terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Mitos nórdicos na Arte: guia visual

 


Johnni Langer (NEVE/RECEPTION)

A Mitologia Nórdica fascina o Ocidente desde a aurora da Modernidade. Ela está presente nas mais diversas formas de arte e mídia, das óperas à literatura, dos quadrinhos à séries televisivas e variados outros tipos de representações imagéticas. O intento deste guia é de fornecer ao leitor um quadro sistemático das obras artísticas mais importantes envolvendo o tema dos mitos nórdicos, de um ponto de vista estético e de recepção (segundo os critérios de Zernack, 2019; Ljøgodt, 2012; Wilson, 1997; Boyer, 1997). Apresentamos os dados de cada obra e onde ela pode ser encontrada, visitada e conhecida (caso seja possível). Trata-se assim de um guia visual e não de um estudo analítico de cada imagem. Para quem tiver interesse em se aprofundar nas interpretações de história da arte e estudos de Mitologia Nórdica destas imagens, consulte a bibliografia final.


PINTURAS

Ymir suga o leite de Audhumla (Ymer dier koen Ødhumbla), Nicolai Abraham Abildgaard, 1777, óleo sobre tela, Museu Nacional de Artes da Dinamarca, Copenhague.

Thor combate a serpente de Midgard (Thor Battering the Midgard Serpent), Johann Heinrich Füssli, 1790, óleo sobre tela, Academia Real Inglesa, Westminster, Inglaterra.

O festin de Aegir (Ægirs Gjæstebud), de Constantin Hansen (1861), Museu Nacional de Artes da Dinamarca, Copenhague.

Loki e Sygn (Loke og Sigyn), Christoffer Wilhelm Eckersberg, 1819, óleo sobre tela, Museu Nacional de Artes da Dinamarca, Copenhague.

A morte de Balder (Balders død), Christoffer Wilhelm Eckersberg (1817), Real Academia Dinamarquesa de Artes, Copenhague.

Valquírias cavalgando para a batalha (Valkyrior ridande till strid), Johan Gustaf Sandberg, 1820, óleo sobre tela, Museu Nacional de Belas-Artes da Suécia, Estocolmo.

Bragi sentado com a harpa, Iduna em pé atrás dele (Brage sittande vid harpan, Idun stående bakom honom), Nils Blommér, 1846, óleo sobre tela, Museu de Artes de Malmö, Suécia.

O espírito das águas e as filhas de Aegir (Näcken och Ägirs döttrar), Nils Blommér, 1850, óleo sobre tela, Museu Nacional de Belas-Artes da Suécia, Estocolmo.

Freyja procurando o seu marido (Freja sökande sin make), Nils Blommér, 1852, óleo sobre tela, Museu Nacional de Belas-Artes da Suécia, Estocolmo.

Thor e Hymir (Thor og Hymer), Lorenz Frølich, 1855, óleo sobre tela, coleção particular.

Loki e Sygn (Loke och Sigyn), Mårten Eskil Winge, 1863, óleo sobre tela, Museu Nacional de Belas-Artes da Suécia, Estocolmo.

A valquíria (Valkyria), Peter Nicolai Arbo, 1869, óleo sobre tela, Museu Nacional de Arte, Arquitetura e Design da Noruega, Oslo.

A caçada selvagem (Åsgårdsreien), Peter Nicolai Arbo, 1872, óleo sobre tela, Museu Nacional de Arte, Arquitetura e Design da Noruega, Oslo.

A batalha de Thor contra os gigantes (Tors strid med jättarna), Mårten Eskil Winge, óleo sobre tela, 1872, Museu Nacional de Belas-Artes da Suécia, Estocolmo.


Valquíria, Carl Emil Doepler, 1876, ilustração para a ópera Der Ring des Nibelungen de Richard Wagner, coleção particular.

Gefion, Lorenz Frølich, 1888, pintura mural, Palácio de Frederiksborg, Hillerød, Dinamarca

A valquíria (Die Walküre(, Ferdinand Leeke, 1890, óleo sobre tela, coleção particular.

Freyja e o colar (Freyja and the Necklace), James Doyle Penrose, 1890, óleo sobre tela, coleção particular.

Iduna, filha de Slvad (Iduna, Daughter of Svald), James Doyle Penrose, 1890, óleo sobre tela, coleção particular.

Valhala (Walhalla) Max Brückner, 1896, aquarela e óleo, cenário da ópera Der Ring des Nibelungen de Richard Wagner, localização do original desconhecida.

Freya, Anders Zorn, óleo sobre tela, 1901, Museu Zornsamlingarna, Mora, Suécia.

