domingo, 17 de maio de 2020

17 de Maio: o dia nacional da Noruega


Figura 1: Pessoas chegando para a festa pública do 17 de maio em Oslo, 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
















Andréa Caselli
Doutoranda em Ciências das Religiões pela UFPB/NEVE
adea.caselli@gmail.com

É primavera e tudo está florido: os acostamentos das estradas, os túmulos nos cemitérios, as praças e as frentes das casas que, além de muitas flores, exibem uma ou mais bandeiras hasteadas. Na madrugada em que não anoiteceu, é possível ouvir instrumentos musicais sendo afinados. Neste momento, poucos são os que dormem e os motivos para isso são muitos: a noite que não chegou porque o lindo sol não se pôs, o barulho dos últimos ensaios dos músicos em suas casas,  as zelosas mulheres que preparam os perfumados cafés da manhã compostos por champagne e bolos decorados, as crianças ansiosas por tudo o que viverão em algumas horas. Finalmente o sol chega no meio do céu e aos poucos as ruas vão sendo preenchidas por pessoas vestidas em suas melhores roupas, que lotam as paradas de trens, as avenidas, as calçadas e as barracas de comida. Uma multidão envolvida em aromas, cores, música e sorrisos.

A celebração do Dia da Constituição Norueguesa envolve ritos, símbolos, emblemas e diversos costumes tradicionais que - muito além de caracterizarem o sentimento nacionalista - envolvem também o folclore e a diversidade cultural dos processos de migração. Em idioma    norueguês, o Grunnlovsdag (Dia da Constituição), também é conhecido como Nasjonaldag (Dia Nacional) ou Syttende Mai (17 de Maio). No ano de 2019, participei do feriado e pude realizar uma pesquisa de campo através da vivência, que consistiu em uma observação participativa, sem questionários ou entrevistas, mas inserindo uma análise do comportamento dos envolvidos em seu ambiente real. Também foi realizada a coleta de dados referente ao evento e a interpretação deles.
Trata-se de uma comemoração nacionalista? Sim, mas o clima não-militarista e alegre aliado ao lugar especial das crianças torna a festa muito pouco polêmica atualmente. Um costume recente deste dia é que as pessoas vão às ruas apenas para comer uma enorme quantidade de sorvete e cachorro-quente, desfilar nas praças e avenidas com trajes folclóricos, participar de brincadeiras nas escolas locais e dançar em festas particulares à noite. Todavia, o devir histórico do 17 de maio apresenta conflitos étnicos e políticos que contribuíram para a tranquilidade coletiva nas comemorações mais recentes...
Como em outras celebrações nacionais, há o ritual como prática de um comportamento realizado de maneiras definidas. O hábito repetitivo, festivo e sazonal; tendo funções em práticas culturais estabelecias. Envolve ação e performance dos participantes. Para compreender um rito nacional como o 17 de maio, há de compreender que rituais e seus elementos são conservadores em sua essência, com mudanças lentas que, quando acontecem, a transição se desenvolve em uma comunicação que parte do núcleo do grupo para gradativamente atingir larga escala (Cf. Anderson, 1991). Nesse sentido, o rito do dia nacional oferece uma abordagem para entender a cultura. A contribuição social do ritual e a sua compreensão subjetiva podem ser encontrados nos níveis micro e macro, tendo significados individuais ou coletivos. Não é apenas um ato, mas também contém significado tanto para seus participantes quanto para seus espectadores.


Figura 02: Estandarte de escola no desfile infantil do 17 de maio em Oslo, 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

A democracia exige fronteiras e estas, por sua vez, precisam do Estado-nação. Quaisquer modos pelos quais as pessoas definam a própria identidade em relação ao lugar a que pertencem têm um papel a desempenhar na consolidação do sentido de nacionalidade. Compreendendo o nacionalismo como o pertencimento comunitário de lealdade e compromisso, não se pode esquecer que ele é compartilhado entre concidadãos para sustentar o estado de direito e as formas consensuais de política (Cf. Scruton, 2015). O comprometimento com o território, a história e os costumes nacionais levam a rituais que vinculam os vizinhos a um senso comum de lar, de lealdade compartilhada. O 17 de maio pode ser entendido também como um ritual de afirmação que diz respeito às tradições valorizadas que os noruegueses querem preservar.

Uma história vermelha, azul e branca

A primeira constituição norueguesa foi assinada em 17 de maio de 1814. Após esse dia, a Noruega deixou então de fazer parte da Dinamarca – mas ainda estava unida à Suécia, da qual se livrou apenas no séc. XX através de muitos acordos e perdas de territórios. A Noruega contemporânea é caracterizada por um nível elevado de bem-estar, igualdade de género e estabilidade económica. Como nação, as raízes da Noruega remontam ao século IX. O país conquistou a independência da Suécia em 1905 e desde então tem sido uma monarquia constitucional. A Constituição Norueguesa de 1814 é a segunda constituição escrita mais antiga do mundo que ainda está em uso.
Seguindo a história do 17 de maio, vê-se que a tradição da festa está em constante evolução: No começo, foram homens de camadas mais altas da sociedade elaboraram as propostas de independência e também da comemoração dela. No final do século XIX, o resto dos civis – incluindo as mulheres - entraram e as crianças receberam seus próprios desfiles. A participação das mulheres nas lideranças do evento foi marcada por anos de conflito entre partidos políticos. Porém tais divergências e proibições em relação à participação feminina foram amenizadas após a II Guerra Mundial, tanto porque a população masculina estava reduzida em toda a Europa, quanto porque após um longo período de ocupação nazista em terras norueguesas, todos os habitantes estavam ansiosos por poder celebrar novamente os seus símbolos nacionais como antes da Guerra, e não ao modo  Nacional-socialismo.  Nos últimos anos, os imigrantes viram sua marca no desfile nacional. O desfile público absorveu o desenvolvimento da sociedade e a passagem dele pela história pode ser interpretada como uma personificação simbólica do desenvolvimento da nação. Mas isso não apenas aumentou a evolução passiva, nem foi uma revolução (Brit Marie Hovland; Olaf Aagedal, 2001, p. 27-53).


Figura 03: Banda de escola tocando em frente ao Storting (prédio do Parlamento de Oslo), no 17 de maio de 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.


Durante o séc. XX, a imigração foi um tema de constante conflito e aprendizado constantemente refletido no dia nacional, que é também um momento de expressão política. Quando o Dia da Constituição foi declarado feriado oficial em 1947 na Noruega, o objetivo era que o desfile das crianças incluísse todas as crianças que frequentavam escolas norueguesas. Esse debate atingiu o auge em 1983, depois que a Escola Sagene sofreu ameaças raciais por incluir os imigrantes de segunda geração no desfile. A escolha da paquistanesa Rubina Rana, integrante do Partido Trabalhista, como líder do comitê de 17 de maio em Oslo, em 1999, contribuiu para simbolizar a participação dos imigrantes em um âmbito formalmente político (Høie, 2010, p. 07). Desde 2008, houve alguma controvérsia sobre a inclusão de outras bandeiras nacionais na celebração. Esses aspectos ilustram que o debate é histórico e atual.
A Noruega tem atualmente 14% de sua população constituída por imigrantes. A Noruega também tem várias minorias nacionais e, como resultado da globalização, tornou-se um país mais multicultural. Desde meados de 1990, o número de imigrantes dobrou no país, que passou a receber levas de trabalhadores da África, do Leste Europeu e da América Latina. A Somália está no topo do ranking de pedidos de asilo, seguido pelo Afeganistão, Eritréia, Irã e Iraque (Site da Embaixada Real da Noruega em Brasíllia, 2019). Os refugiados recebem apoio financeiro, treinamento profissional, orientação cultural e aulas de norueguês para sua inserção no mercado de trabalho. O mesmo não acontece com os imigrantes, que sob circunstâncias especiais recebem apenas as aulas de norueguês. Contudo, parece que as condições de vida compensam diante do que seus países de origem oferecem.


