo tempo. Uma observação direta, mas também participativa, pois participei da festa e consumi os mesmos elementos culturais que os celebrantes como alimentos, bebidas, músicas e ambiente.
Em relação à diversidade religiosa bastante perceptível no evento, me baseio na fala de Silas Gerriero que expressa a importância para a antropologia da religião dos significados subjacentes aos sistemas de crenças religiosas e a preocupação com os hábitos, práticas e costumes desses mesmos grupos advindos desses sistemas (Guerriero, 2013, p. 06). Sendo assim, foi possível observar a interação, o diálogo e a preocupação de manter harmoniosamente a liberdade de expressão em uma sociedade marcada por múltiplas crenças (a exemplo do islamismo, do luteranismo, do catolicismo e das diversas formas de paganismo existentes atualmente na Noruega) que convivem entre si. E, mais do que isso, foi possível presenciar a forma como a sociedade norueguesa quer ser percebida pelo mundo através de sua auto exposição na sua celebração nacionalista, envolvendo seu modo de lidar com as religiões.


Figura 10: Vista do desfile na principal avenida de Oslo, a Karl Johans, em 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

A justaposição da base constitucional e do processo popularmente mobilizado pode ser a principal explicação para a inclusão e, portanto, o poder atualizador da paisagem de símbolos nacionais noruegueses que faltam a muitos outros rituais nacionais. Querer que a celebração de 17 de maio sobreviva é querer mantê-la como significativa e motivadora de amplos sentidos que podem ser constantemente transformados, caso necessário. É uma data que vai de acordo com seu tempo e mantém vínculo com os relacionamentos deste. É o dia das crianças que desfilam e aprendem a importância da tradição e de honrar a própria cultura, mas também é o dia dos adultos que percebem suas próprias falhas inseridas nesta mesma tradução e buscam melhorá-la, ansiando bem-estar e boa convivência.
O 17 de maio, como parte da experiência de infância dos noruegueses, agitando bandeiras, andando em trens, comendo salsichas e sorvetes, vestidos em suas melhores roupas, juntando-se aos brinquedos à festa do pátio da escola, faz parte da socialização. É uma experiência recorrente que reflete algo duradouro em um mundo turbulento. O ritual reflete as mudanças na própria vida. Como uma criança pequena nos ombros do pai sob o raro e precioso sol primaveril, uma criança em idade escolar no desfile marcial da escola como um músico de banda, como um russ (estudante que está terminando o ensino médio), poderá haver uma interrupção no engajamento ativo até que o cidadão tenha seus próprios filhos nos ombros. E todas as fases são imortalizadas em fotos ou vídeos. As memórias particulares são tecidas em uma memória coletiva que a maioria dos noruegueses compartilha.
Os russ têm desfiles próprios, com ônibus, vans e sistemas de som sofisticados e barulhentos. É costume que durante o dia as pessoas peçam a eles o russekort, o cartão de visita contendo informações pessoais e algumas piadas; pois a saída da escola para esses jovens significa a inserção direta no mercado de trabalho, visto que na Noruega não há a cultura da formação universitária como preparação para exercer uma profissão. Os usos e costumes noruegueses incentivam a dignidade do trabalho remunerado desde muito cedo na vida dos cidadãos e grande parte dos russ já exercem alguma profissão antes da formatura.
A população de imigrantes da cidade está muito presente. Crianças de origem asiática e africana compõem um elemento grande e visível no desfile infantil, imigrantes adultos ficam ao longo da rota do desfile na avenida Karl Johan e no palácio real, sendo que as famílias imigrantes também participam dos eventos do pátio da escola. Organizar desfiles infantis e atribuir às escolas a responsabilidade de recrutá-los e organizá-los garante a continuidade do evento de maneira engenhosa. Primeiro, geração após geração é introduzida na parte formalizada do ritual. Muitos começam no jardim de infância. Todos os momentos do desfile, cantando, tocando e acenando com bandeiras e abas, provocadas pelas crianças tão pequenas, faz parte da socialização norueguesa. É também o que se poderia chamar, na antropologia, de nacionalização de vida emocional. Como grande parte disso se torna experiências incorporadas desde a primeira infância, os alunos noruegueses recebem um conjunto de referências que podem ser ressuscitadas posteriormente.


Figura 11: Um dos principais edifícios da avenida Karl Johans, decorado para o 17 de maio, em 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

A celebração do dia 17 de maio, como ritual nacional, é relativamente flexível, atraente e capaz de abrigar uma grande parte da população. Tem a ver com o modelo organizacional. Não é dirigido de cima, mas sim governado pela sociedade civil. Isso confere ao ritual legitimidade e flexibilidade - uma grande sensibilidade à mudança interior. Ao mesmo tempo, é resistente à pressão externa. Quando as crianças de famílias imigrantes são deliberadamente colocados em primeiro lugar nos desfiles escolares, isso tem a ver com a realidade da escola ou da comunidade escolar. Quando uma escola mostra uma composição multicultural de estudantes, tem a opção de liquidar participação ou incluir os filhos de imigrantes. Somente assim a comunidade interna da escola pode ser preservada.
Há que se perceber que uma celebração de independência acabou por se transformar em uma festa multicultural que envolve emigrantes e imigrantes. De emigrantes nos países em que o 17 de maio é comemorado por noruegueses e seus decndentes. De imigrantes, na Noruega, por indivíduos que foram acolhidos e asilados no país. Seria a globalização do nacionalismo?

Referências bibliográficas

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BANN, Stephen. As invenções da história: ensaios sobre a representação do passado. Tradução de Flávia Villas-Boas. São Paulo: UNESP, 1994.

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GUERRIERO, Silas. Antropologia da Religião. In: PASSOS, João Décio. USARSKI, Frank. Compêndio de Ciências da Religião. São Paulo: Paulinas, Paulus, 2013, p. 243-256.

HOFFMANN, Maria Barroso. Fronteiras étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação: um estudo sobre a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas. 2008. 344 p. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro , 2008.


HØIE, Siri. Everyone is Norwegian on the Seventeenth of May: The Celebration of May 17th in Seattle 1945-2009. 2010. 131 p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Oslo, 2010.

SCRUTON, Roger. Como ser um conservador. Rio de Janeiro: Record, 2015. P. 63-68.


Site da Embaixada Real da Noruega em Brasília: < https://www.norway.no/pt/brasil/> Acessado em 09 de junho de 2019.

Store Norske Leksikon, norges flagg: <https://snl.no/.search?query=norge+flagg.>  Acessado em 10 de maio de 2020.