Figura 1: Pessoas chegando para a festa pública do 17 de maio em Oslo, 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Andréa Caselli
Doutoranda em Ciências das Religiões pela UFPB/NEVE
adea.caselli@gmail.com
É primavera e tudo está florido: os
acostamentos das estradas, os túmulos nos cemitérios, as praças e as frentes
das casas que, além de muitas flores, exibem uma ou mais bandeiras hasteadas.
Na madrugada em que não anoiteceu, é possível ouvir instrumentos musicais sendo
afinados. Neste momento, poucos são os que dormem e os motivos para isso são
muitos: a noite que não chegou porque o lindo sol não se pôs, o barulho dos
últimos ensaios dos músicos em suas casas,
as zelosas mulheres que preparam os perfumados cafés da manhã compostos
por champagne e bolos decorados, as crianças ansiosas por tudo o que viverão em
algumas horas. Finalmente o sol chega no meio do céu e aos poucos as ruas vão
sendo preenchidas por pessoas vestidas em suas melhores roupas, que lotam as
paradas de trens, as avenidas, as calçadas e as barracas de comida. Uma
multidão envolvida em aromas, cores, música e sorrisos.
A celebração do Dia da Constituição
Norueguesa envolve ritos, símbolos, emblemas e diversos costumes tradicionais
que - muito além de caracterizarem o sentimento nacionalista - envolvem também
o folclore e a diversidade cultural dos processos de migração. Em idioma norueguês, o Grunnlovsdag (Dia da
Constituição), também é conhecido como Nasjonaldag (Dia Nacional) ou Syttende
Mai (17 de Maio). No ano de 2019, participei do feriado e pude realizar uma
pesquisa de campo através da vivência, que consistiu em uma observação
participativa, sem questionários ou entrevistas, mas inserindo uma análise do
comportamento dos envolvidos em seu ambiente real. Também foi realizada a
coleta de dados referente ao evento e a interpretação deles.
Trata-se de uma comemoração
nacionalista? Sim, mas o clima não-militarista e alegre aliado ao lugar
especial das crianças torna a festa muito pouco polêmica atualmente. Um costume
recente deste dia é que as pessoas vão às ruas apenas para comer uma enorme
quantidade de sorvete e cachorro-quente, desfilar nas praças e avenidas com
trajes folclóricos, participar de brincadeiras nas escolas locais e dançar em
festas particulares à noite. Todavia, o devir histórico do 17 de maio apresenta
conflitos étnicos e políticos que contribuíram para a tranquilidade coletiva
nas comemorações mais recentes...
Como
em outras celebrações nacionais, há o ritual como prática de um comportamento
realizado de maneiras definidas. O hábito repetitivo, festivo e sazonal; tendo
funções em práticas culturais estabelecias. Envolve ação e performance dos
participantes. Para compreender um rito nacional como o 17 de maio, há de
compreender que rituais e seus elementos são conservadores em sua essência, com
mudanças lentas que, quando acontecem, a transição se desenvolve em uma
comunicação que parte do núcleo do grupo para gradativamente atingir larga
escala (Cf. Anderson, 1991). Nesse sentido, o rito do dia nacional oferece uma
abordagem para entender a cultura. A contribuição social do ritual e a sua compreensão
subjetiva podem ser encontrados nos níveis micro e macro, tendo significados
individuais ou coletivos. Não é apenas um ato, mas também contém significado
tanto para seus participantes quanto para seus espectadores.
Figura 02: Estandarte de
escola no desfile infantil do 17 de maio em Oslo, 2019. Fonte: Arquivo pessoal
da autora.
A
democracia exige fronteiras e estas, por sua vez, precisam do Estado-nação.