Freja, John Bauer, 1905, óleo sobre tela, coleção particular.

As donzelas do Reno clamam ajuda ao deus Loki (The Rhine maidens ask for the help of God Loki), Arthur Rackham, 1910, aquarela, Biblioteca Pública de Nova Iorque, EUA.

Freya, Arthur Rackham, 1910, aquarela, localização do original desconhecida.

A punição de Loki (The Punishment of Loki), James Doyle Penrose, 1912, óleo sobre tela, coleção particular.

Thor e Krungnir (Thor and Krungnir), Boris Vallejo, 1988, óleo sobre tela, coleção particular.


ESCULTURAS



Loki, Hermann Ernest Freund, 1822, Gliptoteca Ny Carlsberg, Copenhague, Dinamarca.

Odin, Hermann Ernest Freund, 1829, Gliptoteca Ny Carlsberg, Copenhague, Dinamarca.


Thor, Hermann Ernest Freund, 1829, Gliptoteca Ny Carlsberg, Copenhague, Dinamarca.

Odin, Bengt Fogelberg, 1830, Museu Nacional de Belas-Artes da Suécia, Estocolmo.

Thor, Bengt Fogelberg, 1844, Museu Nacional de Belas-Artes da Suécia, Estocolmo.

Idunna (Idun), Julius Middelthun, 1852-53, Museu Nacional de Arte, Arquitetura e Design da Noruega, Oslo.

As três nornas, Frizo das Edddas (Das Edda-Frieze), Friedrich Wilhelm Engelhard, 1857, Schlosse Marienburg, Hanover, Alemanha.

Idunna (Idun),  Herman Wilhelm Bissen, 1858, Gliptoteca Ny Carlsberg, Copenhague, Dinamarca.


Vala, Søren Lexow-Hansen, 1886, Museu Nacional de Arte, Arquitetura e Design, Oslo.
Odin, Friedrich Wilhelm Engelhard, 1888, Landesmuseum, Hannover, Alemanha.

Heimdall, Rolf Adlersparre, 1897, ponte Djurgårdsbron, Estocolmo, Suécia.

Fonte de Gefion (Gefionspringvandet), Anders Bundgaard, 1908, parque Churchill, Copenhague, Dinamarca.

Valquiria,  Stephan Sinding, 1908, parque Churchill, Copenhague, Dinamarca.

Thor, Carl Johan Bonnesen, 1901, Cervejaria Carlsberg, Copenhague, Dinamarca.

Thor pescando (Tors fiske), Anders Wissler, 1903, praça Mariatorget, Estocolmo, Suécia.

A punição de Loki (Lokes straff), Idda Maton, 1905, edifício da prefeitura antiga, Estocolmo, Suécia.

O poço de Ymir (Ymerbrønden), Kai Nielsen, 1913, Museu Faaborg, Faaborg, Dinamarca.

A batalha de Thor contra os gigantes (Thors kamp med Jætterne), Carl Johan Bonnesen, 1918, entrada da fábrica Hastrup, Odense, Dinamarca.


Fontes das imagens: todas imagens são públicas e disponíveis em WikiArt, Wikipedia, Wikimedia, Museu Nacional de Artes da Dinamarca, Museu Nacional de Belas-Artes da Suécia e Museu Nacional de Arte, Arquitetura e Design da Noruega.


Referências e bibliografias:

BOYER, Régis. Héros et dieux du Nord: guide iconographique. Paris: Flammarion, 1997.

GRANDIEN, Bo. Painting and Sculpture in Denmark/Sweden/Norway. In: In: ROSS, Margaret Clunies (Org.). The Pre-Christian Religions of the North: Research and Reception, Volume I: From the Middle Ages to c. 1830. Turnhout: Brepols Publishers, 2018, p. 447-520.

LANGER, Johnni. Recepção nórdica: guia metodológico e bibliográfico. Blog do Núcleo de estudos Vikings e Escandinavos, 26 de junho de 2023.

LANGER, Johnni. A pintura "Thor combate os gigantes" de Mårten Eskil Winge, 1872. Blog do Núcleo de estudos Vikings e Escandinavos, 9 de junho de 2023.

LANGER, Johnni. O escultor da deusa: Anders Bundgaard e a fonte de Gefion em Copenhague. Neve no Instagram, 7 de agosto de 2023.

LANGER, Johnni. Loki em um olhar feminino: Idda Maton e a estátua de Loki. Neve no Instagram, 7 de julho de 2023.