Figura 04: Norueguesas muçulmanas de famílias imigrantes participam do desfile público escolar no 17 de maio de 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Os noruegueses passam por um processo de adaptação devido a tantas pessoas de diferentes etnias e religiões participando do seu cotidiano, o que gera tanto reações de hospitalidade e acolhimento, como reações xenofóbicas. Tudo vem mudando depressa e o receio de que a “invasão” de novas culturas traga problemas à paz cotidiana está sendo usada politicamente, como acontece em outros ambiente e sociedades. Pelas leis eleitorais da Noruega, somente cidadãos noruegueses podem votar para o Parlamento, mas em pleitos locais todos os residentes legais têm direito a participar.
Na festa pública do dia 17 de maio, imigrantes e refugiados que habitam o país participam da festa com seus trajes religiosos, a exemplo dos muçulmanos, e também com os bunads, o traje folclórico norueguês. Muitas crianças muçulmanas participam do desfile das escolas com trajes muçulmanos, principalmente meninas que usam véu na cabeça. Os noruegueses são tolerantes e incentivam a liberdade de expressão para todos os participantes da festa, inclusive os turistas, estes que fazem questão de comprar um exemplar da bandeira norueguesa para aumentar o sentimento de participação no evento.
Percebe-se aqui um grande exemplo de cooperação internacional como espaço de desenvolvimento não só da administração pública, mas também do planejamento econômico que afeta a disseminação de conhecimentos científicos, tecnológicos e culturais. A celebração não incita, mas apresenta o ambiente propício à reflexão sobre identidades entre cidadãos nativos, cidadãos imigrantes, turistas e instituições. A cooperação internacional é um entre os muitos elementos que compõem o processo de imaginação da nação e administração das convivências entre etnias na Noruega, nos últimos 50 anos.
Já o desenvolvimento da cooperação norueguesa junto ao povo Sàmi desempenhou uma atividade estratégica quando colocou em diálogo as agendas internas do país relativas aos povos indígenas, aos imigrantes e aos refugiados políticos, e suas agendas externas, combinando as temáticas do desenvolvimento e dos direitos humanos de um modo bastante peculiar (Cf. Hoffmann, 2008). As condições históricas específicas da Noruega como um país sem passado colonialista, tendo sido ela própria subordinada politicamente e com a população Sàmi, que obteve  status de povo indígena na década de 1970;  tiveram consequências importantes para a atuação do país sobre a construção dos mecanismos internacionais de reconhecimento e defesa dos direitos humanos e, portanto, para a afirmação de identidades étnicas dentro de outros países.
A cooperação internacional de tradição humanitária norueguesa junto aos povos nativos mostrou-se um terreno fértil para a observação de fenômenos simultâneos de formação o Estado e construção da nação, associando-se, como vimos analisando ao longo dos capítulos anteriores, às lutas políticas dos Sàmi para adquirir um estatuto próprio dentro do Estado norueguês, à expansão missionária dentro e fora da Noruega, e ao processo imigratório de refugiados no país. Sendo assim, o sucesso da missão internacional é comprovado em desfiles e festas públicas do 17 de maio, quando celebram todos os grupos étnicos, sem distinção, o dia nacional.


Figura 05: Família norueguesa participa da celebração pública com os trajes folclóricos, bunads, ao lado de turistas. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Os modernistas ou construtivistas enfatizam que símbolo, ritual e mitos são construídos por uma elite, enquanto os etnicistas acrescentam maior ênfase na continuidade do período pré-nacional e para ele era nacional moderna. O 17 de maio apresenta expressões da imaginação histórica manifestadas no contexto de orgulho nacional contemporâneo que evoluiu a partir do nacionalismo oitocentista discutido por Stephen Bann (1994, p. 20) acerca das invenções da história na Europa a partir do séc. XIX. A história, como uma presença que emerge a partir de uma infinidade de campos (pintura, literatura, museus, música, etc.), edifica um modelo integrado de representação histórica. Nesta trajetória, revelou-se tanto a fertilidade imaginativa quanto o investimento crescente de instituições, grupos e indivíduos na manutenção das tradições. Os símbolos e a celebração do 17 de maio foram constituídos em representações de longa durabilidade com preceitos e formatos etnocêntricos, explícitos ou não, revistos e atenuados com o tempo.
Em outras palavras, neste artigo busco acompanhar os meandros da invenção de uma tradição nacional, compreendendo-a não como uma espécie de falsa consciência, destinada a servir a propósitos estritamente funcionais ou ideológicos; mas como expressão de um imaginário, ele mesmo histórico. Nesse sentido, é importante analisar a questão apontada pelo historiador Stephen Bann, que não considera apropriada a ideia de que a história, tal como defendem Hobsbawn e Ranger, desmistifica as tradições, incorporando uma espécie de falsa consciência. Em sua opinião, a história seria o modo pelo qual uma cultura lida com seu próprio passado. Dessa forma, a compreensão histórica é uma empreitada cultural vital e a imaginação histórica uma importante faculdade humana que deveria enfatizar o fazer e não a busca de uma narrativa distorcida já que qualquer narrativa é uma invenção retórica e a invenção de histórias seria a parte mais importante da autocompreensão e da autocriação humana (Bann, 1994, p.23).
Nos dias atuais, o 17 de maio norueguês se destaca como a celebração nacional escandinava com a mais ampla participação popular. O simbolismo e o ritual dessa janela de exibição pode, portanto, ser uma realização da discussão da relação entre as tradições dos países destinatários, envolvendo os valores e estratégias dos imigrantes no processo de integração. Os últimos dias nacionais mostram que através do conflito simbólico nacional, o desfile de tem mudado constantemente o segmento das pessoas participantes. A entrada do imigrante é a mais recente expansão de símbolo. Os imigrantes agora são destacados como o símbolo de uma época em que a nação norueguesa é democrática e inclusiva.


Figura 06: Ao fim do desfile público, as famílias se confraternizam comendo cachorro-quente e sorvete (as comidas típicas deste dia) nas calçadas de Oslo Fonte: Arquivo pessoal da autora.

No que diz respeito à bandeira da Noruega, o empresário e membro da Assembléia Constitucional, Fredrik Meltzer, projetou, em 1821, a bandeira moderna da Noruega para substituir as bandeiras dinamarquesas e suecas modificadas em uso. Ele escolheu usar uma cruz nórdica para refletir os laços estreitos da Noruega com a Suécia e a Dinamarca; elegendo as cores vermelho, branco e azul para simbolizar os ideais liberais associados a países ocidentais democráticos. Foi a bandeira que venceu uma votação da Assembleia, dentre vários modelos desenhados por outros políticos. Porém, nos períodos de expansionistas medievais, o território norueguês foi representado, vez por outra, por estandartes de reis e guerreiros com os seguintes símbolos: serpente; leão dourado e coroado com machado de prata; corvo (Store Norske Leksikon, 2020)  O símbolo do leão teve mais prestígio e permanece na contemporaneidade como componente da bandeira real que é constituída de fundo vermelho com o leão dourado e coroado ao centro, em posição de perfil direcionado para a esquerda, em posição ereta, segurando o machado de prata.

A tradição dos bunads
A ocasião do 17 de maio é um pretexto para as pessoas exibirem seus bunads, os trajes tradicionais e folclóricos da Noruega que são usados em danças folclóricas ou grandes festas, como o Dia Nacional, casamentos, batismos, crismas e Natal. Existem centenas de variações desses trajes, com cores e estilos que indicam as origens ancestrais daqueles que os vestem. Tradicionalmente, cada bordado determina as características de um ramo familiar ancestral, que atualmente é reconhecido e preservado pelas regiões dos municípios. Os designs variam enormemente entre as regiões. Uma função principal do bunad de uma pessoa é servir como reconhecimento público e homenagem à sua erança norueguesa em geral e à sua cidade ou região da Noruega em particular. Contudo, existem bunads a serem vendidos em lojas com bordados de efeito estético apenas.


Figura 07: Detalhes de bunad de uma professora participante do desfile público, com bordados e peças em prata. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

A preparação para o grande dia já começa meses antes, com ensaios das bandas que irão participar da marcha, com a (s) festa (s) que marcarão este dia, e claro, o bunad, que é o traje tradicional norueguês, deve ser tirado do armário para ser finalmente usado. Existe bunad para homem e para mulher, são feitos geralmente de lã e eles variam de modelo de acordo com a região do país. O feminino é um vestido longo levemente rodado, relativamente simples, mas que varia bastante entre cores e bordados, mas todos têm alguma aplicação de metal, quase sempre de prata. Os bunads atuais não apresentam a estética camponesa de séculos passados, mas recebem inspiração desta. O traje que é vestido no 17 de maio tem criação no início do séc. XX, por entusiastas do folclore nacional. (Fossnes, 1993)
A prata é o metal mais usado no país devido ao grande comércio Sàmi de prata e suas técnicas de joalheria.  Ele é não raro feito pela mãe, e dado à filha sempre na 1ª comunhão dela, na religião luterana, que durante alguns séculos foi a religião oficial do país. Para os meninos, o uso do bunad varia bastante. Um bunad atualmente comprado em loja custa muito caro, devido à sua manufatura: em média 20.000 NOK (coroa norueguesa), ou 8.000 reais.


Figuras 08 e 09: Dois exemplos de adornos de cabeça diferentes para os bunads. Cada um representa regiões diferentes da Noruega. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Considerações sobre a observação de campo

Foi estudada uma amostra representativa da festa da independência norueguesa, na cidade de Oslo, uma vez que a totalidade do evento não pôde ser abordada pelo fato de ser uma celebração nacional que acontece em todas as cidades do país ao mesmo tempo. Uma observação direta, mas também participativa, pois participei da festa e consumi os mesmos elementos culturais que os celebrantes como alimentos, bebidas, músicas e ambiente.
Em relação à diversidade religiosa bastante perceptível no evento, me baseio na fala de Silas Gerriero que expressa a importância para a antropologia da religião dos significados subjacentes aos sistemas de crenças religiosas e a preocupação com os hábitos, práticas e costumes desses mesmos grupos advindos desses sistemas (Guerriero, 2013, p. 06). Sendo assim, foi possível observar a interação, o diálogo e a preocupação de manter harmoniosamente a liberdade de expressão em uma sociedade marcada por múltiplas crenças (a exemplo do islamismo, do luteranismo, do catolicismo e das diversas formas de paganismo existentes atualmente na Noruega) que convivem entre si. E, mais do que isso, foi possível presenciar a forma como a sociedade norueguesa quer ser percebida pelo mundo através de sua auto exposição na sua celebração nacionalista, envolvendo seu modo de lidar com as religiões.


Figura 10: Vista do desfile na principal avenida de Oslo, a Karl Johans, em 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

A justaposição da base constitucional e do processo popularmente mobilizado pode ser a principal explicação para a inclusão e, portanto, o poder atualizador da paisagem de símbolos nacionais noruegueses que faltam a muitos outros rituais nacionais. Querer que a celebração de 17 de maio sobreviva é querer mantê-la como significativa e motivadora de amplos sentidos que podem ser constantemente transformados, caso necessário. É uma data que vai de acordo com seu tempo e mantém vínculo com os relacionamentos deste. É o dia das crianças que desfilam e aprendem a importância da tradição e de honrar a própria cultura, mas também é o dia dos adultos que percebem suas próprias falhas inseridas nesta mesma tradução e buscam melhorá-la, ansiando bem-estar e boa convivência.
O 17 de maio, como parte da experiência de infância dos noruegueses, agitando bandeiras, andando em trens, comendo salsichas e sorvetes, vestidos em suas melhores roupas, juntando-se aos brinquedos à festa do pátio da escola, faz parte da socialização. É uma experiência recorrente que reflete algo duradouro em um mundo turbulento. O ritual reflete as mudanças na própria vida. Como uma criança pequena nos ombros do pai sob o raro e precioso sol primaveril, uma criança em idade escolar no desfile marcial da escola como um músico de banda, como um russ (estudante que está terminando o ensino médio), poderá haver uma interrupção no engajamento ativo até que o cidadão tenha seus próprios filhos nos ombros. E todas as fases são imortalizadas em fotos ou vídeos. As memórias particulares são tecidas em uma memória coletiva que a maioria dos noruegueses compartilha.
Os russ têm desfiles próprios, com ônibus, vans e sistemas de som sofisticados e barulhentos. É costume que durante o dia as pessoas peçam a eles o russekort, o cartão de visita contendo informações pessoais e algumas piadas; pois a saída da escola para esses jovens significa a inserção direta no mercado de trabalho, visto que na Noruega não há a cultura da formação universitária como preparação para exercer uma profissão. Os usos e costumes noruegueses incentivam a dignidade do trabalho remunerado desde muito cedo na vida dos cidadãos e grande parte dos russ já exercem alguma profissão antes da formatura.
A população de imigrantes da cidade está muito presente. Crianças de origem asiática e africana compõem um elemento grande e visível no desfile infantil, imigrantes adultos ficam ao longo da rota do desfile na avenida Karl Johan e no palácio real, sendo que as famílias imigrantes também participam dos eventos do pátio da escola. Organizar desfiles infantis e atribuir às escolas a responsabilidade de recrutá-los e organizá-los garante a continuidade do evento de maneira engenhosa. Primeiro, geração após geração é introduzida na parte formalizada do ritual. Muitos começam no jardim de infância. Todos os momentos do desfile, cantando, tocando e acenando com bandeiras e abas, provocadas pelas crianças tão pequenas, faz parte da socialização norueguesa. É também o que se poderia chamar, na antropologia, de nacionalização de vida emocional. Como grande parte disso se torna experiências incorporadas desde a primeira infância, os alunos noruegueses recebem um conjunto de referências que podem ser ressuscitadas posteriormente.


Figura 11: Um dos principais edifícios da avenida Karl Johans, decorado para o 17 de maio, em 2019. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

A celebração do dia 17 de maio, como ritual nacional, é relativamente flexível, atraente e capaz de abrigar uma grande parte da população. Tem a ver com o modelo organizacional. Não é dirigido de cima, mas sim governado pela sociedade civil. Isso confere ao ritual legitimidade e flexibilidade - uma grande sensibilidade à mudança interior. Ao mesmo tempo, é resistente à pressão externa. Quando as crianças de famílias imigrantes são deliberadamente colocados em primeiro lugar nos desfiles escolares, isso tem a ver com a realidade da escola ou da comunidade escolar. Quando uma escola mostra uma composição multicultural de estudantes, tem a opção de liquidar participação ou incluir os filhos de imigrantes. Somente assim a comunidade interna da escola pode ser preservada.
Há que se perceber que uma celebração de independência acabou por se transformar em uma festa multicultural que envolve emigrantes e imigrantes. De emigrantes nos países em que o 17 de maio é comemorado por noruegueses e seus decndentes. De imigrantes, na Noruega, por indivíduos que foram acolhidos e asilados no país. Seria a globalização do nacionalismo?

Referências bibliográficas

ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: reflections of the rigins and Sspread of nationalism. London: Verso, 1991.

BANN, Stephen. As invenções da história: ensaios sobre a representação do passado. Tradução de Flávia Villas-Boas. São Paulo: UNESP, 1994.

BREKKE, J.P.; AARSET, M.F. Why Norway? Understanding Asylum Destinations. Oslo:
Institute for Social Research, 2009.

FOSNESS, Heidi. Bunads noruegueses e trajes folclóricos Sami. Oslo: Cappelen, 1993

GUERRIERO, Silas. Antropologia da Religião. In: PASSOS, João Décio. USARSKI, Frank. Compêndio de Ciências da Religião. São Paulo: Paulinas, Paulus, 2013, p. 243-256.

HOFFMANN, Maria Barroso. Fronteiras étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação: um estudo sobre a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas. 2008. 344 p. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro , 2008.


HØIE, Siri. Everyone is Norwegian on the Seventeenth of May: The Celebration of May 17th in Seattle 1945-2009. 2010. 131 p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Oslo, 2010.

SCRUTON, Roger. Como ser um conservador. Rio de Janeiro: Record, 2015. P. 63-68.


Site da Embaixada Real da Noruega em Brasília: < https://www.norway.no/pt/brasil/> Acessado em 09 de junho de 2019.

Store Norske Leksikon, norges flagg: <https://snl.no/.search?query=norge+flagg.>  Acessado em 10 de maio de 2020.



sábado, 16 de maio de 2020

Símbolos mágicos nórdicos: guia visual e histórico*


Símbolos mágicos nórdicos: guia visual e histórico*




                                                                                    

Imagem 1: Skivarpstenen, Lundagård, Lund/Suécia.

Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

Índice de símbolos: 1. Suástica e triskelion; 2. Triquetra e Valknut; 3. Espiral e labirinto; 4. Nó quadrifólico; 5. Pentagrama; 6. Cruz Troll; 7. Cruz élfica; 8. Vegvísir e ægishjálmr.

Introdução
O uso de símbolos para práticas mágicas variadas é atestado desde a Antiguidade, mas ainda verificamos a sua extrema abundância nos dias de hoje. A finalidade deste ensaio é possibilitar ao público de língua portuguesa o acesso a um mostruário parcial da imensa riqueza visual e histórica de símbolos mágicos e religiosos utilizados na área escandinava. A mesmo tempo, aproveitamos para corrigir vários equívocos sobre o tema, abundantes em livros e na internet. Nosso levantamento possui alguns critérios: incluímos apenas símbolos mágicos com morfologia geométrica não figurativa e que foram utilizados na Antiguidade e Medievo, alguns com continuidade após a cristianização, também sendo utilizados no folclore e tradição popular moderna. Atualizamos algumas considerações já realizadas em nosso anterior estudo acadêmico (Langer, 2010) mas com várias adições e correções.
Com o intuito de apontar interpretações equivocadas, mas não confundir o leitor, separamos as formas de referência em dois tipos: livros e sites com teor esotérico, neopagão e jornalístico são descritos com autoria e título completo no texto; obras acadêmicas e científicas são referenciadas no texto como sobrenome da autoria, data e paginação – sendo a bibliografia completa descrita ao final do ensaio.
O estudo dos símbolos é uma área complexa e que requer alguns cuidados. Primeiro, evitamos generalizações, referenciais diacrônicos e universalistas em excesso. Símbolos extremamente difundidos na área euro-asiática (como a suástica) necessariamente não tem os mesmos significados, variando conforme o contexto histórico, geográfico, social e cultural: “O símbolo é sempre proteiforme, polivante, ambíguo (...) no mundo dos símbolos, tudo é cultural  e deve ser estudado em relação à sociedade que dele faz uso (...) nada funciona fora do contexto” (Pastoreau, 2002, p. 495, 505, 507). Outra questão é o conceito de magia. Aqui empregamos noções relacionadas ao caráter pragmático dos simbolismos, onde magia envolve uma série de recursos materiais para o controle do sobrenatural e a natureza, também empregando mitos e tradições orais; diversas práticas, rituais e simbolismos para tentar encontrar em contato com poderes invisíveis, para conhecer o futuro ou influenciar eventos (Mitchell, 2015, p. 59). E neste sentido, a magia medieval não pode ser entendida enquanto oposta à religião, tanto erudita quanto popular (Jolly, 1996, p. 18), mesclando-se e hibridizando-se com as tradições religiosas.
Algumas considerações gerais também são necessárias. Primeiro, a de que não sabemos o nome original da maioria dos símbolos antigos, sendo utilizadas designações genéricas, posteriores à Era Viking ou de outros recortes históricos e geográficos. Em segundo, o estudo dos símbolos nórdicos ainda é muito precário na academia, sendo objeto de poucas investigações científicas. Para o caso de símbolos presentes na Era Viking, estamos preparando um material acadêmico mais detalhado e analítico, a ser publicado futuramente. Neste pequeno ensaio, concederemos apenas algumas considerações sistematizadoras de base diacrônica, enfatizando um recorte da Antiguidade à modernidade.

1.      Suástica e Triskelion
A suástica é um símbolo complexo, existindo em várias culturas euroasiáticas desde a Antiguidade. No mundo germânico antigo ela aparece especialmente entre as bracteatas: pingentes feito de ouro ou prata que foram encontrados em tumbas no período de migrações e merovíngio. Elas possuem um caráter mágico-religioso e geralmente contém motivos relacionados com o mundo do guerreiro. Várias imagens de bracteatas contém performances de guerreiros dançando ou então representações do deus Wotan e seus animais auxiliares. O êxtase e a dança ritual parecem estar particularmente relacionadas com o símbolo da suástica, que em algumas bracteatas possui pequenas arestas em suas extremidades, sugerindo movimento e êxtase (Franceschi, 2005, p. 55). Em várias inscrições rúnicas da Antiguidade, a suástica aparece como um símbolo de sorte e proteção ou então como instrumento para aumento do poder mágico do amuleto, possuindo uma funcionalidade semelhante às palavras de encantamento (MacLeod & Mees, 2006, p. 21, 74, 86, 94).



Imagem 2: Bracteata Djupbrunns I, Suécia (SHM 4877), séc. V-VI. Fonte.  A imagem apresenta uma figura masculina (geralmente identificada a Wotan), onde seu cabelo se transforma em pássaro, com um cavalo logo abaixo, portanto chifres (talvez parte de antigo ritual). A suástica está logo abaixo.

Durante a Era Viking a suástica continua particularmente associada com os sítios e contextos monumentais do deus Odin. Ela aparece relacionada com Ygdrasill em várias tapeçarias suecas, mas também a outros símbolos, como o triskelion de cornos (Snoldelev, DR 248). Apesar de muitos autores, representações artísticas e obras popularizarem o deus Thor vinculado à suástica, não existe nenhum contexto iconográfico ou material que comprove isso. Essa associação parece ter sido criada no final do medievo, mas durante o período Viking não existem evidências iconográficas deste vínculo.

       
 

Imagem 3: Suástica e triskelion de Snoldelev (DR 248), séc. IX, original e reconstituição gráfica, Museu Nacional da Dinamarca, Copenhague. Foto de Johnni Langer/NEVE, 2018. Trata-se da representação mais famosa de uma suástica na Era Viking. O triskelion feito de cornos relaciona o conjunto imagético ao deus Odin (remete ao mito do hidromel).
    

Imagem 4 e 5: DR 337 (Valleberga, Lundagård, Lund/Escânia, Suécia), séc. XI, erguida em memória de Manni e Sveini. Uma das inscrições cita a cidade de Londres, porém o detalhe mais interessante é a suástica esculpida no meio de uma cruz latina. Foto de Johnni Langer/NEVE (julho de 2019). A suástica possui extremidade curvas, gerando uma ideia de movimento circular interno. Aqui o Sol pode ter sido relacionado a Cristo? Na área irlandesa medieval, o simbolismo solar em suásticas foi reinterpretado dentro da noção cristã de ressureição (Rynne, 1990, p. 3-18).



Imagem 6: Pedra rúnica do aeroporto de Arlanda, Séc. XI (L2013:3081 Runristning), descoberta em 1990. É relacionada às expedições de Ingvar. Foto de Munir Lutfe Ayoub/NEVE (2019). A cruz com suástica é inserida dentro do padrão tradicional de entrelaçados com serpentes, típica da área sueca. O simbolismo das serpentes em pedras rúnicas da Suécia foi tema de uma recente tese de doutorado no Brasil: Oliveira, 2020.

A maior quantidade de suásticas em pedras rúnicas surge em um contexto cristão, ao final da Era Viking. Geralmente ela foi esculpida no centro de uma grande cruz e seu significado ainda não é conhecido neste caso. Pesquisando sobre o significado de suásticas na área das ilhas britânicas na Idade Média Central, Rynne (1990, p. 3-18) conclui que ela possuía um significado relacionado com a ressureição, retomando valores solares antigos e as conectando ao contexto dos valores cristãos. Esse referencial talvez possa ser adotado no contexto escandinavo em novas pesquisas, especialmente em representações de suásticas em cruzes e igrejas.






Imagem 7 e 8: Escultura de rosto humano e pássaros, Santa Maria, Great Canfield (Essex, Inglaterra), séc. XII. Foto de Susan Tsugami/NEVE (2019). A escultura é tradicionalmente interpretada como sendo Odin e seus dois corvos, ao lado de um conjunto de cinco suásticas (foto abaixo), mas também como dois pombos alimentando a face de Cristo. As suásticas seriam signos de boa sorte (Wilson, s.d., p. 12).






Imagem 9 e 10: A pedra do Sol, séc. IX-X, Igreja de Govan Old Parish, Escócia. Fotos de Susan Tsugami/NEVE (2019) e Barbara Keeling (2010). A suástica do monumento possui seus terminais com cabeças de serpentes e é interpretada como sendo um símbolo da redenção humana (Ritchie, 2011, p. 14). Esta suástica é muito semelhante a representações de triskelions com terminais em forma de animais, comuns na Escandinávia antiga, como na estela de Smiss, Gotland.



Imagem 11: Triskelion, estela de Smiss, Museu de Gotland, Suécia, séc. V-VI. Foto de Munir Lutfe Ayoub/NEVE, 2019. O tiskelion aqui possui terminais em forma de javali, águia e serpente, animais relacionados ao deus Odin. A figura abaixo, muito polêmica, geralmente é interpretada como um ser feminino e segura em suas mãos duas serpentes. Recentemente a cena foi relacionada ao parto e o simbolismo da serpente-dragão na transição de mundos (durante o nascimento da criança) (Mitchell, 2019, p. 125-126.


Imagem 12: Þórshmar, Manuscrito Huld (ÍB 383 4to), 24v, 1860. Fonte. 


Nos tempos modernos a suástica foi associada ao martelo de Thor (MacLeod & Mees, 2006, p. 252). Este instrumento continuou a ter um papel importante em comunidades rurais suecas na modernidade. Um martelo utilizado em confrarias possui vários caracteres gravados em sua cabeça (semelhantes a marcas de propriedade), incluindo uma suástica. Não sabemos se existe alguma continuidade folclórica entre este símbolo e o martelo pagão ou se possui alguma similaridade com a área islandesa. Em todo caso, este objeto demonstra a perpetuação do símbolo na vida cotidiana dos escandinavos.


Imagem 13: Fattigklubba, martelo de madeira utilizada em confrarias rurais na Suécia, século XVIII. Fonte: Mejborg, 1889, p.16.



Imagem 14: Sinais mágicos encontrados em um livro de nascimentos e batismos de Ytterlännäs, 1680. A suástica é o terceiro sinal marcado da direita para a esquerda. Fonte da imagem: Wijk, 2020.

A suástica nórdica também continua nos tempos modernos com usos diferentes. Em 1680, um padre da igreja de Ytterlännäs (Ångermanland, Suécia), anotou vários símbolos em um livro de registro de nascimentos e batismos. Entre letras romanas, quadrados e sinais variados, ocorre uma suástica - aqui ela teria funções repulsivas, de afastar o mal das crianças, segundo alguns historiadores (Wijk, 2020). Marcas antigas eram utilizadas como substitutos de assinaturas na Suécia e as vezes elas misturavam runas e símbolos antigos, mas também proviam de letras da liturgia e tradição bíblica, com o sentido de afastar o mal. E a suástica muitas vezes estava incluída.
Algumas tapeçarias modernas usaram a suástica talvez como um ornamento tradicional, sem maiores vinculações mágicas ou religiosas, como em um manto de 1874 sueco, constante do acervo do Nordiska Museet (Mejborg, 1889, p. 14). Nesta mesma instituição, porém, existem duas pranchas de madeira para dobrar roupas, do Setecentos, que possuem inscrições de vários signos, sigilos, desenhos e marcações, possivelmente de caráter mágico ou protetor, incluindo vários tipos de suásticas. Suásticas também eram gravadas em portas de casas suecas como sinais profiláticos (Mejborg, 1889, p. 15).




Imagem 15: Dobrador de roupa, Igreja de Djura (Dalarna, Suécia); dobrador de roupa, Leksand (Dalarna, Suécia). Ambos os objetos são do acervo do Nordiska Museet e datados entre 1600 e 1700. Fonte das imagens: Mejborg, 1889, p. 13.

2.      Triquetra e Valknut
Existem vários símbolos nórdicos denominados de valknutar (termo do norueguês moderno) com a forma entrelaçada entre si. Nesta categoria, entram tanto as formas conhecidas como triquetra e nó quadrifólico quanto o pentagrama (especialmente em ornamentações medievais) e o valknut “clássico” (constante nas estelas gotlandesas da Era viking). Para aumentar ainda mais a confusão, também tanto a triquetra quanto o valknut são identificados ao único símbolo nórdico registrado na literatura medieval (Boyer, 1986, p. 114), o Hrungnis hjarta (coração de Hrungnir, Skáldskaparmál 7). Em nossas pesquisas, temos diferenciado todos estes símbolos, especialmente para a Era Viking.



Imagem 16: Triquetra, runestone de Sanda I (G 181), séc. X-XI, Museu de Gotland, Suécia. Foto de Munir Lutfe Ayoub/NEVE, 2019. O símbolo aparece junto ao que se acredita ser uma figuração do deus Odin, segurando uma lança (Gungnir ?).

A triquetra é uma forma geométrica cujos terminais entrelaçam-se a partir de um centro em comum, projetando suas extremidades em três pontos diferentes. Em nossa opinião, é o principal candidato a ser o símbolo descrito por Snorri Sturluson (Hrungnis hjarta). Já o valknut são três triângulos que se encaixam entre si, mas ao contrário da triquetra, não formam uma figura única e possuem seis pontas, não se encaixando na descrição de Snorri.



Imagem 17: Triquetra, runestone U 937, séc. XI, parte do conjunto das pedras rúnicas de Funbo, atualmente situada no jardim da Universidade de Uppsala, Suécia. Fonte da imagem. É a representação mais famosa de uma triquetra durante a Era Viking, possuindo traços uniformes e bem definidos.

Tanto a triquetra quanto o valknut foram associados ao deus Odin na Era Viking. Mas enquanto a triquetra é mais antiga e sobreviveu muito mais tempo na Europa (extremamente comum nas regiões celtas), o valknut é quantitativamente encontrado quase que exclusivamente na ilha de Gotland e somente entre os séculos VIII ao X. Em objetos móveis (como pentes, bastões, moedas, pingentes) e sem o contexto de figurações e iconografias mais complexas, é muito difícil de tentar entender o significado da triquetra e do valknut nos tempos pré-cristãos e saber se possuíam algum sentido mágico (talvez também fossem apenas motivos de decoração nestes materiais móveis).  Em monumentos, porém, a sua relação com mito e ritual é bem definida, a exemplo das estelas gotlandesas de Hammars I (valknut, acima de um sacrifício) e Sanda I (triquetra, ao lado de Odin recebendo um morto). A triquetra também foi adotada como símbolo da trindade no medievo nórdico (MacLeod & Mees, 2006, p. 128; Historiska, 2020).


Imagem 18: Detalhe da cena sacrificial, estela de Stora Hammars I, séc. IX-X, Museu aberto de Bunge, Gotland, Suécia. Foto de Munir Lutfe Ayoub/NEVE, 2019. É talvez a representação mais famosa de um valknut, totalmente inserido dentro de um contexto ritual e religioso – cercado de pássaros, sacrifício e guerreiros armados, uma situação objetivamente relacionada ao deus Odin.

Equívocos contemporâneos: “Valknutr (...) expressa pela lei evolutiva do nascer/ser/desaparecer, rumo a um novo começo” (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, p. 410).  O conceito de evolução na religiosidade e espiritualidade é moderno, derivado do evolucionismo oitocentista, sem qualquer tipo de evidência na Era Viking.
“Valknut (...) era utilizado como amuleto de proteção” (Símbolos Vikings, Educacional.com). Não existem evidências objetivas do uso do valknut como amuleto na Era Viking.

3.      Espiral e labirinto
Na Idade do Bronze Nórdica o espiral era conectado ao culto solar e a guerra, com a carruagem, embarcações e ao movimento do Sol. Na Idade do Ferro, o Sol passa a ser personificado e figurado, diminuindo as abstrações e elementos não figurativos (Wang, 2017, p. 6, 10).


Imagem 19: Estela de Väskinde, séc. V-VI, Museu de Gotland, Suécia. Foto de Munir Lutfe Ayoub/NEVE, 2019. A espiral no período Vendel era geralmente representada associada a figuras de animais, mais comumente serpentes, mas também a seres humanos em cavalos.

A maioria das representações simbólicas em formato espiralado da Escandinávia apareceram durante os períodos das migrações e Vendel, especialmente na ilha de Gotland. A grande parte dos especialistas a conectam ao culto solar. O súbito desaparecimento de suas representações neste local é visto por alguns pesquisadores como indício de catástrofes climáticas (535-536 d.C., relacionadas ao mito do Fimbulwinter, advinda das consequências climáticas do vulcanismo, como perda das colheitas, fome, frio, abandono das vilas, etc). As imagens de discos solares e espirais solares em movimento (conectadas ao culto do Sol) das estelas pintadas da ilha de Gotland do século V e VI d.C. diminuem dos monumentos da ilha após o século VI e cederam lugar a imagens de heróis e deuses da Mitologia Nórdica, muito comuns no posterior período Viking. Após um período de grandes erupções vulcânicas, a visibilidade do Sol é interrompida por meses e até mesmo por anos (Price; Gräslund, 2012, pp. 428-443).



Imagem 20: Detalhe da estela Stenkyrka Lillbjärs III (G 268), Gotland, Suécia, séc. IX, atualmente parte do acervo do Historiska Museet, Estocolmo. Foto de Munir Lutfe Ayoub/NEVE, 2019. Uma das representações figurativas mais complexas realizadas durante a Era Viking, possuindo três símbolos geométricos (valknut, triskelion e espiral), um cavaleiro e uma valquíria portando um corno. O tema de escudos com espirais também foi representado em pingentes de valquírias: Wickham Market (Suffolk, séc. IX, Museu Colchester); Vrejlev (séc. IX, Museu Nacional da Dinamarca); Tissø séc. IX, Museu Nacional da Dinamarca).

Apesar de ter diminuído muito na iconografia do período Viking, a espiral ainda ocupa posição em alguns monumentos. Em Lillbjärs, um cavaleiro porta um escudo com uma espiral, ao lado de um valknut e um triskelion de cornos e em sua frente, uma valquíria o recepcionando. Aqui o sentido solar talvez não seja tão importante, mas pode ser que neste caso, simbolismos solares foram transferidos a Odin – pois o contexto da cena é totalmente odinista. A espiral seria assim uma proteção ao guerreiro? Em amuletos encontrados em tumbas femininas de Birka, onde observamos a representação central de uma espiral, arqueólogos identificam este objeto como sendo uma representação de escudo – neste caso, o objeto teria sido utilizado para proteção mágica individual (Gräslund, 2005, p. 385). Snorri Sturluson menciona que escudos eram denominados de “Sol no navio”. Vários elementos da literatura e mitologia nórdica indicam que escudos eram vistos como símbolos do Sol (a exemplo do kenning para escudo: skipsól, Wang, 2017, p. 14, 25). Talvez tenha ocorrido uma continuidade na vinculação do astro rei com espirais e escudos, mas na iconografia foram transferidos para contextos odinistas.




Imagem 21: Amuleto em forma de escudo com suástica espiralada, tumba feminina de Birka (Bj 954), Era Viking (Gräslund, 2005, p. 385).



Imagem 22: Labirinto da igreja de Fröjel, Gotland, Suécia, séc. XIV. Foto de Munir Lutfe Ayoub/NEVE, 2019. A ilha da Gotlândia possui mais de 500 labirintos de pedra criados na Idade Média.



Imagem 23: Labirinto (trojaborgar) em Maria kirkko (Igreja de Santa Maria), Turku, Finlândia, séc. XV. Foto de Vitor Menini/NEVE (2019).

Uma forma diferenciada de espiral que ocorria na Escandinávia eram os labirintos Sámi. Geralmente eram estruturas de pedra, seguindo uma tendência circular, em formato oval ou em forma de ferradura de cavalo. A função destes locais é controversa, mas geralmente são atribuídas relações com rituais e práticas mágicas (Sampaio, 2017). Também são encontradas pinturas, esculturas e ornamentações de labirintos de estilo Sámi em dezenas de igrejas da Escandinávia Medieval.
Os labirintos que ocorrem nas igrejas nórdicas não seguem o padrão europeu, conhecido como modelo de Chartres (comum em pinturas e pavimentações). Em vez disso, são frequentemente encontrados os trojaborgar. Pesquisas efetuadas nas igrejas medievais de Gevninge, Båstad e Östra Karup indicam que elas possivelmente foram utilizadas como símbolos apotropaicos, protegendo o portão e a abertura para o coro da igreja. No momento em que estes labirintos foram perdendo espaço nas igrejas, eles continuaram a existir no ambiente costeiro como protetores da pesca e caça até pouco tempo (Swärd, 2012 p. 40).
Equívocos contemporâneos: “Espiral: o movimento cíclico da introversão e extroversão, involução e evolução” (Mistérios nórdicos, Mirella Faur, 2007, p. 410). A extroversão e introversão são conceitos modernos, derivados da Psicologia e Psicanálise, enquanto a evolução é um produto do Oitocentos. Nenhuma delas pode ser aplicada ao medievo nórdico.

4.      Nó quadrifólico - Símbolo de Hablingbo (Tetragrama, Nó de Salomão, St. Hanskors, Bandknutar, Tristramsknoten)
Um enigmático símbolo que está pintado na estela Hablingbo Havor II (SHM 21879), datada entre os séculos V ao VII d.C. Não existem estudos que comprovem exatamente qual o significado deste símbolo neste monumento. Uma publicação, analisando o motivo de serpentes logo abaixo ao quadrifólio do monumento, relaciona as imagens com relação a simbolismo marinhos no mundo nórdico, onde a figura do dragão estaria vinculada a proteção de viagens e das embarcações (Pearl, 2014, p. 149). O nó quadrifólico também aparece na arte germânica do período Vendel em outros materiais, como bracteatas (IK 297, Lyngby, Dinamarca), o que sugere um simbolismo mágico em amuletos de uso pessoal, mas com significado ainda indefinido.


Imagem 24: Estela Hablingbo Havor II (SHM 21879), séc. V-VII d.C., Museu de Gotland, Suécia. Foto de Munir Lutfe Ayoub/NEVE, 2019.


Imagem 25: Fragmento da tapeçaria de Oseberg, Suécia, séc. IX d.C., reconstituição de Mary Storm (1939-1940). Fonte da imagem.  O nó quadrifólico foi representado ao lado de suásticas. Ambos os símbolos parecem estar relacionados ao contexto fúnebre da cena. Um nó quadrifólico isolado foi representado ao lado de uma figura masculina portando um elmo com cornos e espada na mão.

Durante a Era Viking este símbolo permaneceu com esparsas aparições, a exemplo da tapeçaria de Oseberg (datada do século IX d.C.). Várias representações foram realizadas de forma isolada e em outras, ele aparece ao lado de suásticas, sugerindo um significado próximo ou relacionado ao contexto fúnebre do conjunto. Em todo caso, é possível que ele também tivesse vínculo com os rituais a Odin (sem maiores evidências) ou então a rituais de morte (mais provável).


Imagem 26: Nós quadrifólicos na pia batismal de arenito da Igreja de Näs, Västergötland, Suécia, 1200 d.C. Fonte da imagem: Höök, 2015, p. 33. Os símbolos integram-se a um conjunto de esculturas de nós que perfazem quase toda a superfície do objeto, dando um sentido estético ao significado de proteção.

Após a cristianização escandinava, seu uso foi relacionado a João Batista e denominado de Sankt Hanskors na Suécia. Era esculpido em pias batismais como objeto de proteção contra os males que poderiam afligir a criança antes do batismo, considerada ainda pagã. Os pais queriam proteção, ao mesmo tempo que buscavam que o filho pudesse adentrar aos céus no futuro. As cordas e os nós do símbolo possuíam o significado de amarração e controle (Höök, 2015, p. 33).
Nos calendários medievais suecos, o dia de João Batista (24 de junho) era marcado com este símbolo. Também era gravado em portas para impedir a entrada de forças malignas e infortúnios para os seus habitantes (Cronsioe, 2010). Os ornamentos pagãos em forma de nós foram transformados em símbolos pela arte românica, tornando-se instrumentos de proteção contra o mal (Ullén & Ljungstedt, 2003, p. 34), mas ao mesmo tempo, são também decorativos (Historiska, 2020).



Imagem 27: Triquetra, Nó quadrifólico e bandknutar, Pia batismal, Igreja de Remmarlöv (Escânia, Suécia), 1200 d.C., Fonte da imagem. 

As pias batismais são excelentes fontes iconográficas para o estudo do simbolismo animal e sua associação com bestiários medievais, hagiografia, narrativas bíblicas, história da Escandinávia, etc. Elas apresentam farto simbolismo geométrico, figuras animais e humanas, cenas históricas e cotidianas, possuindo extensa morfologia e variações. Na Escandinávia, elas apresentam muitas vezes conjugadas a runas, imagens e símbolos do paganismo (como em Norum, Suécia). Essa ambiguidade religiosa possuía contextos políticos e sociais, refletidos na arte monumental (Boyer, 1987, p. 61).

5.      Pentagrama (hekselås, marekross, tussestjerne)
O pentagrama não é um símbolo presente na Escandinávia antes da cristianização. De origem oriental, ele se torna comum após o século XII, tanto com a posterior popularização dos grimórios, quanto pela presença do folclore mágico popular, presente em diversas igrejas sob a forma de grafites e marcas. Estas tanto podem significar expressões de agradecimento (embarcações), quanto marcas de proteção contra o mal (especialmente formas circulares) (Heath, 2014). O pentagrama foi utilizado para afastar o diabo, as bruxas e os demônios (hekselås) e identificado a Maria (Marekross) nas Igrejas medievais suecas (Källström, 2017, p. 6). Nos registros rurais, ele foi denominado de trollfot, markors, älvkors, häxlås (Historiska, 2020). O símbolo também foi utilizado na Escandinávia medieval para identificação da posse de objetos, contra roubos, marcas de gado e conjuração do mal, sendo associado aos gigantes (trolltegn, tussestjerne) (Boyer, 1986, p. 115).
Outra utilização do pentagrama na Escandinávia medieval foi em marcas de tijolos na construção das igrejas, especificando associações dos pedreiros a corporações, mas ao mesmo tempo, também utilizados como símbolos da proteção popular contra os males, como na catedral de Turku (Stenlund, 2017, p. 479-486).
   
 



Imagem 28 e 29: Pentagrama da igreja de Ala, Gotlândia, Suécia, séc. XII (Fonte: Källström, 2017, p. 5); Símbolos encontrados na Catedral de Turku, Finlândia (séc. XIV). As marcas abaixo do pentagrama simbolizam as chaves de São Pedro (Stenlund, 2017, p. 482).

No medievo nórdico o pentagrama possuía dois tipos de representações: uma tradicional, com a forma da estrela de Salomão na posição normal ou invertida (a associação desta inversão com o diabo foi produzida na modernidade), geralmente gravada na forma de grafites nas paredes de Igrejas e casas. Outra, mais elaborada e artística, esculpida entrelaçada com um círculo central, seguia a tradição de esculturas em forma de nós de períodos mais antigos e quase sempre inseridas em pias batismais.



Imagem 30: Fonte batismal, Igreja de Ekeby (Escânia, Suécia), 1200 d.C., Fonte da imagem. O pentagrama é integrado a um círculo central e encontra-se ao lado de relevos de nós ornamentais.

Após o medievo, a popularidade do símbolo tem continuidade. Parteiras da Suécia do Setecentos utilizavam pentagramas para proteção de crianças; elas também eram colocadas em portas de casas, estábulos, camas, berços, esculpidas com faca na madeira ou pintadas com giz ou cera vermelha (Hendriks, 2016, p. 2).



Imagem 31: Pentagrama, pia batismal, Igreja de Fulltofta (Escânia, Suécia), séc. XII. Fonte da imagem. Esta bela representação de pentragrama filia-se à antiga tradição de símbolos entrelaçados em nós, presentes especialmente em triquetas e valknutes.

6.      Cruz Troll (Trollkors)
No medievo cristão existia a visão de que uma criança recém nascida era “pagã” e que corria o risco de ser levada pelo diabo – um verdadeiro risco de vida. Havia o medo de que um feiticeiro substituísse a criança antes do batismo, o que gerava a necessidade do uso de vários objetos mágicos para proteção da criança. Estes também seriam usados para conceder uma boa vida futura para o pequeno cristão. Essas crenças e práticas perduraram do medievo até o século XIX na Suécia (Höök, 2015, p. 13). A grande maioria das proteções mágicas era direcionada para os trolls e feiticeiras – que poderiam substituir os filhos. O recém-nascido (“pagão”) era vigiado de perto, o fogo nas lareiras devia queimar constantemente para afugentar os poderes do mal, objetos de ferro e livros sagrados eram colocados no berço. Na casa do recém-nascido ainda não batizado, todas as janelas e portas deviam ficar permanentemente fechadas e nenhum estranho podia entrar (Höök, 2015, pp. 13-15).


Imagem 32: Cruz Troll (Trollkors), Brogården, Suécia, sem datação, provavelmente século XIX. Fonte da imagem Esta representação de cuz geralmente era esculpida em portas, janelas e locais próximos a caminhos.

As cruzes troll eram amuletos com uma cruz latina incisa ou ainda, marcas de cruzes realizadas em portas, janelas e objetos móveis, realizadas com a intenção de proteger contra malefícios. Sua origem provém do folclore escandinavo moderno. Estas marcas também são inseridas em potes ou recipientes para proteger alimentos (Ålenius, 1943, p. 91).


Imagem 33: Pingente “Futhark troll cross”, vendido no Brasil pelo site Philip Mead como sendo “antigo amuleto dos povos escandinavos”  

Na década de 1990 o artesão sueco Kari Erlands inventou um novo símbolo com o nome de Trollkors, utilizando a runa Othala (Odal) do Futhark antigo (Frej, 2016). O símbolo se propagou pela internet e transforma-se equivocadamente num suposto “objeto da Era Viking”, propagado mesmo no Brasil: “Acreditavam -se que a Cruz de troll tinha o poder de afastar os trolls e elfos dos povos vikings” (Símbolos nórdicos e seus significados, Elizangela Assis, internet). O verbete Asatru da Wikipedia em português, inseriu a cruz troll como sendo um pingente do folclore sueco (ao lado de uma imagem do Valknut e Mjollnir), o que também é um erro.
Equívocos contemporâneos: “Cruz Troll (...) usado por los primeiros pueblos escandinavos como uma protecion contra los trolls y elfos” (Símbolos de poder nórdicos). A cruz troll é uma invenção moderna (em sua forma rúnica) e a folclórica é muito posterior ao cristianismo ser introduzido na Escandinávia.


7.      Cruz élfica (ellakors, ellakors, älvkors)
Amuletos criados para prevenir doenças entre as crianças, geralmente feitos de prata e utilizados na Dinamarca e Suécia do século XVI até o século XIX (Höök, 2015, p. 19). Os elfos eram considerados originadores de vários tipos de doenças, como erupções cutâneas, doenças de pele até mau hálito. Para ser eficiente, a cruz ou amuleto deveria ser de prata e carregada junto ao corpo e dentro da roupa, sem ser visível externamente. Podia também ser utilizada por adultos doentes. Não podia ser vendida e era alojada junto ao túmulo do seu usuário, quando este morria (Höök, 2015, p. 20).


Imagem 34: Cruz élfica (Ellakors), pingente de prata, Västergötlands Museum, Suécia. Sem datação, provavelmente depois do século XVIII. Fonte da imagem. 

8.      Vegvísir e ægishjálmr
Dois símbolos mágicos que surgem nos tempos modernos, não sendo conhecidos durante a Era Viking.
O Vegvísir foi um signo mágico utilizado para encontrar o caminho e devido ao seu formato semelhante a uma rosa dos ventos, foi comparado a uma bússola (Zarrillo, 2018, p. 29).
O Ægishjálmur foi citado primeiramente no Fáfnismál 16, 17 e 19 (Codex Regius da Edda Poética). Neste poema éddico, o símbolo traria vitória a seu possuidor (segundo o dragão Fáfnir), e no mesmo poema, alude-se a pertencer ao tesouro de Sigurðr, de onde se deduz que estaria gravado em um elmo. Ao mesmo tempo, essa descrição de um objeto mágico na cabeça de Fáfnir tem relação com uma tradição européia que remonta aos gregos e que sobreviveu até o fim da Idade Média: de uma pedra que os dragões possuíam em suas cabeças (snakestone ou dracontite), utilizada para fins curativos; e por outro lado, com o olhar mortífero que este tipo de monstro teria (o “olhar de fogo”). Em algumas sagas islandesas, como Sverris saga 38, o símbolo também é citado como proteção nas batalhas.


Imagem 35: Ægishjálmur no manuscrito GKS 2367 4to, página 14r (Codex Regius da Edda em Prosa), séc. XIV. Segundo o pesquisador Kári Pálsson (comentário na internet), trata-se de um acréscimo posterior ao manuscrito, pela diferença de cor e textura, possivelmente realizado no século XVI. Segundo os pesquisadores Teresa Dröfn Freysdóttir Njarðvík e Rune Hjarnø Rasmussen (comentários na internet), o desenho foi realizado ao lado do texto de Snorri – na cena onde o deus Thor enfrenta a serpente do mundo. Ainda não existem estudos publicados sobre este tema. Foto de Rune Hjarnø Rasmussen (Universidade de Uppsala, internet, 2019).


Imagem 36: Ægishjálmur no manuscrito AM 756 4to, 10v, séc. XV (transcrição da Edda em Prosa). Possivelmente trata-se de uma inserção imagética posterior à escrita do manuscrito, talvez no século XVI, ainda sem estudos. Os desenhos foram realizados na parte inferior da página. Fonte


Para o pesquisador alemão Rudolf Simek (2007, p. 2) as características terríveis do Ægishjálmur foram originadas do classicismo, derivados do grego aigis (como o escudo de Zeus e a capa de Pallas Atenas). A palavra grega aigis pode ter se tornado elmo do terror na etimologia folclórica como resultado da similaridade fonética com o nórdico œgr, terrível. E apesar da derivação etimológica, Ægishjálmur não teria relação com o gigante marinho Ægir. Alguns especialistas traduzem Ægishjálmur como leme do pavor ou de Æegir, devido ao seu formato nos grimórios, um círculo formado de oito braços em forma de tridentes, assemelhando-se ao leme de roda das embarcações. O problema é que esse tipo de instrumento náutico só foi conhecido na Escandinávia a partir do século XIII: os vikings utilizavam um remo transversal como leme. Como Æegir era uma divindade relacionada ao mar, talvez os eruditos nórdicos do final do medievo tenham fundido a este folclore o tridente de Netuno, explicando a sua morfologia (ou mesmo o tridente do demônio, utilizado no imaginário cristão). Segundo Macleod e Mees (2006, p. 252), o Ægishjálmur foi uma forma cruzada e adaptada do símbolo tvímadr, presente no calendário rúnico do século XIII.


Imagem 37: Ægishjálmur, Manuscrito Huld (ÍB 383 4to), 25v, 1860. Fonte.  


Imagem 38: Vegvísir, Manuscrito Huld (ÍB 383 4to), 26v, 1860, Fonte. 



Recentemente encontramos uma referência de um vaso cerâmico encontrado em Hedeby na década de 1970, apresentando suásticas e uma figura muito semelhante ao Ægishjálmur. Portanto, graficamente este símbolo já era conhecido  durante a Era Viking, mas talvez com significados diferentes do registrado pela literatura medieval e depois pelos grimórios islandeses. A cena inclui cinco cervídeos, junto a três suásticas e o dito símbolo cruciforme, logo acima de um dos cervos. Referência da imagem: Hahn, K-D. 1973: Ein GefaB mit Tierfries aus Haithabu. Berichte iiber die Ausgrabungen in Haithabu. Bericht 6. Das archaologische Fundmaterial Il. Neumtinster.





Equívocos contemporâneos: em vários sites, canais do youtube, livros e revistas é generalizado que o vegvísir foi uma bússola viking: “Era utilizada pelos vikings para diversas viagens como um guia para que o caminho não fosse perdido” (Símbolos nórdicos, Dicionário de Símbolos). Em primeiro lugar, este símbolo é bem posterior à Era Viking. Em segundo, os nórdicos da Era Viking não conheciam a bússola e nem o timão (leme redondo) para navegação. Foi somente a partir do século XIII que a Europa começou a utilizar um eixo magnetizado inserido em uma rosa dos ventos (a bússola como conhecemos e não apenas um ponteiro/imã) (Hernández, 2020).


*Nota
Este ensaio faz parte da pesquisa Simbolismo religioso nórdico em monumentos da Era Viking e na Europa Medieval(Lattes/PPGCR-UFPB). Vários resultados desta pesquisa já foram apresentados em eventos acadêmicos: Conferência: A religião dos vikings: novas perspectivas, III Feira Medieval e VI Simpósio de História, Cultura e Política. da PUC-PR, 2019; Conferência: La religion nórdica en la Era Vikinga, Universidad Complutense de Madrid, 2018; Conferência: As relações culturais entre Escandinávia e Eurásia na Era Viking, I Simpósio Nacional de Estudos Medievais da UFSJ, 2018; Palestra: Animais, suásticas e símbolos celestes na Escandinávia (séc. V-XI d.C.), V Colóquio de Estudos Vikings e Escandinavos, 2017.

Agradecimentos:
Helena Bure Wijk, Eirik Westcoat, Susan Tsugami (NEVE), Vitor Menini (NEVE), Victor Hugo Sampaio (NEVE), Munir Lutfe Ayoub (NEVE), Pablo Gomes de Miranda (NEVE) e Leandro Vilar Oliveira (NEVE).

Referências bibliográficas:
ÅLENIUS, Nils Olof. Skyddet för födan. Årsboken Uppland, 1943, pp. 86-91.
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