Quaisquer modos pelos quais as pessoas definam a própria identidade em relação
ao lugar a que pertencem têm um papel a desempenhar na consolidação do sentido
de nacionalidade. Compreendendo o nacionalismo como o pertencimento comunitário
de lealdade e compromisso, não se pode esquecer que ele é compartilhado entre
concidadãos para sustentar o estado de direito e as formas consensuais de
política (Cf. Scruton, 2015). O comprometimento com o território, a história e
os costumes nacionais levam a rituais que vinculam os vizinhos a um senso comum
de lar, de lealdade compartilhada. O 17 de maio pode ser entendido também como
um ritual de afirmação que diz respeito às tradições valorizadas que os
noruegueses querem preservar.
Uma história vermelha, azul e branca
A primeira constituição norueguesa foi
assinada em 17 de maio de 1814. Após esse dia, a Noruega deixou então de fazer
parte da Dinamarca – mas ainda estava unida à Suécia, da qual se livrou apenas
no séc. XX através de muitos acordos e perdas de territórios. A Noruega
contemporânea é caracterizada por um nível elevado de bem-estar, igualdade de
género e estabilidade económica. Como nação, as raízes da Noruega remontam ao
século IX. O país conquistou a independência da Suécia em 1905 e desde então
tem sido uma monarquia constitucional. A Constituição Norueguesa de 1814 é a
segunda constituição escrita mais antiga do mundo que ainda está em uso.
Seguindo a história do 17 de maio,
vê-se que a tradição da festa está em constante evolução: No começo, foram
homens de camadas mais altas da sociedade elaboraram as propostas de
independência e também da comemoração dela. No final do século XIX, o resto dos
civis – incluindo as mulheres - entraram e as crianças receberam seus próprios
desfiles. A participação das mulheres nas lideranças do evento foi marcada por
anos de conflito entre partidos políticos. Porém tais divergências e proibições
em relação à participação feminina foram amenizadas após a II Guerra Mundial, tanto
porque a população masculina estava reduzida em toda a Europa, quanto porque
após um longo período de ocupação nazista em terras norueguesas, todos os
habitantes estavam ansiosos por poder celebrar novamente os seus símbolos
nacionais como antes da Guerra, e não ao modo
Nacional-socialismo. Nos últimos
anos, os imigrantes viram sua marca no desfile nacional. O desfile público
absorveu o desenvolvimento da sociedade e a passagem dele pela história pode
ser interpretada como uma personificação simbólica do desenvolvimento da nação.
Mas isso não apenas aumentou a evolução passiva, nem foi uma revolução (Brit
Marie Hovland; Olaf Aagedal, 2001, p. 27-53).
Durante o séc. XX, a imigração foi um
tema de constante conflito e aprendizado constantemente refletido no dia
nacional, que é também um momento de expressão política. Quando o Dia da
Constituição foi declarado feriado oficial em 1947 na Noruega, o objetivo era
que o desfile das crianças incluísse todas as crianças que frequentavam escolas
norueguesas. Esse debate atingiu o auge em 1983, depois que a Escola Sagene
sofreu ameaças raciais por incluir os imigrantes de segunda geração no desfile.
A escolha da paquistanesa Rubina Rana, integrante do Partido Trabalhista, como
líder do comitê de 17 de maio em Oslo, em 1999, contribuiu para simbolizar a
participação dos imigrantes em um âmbito formalmente político (Høie, 2010, p.
07). Desde 2008, houve alguma controvérsia sobre a inclusão de outras bandeiras
nacionais na celebração. Esses aspectos ilustram que o debate é histórico e
atual.
A Noruega tem atualmente 14% de sua
população constituída por imigrantes. A Noruega também tem várias minorias
nacionais e, como resultado da globalização, tornou-se um país mais
multicultural. Desde meados de 1990, o número de imigrantes dobrou no país, que
passou a receber levas de trabalhadores da África, do Leste Europeu e da
América Latina. A Somália está no topo do ranking de pedidos de asilo, seguido
pelo Afeganistão, Eritréia, Irã e Iraque (Site da Embaixada Real da Noruega em
Brasíllia, 2019). Os refugiados recebem apoio financeiro, treinamento
profissional, orientação cultural e aulas de norueguês para sua inserção no
mercado de trabalho. O mesmo não acontece com os imigrantes, que sob
circunstâncias especiais recebem apenas as aulas de norueguês. Contudo, parece
que as condições de vida compensam diante do que seus países de origem oferecem.
Figura 04: Norueguesas
muçulmanas de famílias imigrantes participam do desfile público escolar no 17
de maio de 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Os noruegueses passam por um processo
de adaptação devido a tantas pessoas de diferentes etnias e religiões
participando do seu cotidiano, o que gera tanto reações de hospitalidade e
acolhimento, como reações xenofóbicas. Tudo vem mudando depressa e o receio de
que a “invasão” de novas culturas traga problemas à paz cotidiana está sendo
usada politicamente, como acontece em outros ambiente e sociedades. Pelas leis
eleitorais da Noruega, somente cidadãos noruegueses podem votar para o
Parlamento, mas em pleitos locais todos os residentes legais têm direito a
participar.
Na festa pública do dia 17 de maio,
imigrantes e refugiados que habitam o país participam da festa com seus trajes
religiosos, a exemplo dos muçulmanos, e também com os bunads, o traje folclórico
norueguês. Muitas crianças muçulmanas participam do desfile das escolas com
trajes muçulmanos, principalmente meninas que usam véu na cabeça. Os
noruegueses são tolerantes e incentivam a liberdade de expressão para todos os
participantes da festa, inclusive os turistas, estes que fazem questão de
comprar um exemplar da bandeira norueguesa para aumentar o sentimento de
participação no evento.
Percebe-se aqui um grande exemplo de
cooperação internacional como espaço de desenvolvimento não só da administração
pública, mas também do planejamento econômico que afeta a disseminação de
conhecimentos científicos, tecnológicos e culturais. A celebração não incita,
mas apresenta o ambiente propício à reflexão sobre identidades entre cidadãos
nativos, cidadãos imigrantes, turistas e instituições. A cooperação
internacional é um entre os muitos elementos que compõem o processo de
imaginação da nação e administração das convivências entre etnias na Noruega,
nos últimos 50 anos.
Já o desenvolvimento da cooperação
norueguesa junto ao povo Sàmi desempenhou uma atividade estratégica quando
colocou em diálogo as agendas internas do país relativas aos povos indígenas, aos
imigrantes e aos refugiados políticos, e suas agendas externas, combinando as temáticas
do desenvolvimento e dos direitos humanos de um modo bastante peculiar (Cf.
Hoffmann, 2008). As condições históricas específicas da Noruega como um país
sem passado colonialista, tendo sido ela própria subordinada politicamente e
com a população Sàmi, que obteve status
de povo indígena na década de 1970;
tiveram consequências importantes para a atuação do país sobre a
construção dos mecanismos internacionais de reconhecimento e defesa dos
direitos humanos e, portanto, para a afirmação de identidades étnicas dentro de
outros países.
A cooperação internacional de tradição
humanitária norueguesa junto aos povos nativos mostrou-se um terreno fértil
para a observação de fenômenos simultâneos de formação o Estado e construção da
nação, associando-se, como vimos analisando ao longo dos capítulos anteriores,
às lutas políticas dos Sàmi para adquirir um estatuto próprio dentro do Estado
norueguês, à expansão missionária dentro e fora da Noruega, e ao processo
imigratório de refugiados no país. Sendo assim, o sucesso da missão
internacional é comprovado em desfiles e festas públicas do 17 de maio, quando
celebram todos os grupos étnicos, sem distinção, o dia nacional.
Figura 05: Família
norueguesa participa da celebração pública com os trajes folclóricos, bunads,
ao lado de turistas. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Os modernistas ou construtivistas
enfatizam que símbolo, ritual e mitos são construídos por uma elite, enquanto
os etnicistas acrescentam maior ênfase na continuidade do período pré-nacional
e para ele era nacional moderna. O 17 de maio apresenta expressões da
imaginação histórica manifestadas no contexto de orgulho nacional contemporâneo
que evoluiu a partir do nacionalismo oitocentista discutido por Stephen Bann
(1994, p. 20) acerca das invenções da história na Europa a partir do séc. XIX.
A história, como uma presença que emerge a partir de uma infinidade de campos
(pintura, literatura, museus, música, etc.), edifica um modelo integrado de
representação histórica. Nesta trajetória, revelou-se tanto a fertilidade
imaginativa quanto o investimento crescente de instituições, grupos e
indivíduos na manutenção das tradições. Os símbolos e a celebração do 17 de
maio foram constituídos em representações de longa durabilidade com preceitos e
formatos etnocêntricos, explícitos ou não, revistos e atenuados com o tempo.
Em outras palavras, neste artigo busco
acompanhar os meandros da invenção de uma tradição nacional, compreendendo-a não
como uma espécie de falsa consciência, destinada a servir a propósitos
estritamente funcionais ou ideológicos; mas como expressão de um imaginário,
ele mesmo histórico. Nesse sentido, é importante analisar a questão apontada
pelo historiador Stephen Bann, que não considera apropriada a ideia de que a
história, tal como defendem Hobsbawn e Ranger, desmistifica as tradições,
incorporando uma espécie de falsa consciência. Em sua opinião, a história seria
o modo pelo qual uma cultura lida com seu próprio passado. Dessa forma, a
compreensão histórica é uma empreitada cultural vital e a imaginação histórica
uma importante faculdade humana que deveria enfatizar o fazer e não a busca de
uma narrativa distorcida já que qualquer narrativa é uma invenção retórica e a
invenção de histórias seria a parte mais importante da autocompreensão e da
autocriação humana (Bann, 1994, p.23).
Nos dias atuais, o 17 de maio norueguês
se destaca como a celebração nacional escandinava com a mais ampla participação
popular. O simbolismo e o ritual dessa janela de exibição pode, portanto, ser
uma realização da discussão da relação entre as tradições dos países
destinatários, envolvendo os valores e estratégias dos imigrantes no processo
de integração. Os últimos dias nacionais mostram que através do conflito
simbólico nacional, o desfile de tem mudado constantemente o segmento das
pessoas participantes. A entrada do imigrante é a mais recente expansão de
símbolo. Os imigrantes agora são destacados como o símbolo de uma época em que
a nação norueguesa é democrática e inclusiva.
Figura 06: Ao fim do
desfile público, as famílias se confraternizam comendo cachorro-quente e
sorvete (as comidas típicas deste dia) nas calçadas de Oslo Fonte: Arquivo
pessoal da autora.
No que diz respeito à bandeira da
Noruega, o empresário e membro da Assembléia Constitucional, Fredrik Meltzer, projetou,
em 1821, a bandeira moderna da Noruega para substituir as bandeiras
dinamarquesas e suecas modificadas em uso. Ele escolheu usar uma cruz nórdica
para refletir os laços estreitos da Noruega com a Suécia e a Dinamarca;
elegendo as cores vermelho, branco e azul para simbolizar os ideais liberais
associados a países ocidentais democráticos. Foi a bandeira que venceu uma
votação da Assembleia, dentre vários modelos desenhados por outros políticos.
Porém, nos períodos de expansionistas medievais, o território norueguês foi
representado, vez por outra, por estandartes de reis e guerreiros com os
seguintes símbolos: serpente; leão dourado e coroado com machado de prata;
corvo (Store Norske Leksikon, 2020) O
símbolo do leão teve mais prestígio e permanece na contemporaneidade como
componente da bandeira real que é constituída de fundo vermelho com o leão
dourado e coroado ao centro, em posição de perfil direcionado para a esquerda,
em posição ereta, segurando o machado de prata.
A tradição dos bunads
A ocasião do 17 de maio é um pretexto
para as pessoas exibirem seus bunads, os trajes tradicionais e folclóricos da
Noruega que são usados em danças folclóricas ou grandes festas, como o Dia
Nacional, casamentos, batismos, crismas e Natal. Existem centenas de variações
desses trajes, com cores e estilos que indicam as origens ancestrais daqueles
que os vestem. Tradicionalmente, cada bordado determina as características de
um ramo familiar ancestral, que atualmente é reconhecido e preservado pelas
regiões dos municípios. Os designs variam enormemente entre as regiões. Uma
função principal do bunad de uma pessoa é servir como reconhecimento público e
homenagem à sua erança norueguesa em geral e à sua cidade ou região da Noruega
em particular. Contudo, existem bunads a serem vendidos em lojas com bordados
de efeito estético apenas.
Figura
07: Detalhes de bunad de uma professora participante do desfile público, com
bordados e peças em prata. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
A preparação para o grande dia já
começa meses antes, com ensaios das bandas que irão participar da marcha, com a
(s) festa (s) que marcarão este dia, e claro, o bunad, que é o traje
tradicional norueguês, deve ser tirado do armário para ser finalmente usado.
Existe bunad para homem e para mulher, são feitos geralmente de lã e eles
variam de modelo de acordo com a região do país. O feminino é um vestido longo
levemente rodado, relativamente simples, mas que varia bastante entre cores e
bordados, mas todos têm alguma aplicação de metal, quase sempre de prata. Os
bunads atuais não apresentam a estética camponesa de séculos passados, mas
recebem inspiração desta. O traje que é vestido no 17 de maio tem criação no
início do séc. XX, por entusiastas do folclore nacional. (Fossnes, 1993)
A prata é o metal mais usado no país
devido ao grande comércio Sàmi de prata e suas técnicas de joalheria. Ele é não raro feito pela mãe, e dado à filha
sempre na 1ª comunhão dela, na religião luterana, que durante alguns séculos foi
a religião oficial do país. Para os meninos, o uso do bunad varia bastante. Um
bunad atualmente comprado em loja custa muito caro, devido à sua manufatura: em
média 20.000 NOK (coroa norueguesa), ou 8.000 reais.
Figuras 08 e 09: Dois
exemplos de adornos de cabeça diferentes para os bunads. Cada um representa
regiões diferentes da Noruega. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Considerações sobre a observação de
campo
Foi estudada uma amostra representativa
da festa da independência norueguesa, na cidade de Oslo, uma vez que a
totalidade do evento não pôde ser abordada pelo fato de ser uma celebração
nacional que acontece em todas as cidades do país ao mesmo tempo. Uma observação
direta, mas também participativa, pois participei da festa e consumi os mesmos
elementos culturais que os celebrantes como alimentos, bebidas, músicas e
ambiente.
Em relação à diversidade religiosa
bastante perceptível no evento, me baseio na fala de Silas Gerriero que
expressa a importância para a antropologia da religião dos significados
subjacentes aos sistemas de crenças religiosas e a preocupação com os hábitos,
práticas e costumes desses mesmos grupos advindos desses sistemas (Guerriero, 2013,
p. 06). Sendo assim, foi possível observar a interação, o diálogo e a
preocupação de manter harmoniosamente a liberdade de expressão em uma sociedade
marcada por múltiplas crenças (a exemplo do islamismo, do luteranismo, do
catolicismo e das diversas formas de paganismo existentes atualmente na
Noruega) que convivem entre si. E, mais do que isso, foi possível presenciar a
forma como a sociedade norueguesa quer ser percebida pelo mundo através de sua auto
exposição na sua celebração nacionalista, envolvendo seu modo de lidar com as
religiões.
Figura 10: Vista do
desfile na principal avenida de Oslo, a Karl Johans, em 2019. Fonte: Arquivo
pessoal da autora.
A justaposição da base constitucional e
do processo popularmente mobilizado pode ser a principal explicação para a
inclusão e, portanto, o poder atualizador da paisagem de símbolos nacionais
noruegueses que faltam a muitos outros rituais nacionais. Querer que a
celebração de 17 de maio sobreviva é querer mantê-la como significativa e motivadora
de amplos sentidos que podem ser constantemente transformados, caso necessário.
É uma data que vai de acordo com seu tempo e mantém vínculo com os
relacionamentos deste. É o dia das crianças que desfilam e aprendem a
importância da tradição e de honrar a própria cultura, mas também é o dia dos
adultos que percebem suas próprias falhas inseridas nesta mesma tradução e
buscam melhorá-la, ansiando bem-estar e boa convivência.
O 17 de maio, como parte da experiência
de infância dos noruegueses, agitando bandeiras, andando em trens, comendo
salsichas e sorvetes, vestidos em suas melhores roupas, juntando-se aos
brinquedos à festa do pátio da escola, faz parte da socialização. É uma
experiência recorrente que reflete algo duradouro em um mundo turbulento. O
ritual reflete as mudanças na própria vida. Como uma criança pequena nos ombros
do pai sob o raro e precioso sol primaveril, uma criança em idade escolar no desfile
marcial da escola como um músico de banda, como um russ (estudante que
está terminando o ensino médio), poderá haver uma interrupção no engajamento
ativo até que o cidadão tenha seus próprios filhos nos ombros. E todas as fases
são imortalizadas em fotos ou vídeos. As memórias particulares são tecidas em
uma memória coletiva que a maioria dos noruegueses compartilha.
Os russ têm desfiles próprios,
com ônibus, vans e sistemas de som sofisticados e barulhentos. É costume que
durante o dia as pessoas peçam a eles o russekort, o cartão de visita
contendo informações pessoais e algumas piadas; pois a saída da escola para
esses jovens significa a inserção direta no mercado de trabalho, visto que na
Noruega não há a cultura da formação universitária como preparação para exercer
uma profissão. Os usos e costumes noruegueses incentivam a dignidade do
trabalho remunerado desde muito cedo na vida dos cidadãos e grande parte dos
russ já exercem alguma profissão antes da formatura.
A população de imigrantes da cidade
está muito presente. Crianças de origem asiática e africana compõem um elemento
grande e visível no desfile infantil, imigrantes adultos ficam ao longo da rota
do desfile na avenida Karl Johan e no palácio real, sendo que as famílias
imigrantes também participam dos eventos do pátio da escola. Organizar desfiles
infantis e atribuir às escolas a responsabilidade de recrutá-los e organizá-los
garante a continuidade do evento de maneira engenhosa. Primeiro, geração após
geração é introduzida na parte formalizada do ritual. Muitos começam no jardim
de infância. Todos os momentos do desfile, cantando, tocando e acenando com
bandeiras e abas, provocadas pelas crianças tão pequenas, faz parte da
socialização norueguesa. É também o que se poderia chamar, na antropologia, de
nacionalização de vida emocional. Como grande parte disso se torna experiências
incorporadas desde a primeira infância, os alunos noruegueses recebem um
conjunto de referências que podem ser ressuscitadas posteriormente.
Figura 11: Um dos
principais edifícios da avenida Karl Johans, decorado para o 17 de maio, em
2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
A celebração do dia 17 de maio, como
ritual nacional, é relativamente flexível, atraente e capaz de abrigar uma
grande parte da população. Tem a ver com o modelo organizacional. Não é
dirigido de cima, mas sim governado pela sociedade civil. Isso confere ao
ritual legitimidade e flexibilidade - uma grande sensibilidade à mudança
interior. Ao mesmo tempo, é resistente à pressão externa. Quando as crianças de
famílias imigrantes são deliberadamente colocados em primeiro lugar nos
desfiles escolares, isso tem a ver com a realidade da escola ou da comunidade
escolar. Quando uma escola mostra uma composição multicultural de estudantes,
tem a opção de liquidar participação ou incluir os filhos de imigrantes.
Somente assim a comunidade interna da escola pode ser preservada.
Há que se perceber que uma celebração
de independência acabou por se transformar em uma festa multicultural que
envolve emigrantes e imigrantes. De emigrantes nos países em que o 17 de maio é
comemorado por noruegueses e seus decndentes. De imigrantes, na Noruega, por
indivíduos que foram acolhidos e asilados no país. Seria a globalização do
nacionalismo?
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