LANGER, Johnni. Quando o Mito foi História: os usos da Mitologia Nórdica no livro "História Ilustrada da Dinamarca para o povo", 1854. FÊNIX, 2022. 

LANGER, Johnni. Religião, Vikings e arte: reflexões sobre o medievo na pintura 'St Sigfrid döper allmoge i Småland', Revista de História Comparada vol. 15, 2021, n. 1. 

LANGER, Johnni. Unveiling the Destiny of a Nation: The representations of Norns in Danish Art (1780-1850), Perspective: Journal of art history, January 2021, pp. 1-23 (National Gallery of Denmark). 

LANGER, Johnni. Imagining national belief through art: Old Norse Religion and the Vikings in J. L. Lund´s painting “Nordisk offerscene fra den Odinske periode” (Nordic sacrificial scene from the period of Odin, 1831), RHAC: Journal of Art History and Culture vol. 2, n.1, 2021. 

LANGER, Johnni. Valkyries and Danish National Symbolism in the 19th Century (Views of a Nordic Past), NORDICS.INFO: KNOWLEDGE ON THE NORDICS, 2021.05.26 (School of Culture and Society, Aarhus University, Denmark). 

LANGER, Johnni. Horned, barbarian, hero: the visual invention of the Viking through European art (1824-1851), Scandia Journal of Medieval Norse Studies vol. 4, 2021, pp. 131-180.

LANGER, Johnni. O pintor alemão que popularizou Wagner e os Vikings. Blog do Núcleo de estudos Vikings e Escandinavos, 7 de abril de 2020.

LANGER, Johnni. Quando os Vikings foram cavaleiros medievais! Blog do Núcleo de estudos Vikings e Escandinavos, 3 de abril de 2020.

LANGER, Johnni. Mitos nórdicos na Dinamarca: guia iconográfico. Blog do Núcleo de estudos Vikings e Escandinavos, 4 de agosto de 2018.

LJØGODT, Knut. ‘Northern Gods in Marble’: the Romantic Rediscovery of Norse Mythology. Romantik: Journal for the Study of Romanticisms, 1(1), 141–166.

MIRANDA, Pablo Gomes de. A Caçada Selvagem de Asgard, Nacionalismo e Mito na Noruega do Século XIX: considerações sobre a obra de Peter Nicolai Arbo. RODA DA FORTUNA 2017-1.

WILSON, David. Vikinger og Guder i Europæisk Kunst. Aarhus: Moesgård Museum, 1997.

ZERNACK, Julia; SCHULZ, Katja (Org). Gylfis Täuschung. Rezeptionsgeschichtliches: Lexikon zur nordischen Mythologie und Heldensage. Heidelberg: Universitätsverlag Winter, 2019.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Vikings e mitos nórdicos em Conan, o Bárbaro

 





 

Prof. Dr. Leandro Vilar Oliveira (NEVE)

Introdução

O escritor e poeta Robert Ervin Howard (1906-1936) escreveu centenas de contos e poemas, sendo um prolífico autor nas pulp fiction, revistas baratas que apresentavam histórias de fantasia, ficção científica, terror, aventura, romance e erotismo, que foram populares nos Estados Unidos nas décadas de 1920 e 1930. Howard se notabilizou por suas publicações nos gêneros da fantasia e do faroeste, no caso da fantasia destacam-se três personagens seus: Solomon Kane, Kull, o Conquistador e Conan, o Bárbaro.

Conan o bárbaro da Ciméria surgiu em 1932, quando sua primeira aventura intitulada A Fênix na Espada foi publicada na Weird Tales, uma das mais importantes revistas pulp da época. O icônico bárbaro da literatura de fantasia foi criado pelo escritor baseado em outro personagem seu, chamado Kull, o Conquistador, lançado em 1929 na mesma revista.

Howard decidiu se dedicar nos anos seguintes a escrever vários contos sobre esse guerreiro corajoso e impulsivo, que agia como mercenário, ladrão, pirata, mas também chegou a ser rei da Aquilônia e até teve seus atos de heroísmo. As aventuras de Conan se tornaram bastante populares, gerando inclusive um subgênero da literatura de fantasia chamado de espada e feitiçaria (sword and sorcery), que inspirou romances, novelas, contos, histórias em quadrinhos, filmes, séries e jogos de RPG.

À medida em que Howard trabalhava nas narrativas sobre Conan, ele foi expandido o mundo fantástico em que a trama ocorria, um mundo antigo contendo monstros e magia, tomado pela selvageria e a violência, esses eram os tempos da Era Hiboriana, uma época num passado fantástico inspirado na Europa, África e Ásia. E isso é visível na geografia criada por Howard para seu mundo fantástico.

Neste caso, além dessa geografia baseada um pouco na realidade, o autor também utilizou referenciais de nomes de lugares e de povos antigos para criar suas civilizações e países, além do evidente uso das referências mitológicas, destacando-se as de origem egípcia e mesopotâmica, embora que em algumas narrativas temos elementos da mitologia grega, indiana, eslava e nórdica.

Todavia, no geral, Howard fazia mais uso do nome de deuses e lugares mitológicos para citar em seus contos sobre Conan, ele não costumava aprofundar esses referenciais. Condição essa que quando pegamos os elementos mitológicos de origem nórdica, o leitor perceberá que pouca coisa foi escrita. Embora as aventuras de Conan tenham sido escritas também por outros autores, nesta análise optamos em usar apenas o material original produzido por Robert E. Howard, sendo assim, temos quatro fontes as quais encontramos referências à mitologia nórdica.

 As fontes

A primeira vez que encontramos referências a mitologia nórdica advém do conto de estreia do personagem, A Fênix na Espada (The Phoenix in Sword), nesta narrativa Conan é retratado como um homem de quarenta e poucos anos tendo se tornado rei da Aquilônia, estando este situado ao sul da Ciméria, sua terra natal.

Neste conto de introdução ao mundo fantástico da Era Hiboriana, que estava em início de construção, em um dos diálogos, Conan comenta sobre a geografia do mundo, citando alguns países e povos, então ele fala da Ciméria e que ao norte da sua terra natal havia os reinos que formavam Nordheim, estando situadas as regiões de Asgard onde viviam os aesires e Vanaheim, o lar dos vanires.

A segunda fonte que aborda a mitologia nórdica trata-se do conto Deuses do Norte (Gods of North), publicado em 1934 na revista Fantastic Fun. Esse é um conto a parte, publicado fora da Weird Tales, por ter sido rejeitado pelo editor. Como Howard tinha um acordo de quase exclusividade com a Weird, ele então mudou o nome de Conan para Amri, um dos nomes pelo qual o bárbaro é referido nos tempos que era ladrão. Em 1953 quando esse conto foi republicado ele foi intitulado A Filha do Gigante de Gelo (The Frost Giant’s Daughter), título original concebido por Howard, e que se conserva até hoje. Embora seja uma narrativa curta, ela recebeu algumas adaptações para os quadrinhos, e até para o desenho animado Conan the Adventurer (1992-1993).

A terceira fonte é o conto A Rainha da Costa Negra (Queen of the Black Coast) publicado também na Weird Tales, no ano de 1934. Nesta narrativa Conan se une ao bando de piratas de Bêlit, uma bela princesa que abandonou a vida de nobre para se tornar uma capitã pirata, passando a saquear as costas e portos de Argos e cercanias. Neste conto temos algumas breves referências aos estereótipos dos vikings e a mitologia nórdica.

Por fim, a quarta fonte na qual temos informações sobre os elementos da mitologia nórdica é o ensaio Era Hiboriana (Hyborian Age). Howard disse que começou a escrevê-lo ainda em 1932, mas esse ensaio somente foi publicado na revista The Phantagraph, em 1936, o que permitiu o autor atualizar algumas informações, já que ele escreveu vários contos nesse meio tempo. Todavia, o ensaio curiosamente não traz grandes novidades sobre os elementos de mitologia nórdica, pois basicamente Howard reutiliza informações já apresentadas em A Fênix na Espada e A Filha do Gigante de Gelo. Mas como é uma fonte originalmente escrita pelo autor, decidimos citá-la mesmo assim.

As referências aos vikings e a mitologia nórdica

No conto A Fênix na Espada, Conan é rei da Aquilônia, em certo momento ele conversa com um de seus funcionários de nome Próspero. Na ocasião mostra um mapa e diz que os reinos do Norte estavam faltando, então ele inicia um diálogo com Próspero dizendo que ao norte da Ciméria ficava Asgard e Vanaheim, duas terras as quais ele visitou em sua juventude.

“— Asgard e Vanaheim… — Próspero examinou o mapa. — Por Mitra, quase acreditei que esses países eram mitos.

Conan sorriu como um selvagem, tocando involuntariamente as cicatrizes em seu rosto:

— Você pensaria diferente, caso tivesse passado a juventude nas fronteiras ao norte da Ciméria! Asgard fica ao norte, e Vanaheim, a noroeste de lá. E a guerra nas fronteiras é perene.

— Como é esse povo do norte? — indagou Próspero.

— São altos, claros e de olhos azuis. O deus deles é Ymir, o gigante do gelo, e cada tribo tem seu próprio rei. Eles são ferozes e temperamentais. Lutam o dia inteiro e, durante a noite, bebem cerveja e cantam canções selvagens.

— Então acho que você é como eles — Próspero gracejou. — Ri, bebe bastante e gosta de boas canções; embora eu nunca tenha visto outro cimério que só bebesse água, risse pouco ou cantasse hinos lúgubres.

— Talvez seja por causa da região onde vivemos — respondeu o rei.

— Nunca houve terra mais sombria… repleta de montanhas e matas fechadas, sob um céu quase sempre cinza, com ventos que sopram espectrais em meio aos vales”. (HOWARD, 2017a, p. 21).

                 Neste diálogo de Conan com Próspero observamos a primeira menção de Howard as terras nórdicas, mais tarde referidas como Nordheim. Aqui temos a menção ao gigante de gelo Ymir, do qual voltaremos a tratar adiante, por sua vez, ao descrever os habitantes desses países, Conan se refere a eles como sendo altos, claros e de olhos azuis. Essas características voltam a serem apresentadas em A Rainha da Costa Negra, em que Howard escreveu: “Para os povos de climas exóticos, o norte era um reino labiríntico, quase mítico, povoado por gigantes ferozes de olhos azuis, que ocasionalmente desciam de suas fortalezas com tochas e espadas. Seus ataques nunca iam tão ao sul ao ponto de chegar a Shem, e aquela filha de Shem não fazia distinção entre um aesir, um vanir ou um cimério”. (HOWARD, 2018b, p. 84).

                Embora Conan seja várias vezes descrito como sendo alto, robusto, musculoso e tendo cabelos negros, ele é dito ter olhos azuis e pele branca, mas que ficava bronzeada, já que normalmente anda sem camisa. Além disso, os cimérios, aesires e vanires seriam povos aparentados, aqui temos características baseadas nos estereótipos dos vikings, embora hoje saiba que eles não fossem tão altos e nem todos eram louros e teriam olhos azuis. No tocante a Conan comentar que tais homens gostavam de beber, comer e cantar, essa é outra característica associada com os vikings, inclusive citada em algumas sagas. 

Inclusive os guerreiros desses povos usariam elmos com chifres, algo destacado no conto A Rainha da Costa Negra, em cuja narrativa ao descrever a aparência e traje de Conan, é dito: “Seu elmo com chifres de touro era igual aos utilizados pelos aesires de cabelos dourados de Nordheim; sua cota de malha e suas grevas eram dos melhores artesãos de Koth; as peças com elos de correntes que protegiam seus braços e pernas vinham da Nemédia; a lâmina em seu cinturão era uma espada longa aquiloniana e seu deslumbrante manto escarlate não poderia ter sido adquirido em outro lugar que não fosse Ophir”. (HOWARD, 2018b, p. 79).

A referência ao elmo com chifres é algo citado até em outras narrativas de Conan, tendo se popularizado nos quadrinhos, desenhos, filmes e jogos, sendo reflexo do estereótipo dos vikings surgido no século XIX, mas ainda vigente na primeira metade do XX.  É preciso recordar que na década de 1930, quando essas narrativas do Conan foram escritas, a Vikingmania estava em alta, e essa visão dos vikings como bárbaros ainda era bem forte, inclusive ela foi um dos fatores para inspirar Howard na criação de Kull e Conan, retratando-o os dois como bárbaros musculosos de pele branca bronzeada, embora fossem de cabelos negros longos, barba feita e olhos azuis.


Figura 1
: Conan confrontando dois guerreiros vanires. Ilustração de Frank Frazetta para Conan #2 (1969). Nota-se a presença dos elmos com chifres.

                 Em A Filha do Gigante de Gelo temos as principais referências a mitologia nórdica. Neste conto Conan ainda é jovem e atua como mercenário, sendo contratado para lutar pelos aesires, um povo louro, os quais viviam longos anos em guerra com seus vizinhos, os vanires, um povo ruivo. Conan acaba sendo o único sobrevivente do conflito, após derrotar os últimos dois vanires. Em meio ao frio e um cenário desolador ele avista uma misteriosa, sensual e bela mulher que aparece de repente.

“— Não consigo dizer — ele murmurou — se você é de Vanaheim e minha inimiga, ou se é de Asgard e minha amiga. Já viajei muito, mas nunca vi uma mulher assim. Seus cachos me cegam com seu brilho. Por Ymir, nem mesmo entre as filhas mais lindas dos aesires vi cabelos assim!

— Quem é você para jurar por Ymir? — