Julbocken, John Bauer (1912)
O
Bode de Natal na Tradição Folclórica Escandinava
Pablo
Gomes de Miranda
Doutorando
em Ciências das Religiões pela UFPB
Membro
do NEVE
Em 2014, na ocasião do II Colóquio
de Estudos Vikings e Escandinavos & I Ciclo de Pesquisas Medievais, o
primeiro ocorrido na Universidade Federal da Paraíba – UFPB (o I Colóquio
aconteceu na Universidade Fluminense – UFF), apresentei a comunicação “Mito e
Xamanismo: a caçada selvagem nas baladas de Helgi Hundingsbani” onde argumentei
que a tradição de narrativas míticas onde encontramos conexões com os relatos
da Caçada Selvagem na Escandinávia, ela que ocorre sempre em torno do Natal,
pode estar associada a elementos de drama nos poemas éddicos e em alguns contos
e sagas islandesas.
Durante a apresentação foram
exibidas fotografias do início do século XX de pessoas vestidas com peles de Bodes
e cabeças articuladas a fim de imitar o animal durante uma procissão que
aconteceria de granja em granja na Noruega (a tradição também foi muito forte
na Dinamarca) onde o Bode dançaria e deveria ser bem cuidado pelos anfitriões
ou correriam o risco de ter a casa bagunçada por aquele animal. Ainda mais, nas
prospecções feitas na Noruega e Suécia, encontramos uma divisão muito clara entre
as representações dos Bodes, marcados pela atuação através da figura mascarada,
e as representações das Cabras, enquanto máscaras articuladas erguidas sobre um
mastro. Ambos deveriam ser recebidos pelas comunidades, que alimentariam o
animal e lhe satisfaria. Quanto a rápida menção feita no evento, assim escrevi:
“O uso de elementos caprinos na Þorleifs þáttur jarlskálds em muito nos
lembra as máscaras e disfarces utilizadas nos festejos de Natal comuns a
diversas localidades da Escandinávia (entre as variantes das vestimentas estão Julebukk, Julbock, Julget etc) e
com registros muito recentes” (MIRANDA, 2014, p. 21).
Acontece que essa comunicação
representou o início de minhas pesquisas para a tese a qual me dedico no
momento, de maneira que há uma pesquisa em andamento e o que escrevemos aqui é
apenas um apanhado geral e elementos curiosos sobre o tema. Antes de ir adiante,
preciso fazer duas observações. Primeiro, o número de costumes relativos ao
Natal na Escandinávia é muito grande para abordamos em um post como esse, o
folclore é dinâmico, adota novos significados, absorve elementos de diversos
contatos com outras culturas e vai se modificando. Muitos folcloristas tentaram
pesquisar possíveis origens britânicas ou continentais desses costumes e,
apesar da semelhança com alguns elementos folclóricos, como o galês Mari Lwyd (que foi na verdade registrado
pela primeira vez somente no século XIX), tais comparações são puramente
teoréticas.
Segundo, apesar de ser quase
irresistível traçar paralelos com passagens de fontes bem anteriores ao mundo
contemporâneo, irei me abster de fazê-lo, atividade planejada para um artigo
cientifico posterior. Estaremos deixando de lado figuras mais conhecidas como a
Grýla, popular nas ilhas do Atlântico Norte, e as suas raízes dramáticas
presentes em danças como Vikivaki, Kerlingaleikur etc, que revelam uma
miríade de personagens como Haa-þóra, Gunnhildur gríðarsterki, Þórhildur, entre
outras menções do folclore escandinavos ilhéu em favor de um mosaico de
tradições da Escandinávia continental.
Dessa maneira, podemos localizar as
performances de visitas do período natalino entre os escandinavos continentais
nas seguintes atividades: O festival de Lucia na Suécia e Noruega, entre os
dias doze e treze de dezembro; o Staffansreid,
também encontrado na Finlândia entre os dias vinte e cinco e vinte e seis de
dezembro; Stjärnspel e Trettondagsspel, no fim de dezembro e
início de janeiro respectivamente; e o “bota fora” do Yule por São Canuto,
entre sete e treze de janeiro, além do nosso Bode de Natal Julebukk ou Julegeit logo
após o natal.
Como lembra Terry Gunnell (GUNNELL,
1995, p. 95) Quatro dessas manifestações possuem uma carga cristã muito
aparente (em sua superfície), com associações a Santa Lúcia (ou Santa Luzia) e
São Estefano (Staffan, Stephanus), com o martírio de São Canuto e na encenação
da visita dos Três Reis Magos em Stjärnspel
e em Trettondagsspel, onde carregam
consigo uma estrela. É facilmente apontado, nesses festejos, a influência da
cultura medieval continental sobre a Escandinávia sob uma rasa suposição de que
costumes cristãos chegaram até as áreas mais urbanizadas da Europa setentrional
se opondo, ou, até mesmo, se apropriando de antigas comemorações pagãs dos
rincões rurais (uma visão não dificilmente romântica), mas quando se aventura a
investigar com um pouco mais de profundidade, depara-se facilmente com algumas
curiosidades, a exemplo do festival de Lucia (também Lussi e Lusse) e a imagem
da garotinha com uma coroa de velas cantando “Santa Lúcia”!
Figura 1: Isolda
Langer com coroa de velas (João Pessoa, 2013), arquivo pessoal da professora
Luciana de Campos.
Entretanto o uso contínuo do nome
“Lusse Longa Noite” (Lusse Långnatt)
sugere que o festejo esteja associado com o solstício de inverno, fixado no
calendário juliano como o dia treze de dezembro por volta do século XIV na
Escandinávia. Inclusive a tradição de Lucia na Noruega ocidental (e em alguns
lugares da Suécia), como continua Terry Gunnel (1995, pp. 98-99), raramente é
apresentada na forma da jovem donzela em branco, mas como uma Troll que visita
as granjas na noite de treze de dezembro, acompanhada de um grupo de espíritos
malignos (Lussiferd). A velha Troll
na Gotlândia Ocidental, Värend e Dalarna, por exemplo, é descrita como coberta
por palha, peles de cabra e capa vermelha, com uma aparência que lembra muito o
nosso Bode de Natal, mas também o Halm-Staffan do festival de São Estefano.
É fácil se perder na discussão. Mas
o que quero fazer o leitor entender, é que as diferentes tradições folclóricas
de festejo natalino na Escandinávia continental possuem camadas complexas de
interações culturais muito além de uma oposição entre “tradições cristãs” e
“tradições pagãs”. Vamos voltar aos nossos Bodes e Cabras. Quando falamos em
Julebukk, estamos nos referindo a uma abundância de representações que podem
vir na forma da atuação em disfarce no natal (ligados tanto a máscara quanto ao
espírito do animal), mas também a certas figuras de palha feitas à mão, talvez
as representações mais famosas hoje.
O registro mais antigo de menção
direta ao Bode de Natal é de um raageit,
uma cabeça de Bode em um mastro, na Noruega em 1646, onde o Julebukk é descrito
como uma pessoa disfarçada com um cobertor. No século posterior, em 1781,
começam a aparecer registros de Bodes e Cabras de Natal se casando e assustando
crianças. Um registro de 1750 fala que alguém disfarçado de Bode chegou a quase
matar uma mulher de susto.
O Bode poderia ser interpretado e
apresentado de diversas maneiras: 1) coberto com peles e em quatro patas; 2)
curvado com o apoio de uma bengala e a cabeça articulada; 3) alguém usando
apenas uma máscara, que poderia ser articulada e com dentes de ferro, a fim de
fazer barulho quando as peças batessem uma na outra; 4) em pares, o Bode e a
Cabra de Natal (Julebukk e Julegeit); etc.
Outros animais também assumiram,
regionalmente, o papel do Bode, ainda que, segundo a prospecção de Christine
Eike (2007, p. 72-73) também se chamavam Julebukk: a) pássaros em Troms; b)
ursos em Setesdal e em Røldal, que também eram chamados de Drykkjebassan ou Fydlebasser
(Ursos Bebedores e Ursos Bêbados); c) Porcos em Oppland; d) Cavalo, em um único
registro de uma máscara articulada com mandíbulas que faziam barulho, também em
Oppland. Apesar do costume estar sendo retomado com certo vigor hoje, na
segunda metade do século XX, o termo Julebukk
começou a ser usado de forma geral para encontro de pessoas mascaradas, geralmente
festas e bailes. A fabricação manual de máscaras decaiu em razão do surgimento
das máscaras de plástico manufaturadas, e a figura do Bode foi sendo cada vez
mais trocada pela de Papai Noel.
Seja como for, como despedida
deixamos alguns testemunhos da Suécia do início do século XX, recolhidos em
arquivo por Eva Knuts, sobre a atuação do Bode de Natal durante o Natal,
sinalizo aqui três situações diferentes a fim de melhor ilustrar a diversidade
de situações e maneiras em que o personagem interagia com as pessoas. No
primeiro caso o Bode atua no mesmo papel do Papai Noel (contrariando a norma,
pois o Bode sempre deve ser agradado com comida ou dinheiro), entregando
presentes a uma família rica, sendo o Bode algum serviçal da casa. No segundo
caso, um grupo de garotos se juntam para conseguir dinheiro, e a indumentária
do Bode é descrita em minúcias. No terceiro caso, o bode anima uma festa entre
amigos.
“O Julbock nunca veio à minha vizinhança, ao menos não como algo de
casa em casa. Mas nas famílias mais abastadas, e especialmente na alta
sociedade, não era difícil para um dos homens ou um dos servos se disfarçar
como um Bode. Se os chifres do Bode não estivessem disponíveis, eram usados
grandes chifres de carneiro no lugar, e as vezes a pele desse animal também.
Como regra, havia uma garota ou uma esposa habilidosa que ficava responsável
pela roupa. Vestido assim e de quatro, o Bode ia de membro em membro da
família, carregado de presentes de Natal, de modo que eles poderiam facilmente
se soltar quando sacudidos. Após um monte de barulho e confusão, de pancadas na
porta, o Bode vinha até o salão. Era uma boa festa e do tipo que era
aproveitada pelos mais jovens e pelos mais velhos”
“O Natal era o período do Julbocken
como nós chamamos. Um grupo de jovens iam de casa em casa, um deles disfarçado
de Bode. Curvado ao meio e com uma bengala para lhe ajudar, algum tipo de capa
ou coberta deveria ser jogada sobre as suas costas. O disfarce deveria ser
finalizado com a cabeça estufada de um Bode com chifres e uma barba cobrindo
uma bolsa debaixo do queixo. A pessoa disfarçada andaria por aí com sua bengala
e puxaria uma corda para fazer a boca do Bode abrir. Um lenço feito para
parecer uma língua seria então puxada para fora e o Bode berraria: - Baaaa,
dinheiro na minha barba! E todo o grupo sairia da festa com o dinheiro
coletado”.
“Essas festas acabam sendo muito divertidas.
Quando estávamos no auge da dança, alguém aparecia todo vestido e bancava o
palhaço. Normalmente alguém aparecia vestido como Julbock, coberto com a pele de Bode e chifres na cabeça. O Bode
podia vir também com um pequeno sino amarrado entre as pernas para tornar a
coisa mais engraçada e fazer as garotas corarem. O Bode então percorria a sala,
empurrando e atropelando as pessoas que encontrava. As pessoas poderiam ainda
se disfarçar com trapos e escurecer a face com fuligem” (KNUTS, 2007, pp. 129 –
132).
Figura 2:
Julegeit exposto no Fredrikstad Museums. Retirado do site http://arkiv.ostfoldmuseene.no/stikkord/fredrikstad-museum/
visitado em 23 de dezembro de 2017
Figura 3:
Foto retrato de 1917 de Julebukk. Retirado do site http://mylittlenorway.com/wp-content/uploads/2008/12/go-julebukk-1917.png visitado
em 23 de dezembro de 2017.
“Ele não foi antes que ele tivesse alguns dos
deliciosos pratos de natal como porco, salsichas, queijos ou bolos, nozes e
maçãs”.
Figura 4: Cartão
desenhado por Benjamin Dahlerup sob
instruções de M. Kramer Petersen, século XX. Retirado do site http://www.kb.dk/da/nb/fag/dafos/Dagligliv.dk/Temaer/Top_eller_bund/Indsigt/Dokumenter/Helte_for_og_nu/index visitado em 23 de dezembro de 2017.
Figura 5: Reconstituição
de um Bode de Natal. Retirado do Blog http://blog.dengamleby.dk/julehistorier/tag/rumlepotte/, visitado
em 23 de dezembro de 2017.
Referências:
EIKE, Christine. Masks and Mumming Traditions in
Norway: a survey. In: GUNNEL, Terry. Masks
and Mumming in the Nordic Area. Uppsala: Kungl. Gustav Adolfs Akademien för
svensk folkkultur, 2007, pp. 47-106.
GUNNELL, Terry. The
Origins of Drama in Scandinavia. Cambridge: D. S. Brewer, 1995.
KNUTS, Eva. Masks and Mumming Traditions in Sweden: a
survey. In: GUNNEL, Terry. Masks and
Mumming in the Nordic Area. Uppsala: Kungl. Gustav Adolfs Akademien för
svensk folkkultur, 2007, pp. 107-188.
MIRANDA,
Pablo Gomes de. Mito e Xamanismo: a caçada selvagem nas baladas de Helgi
Hundingsbani. In: Notícias Asgardianas
(Nova Série), n. 8, João Pessoa: PB/NEVE, 2014, pp. 19-26.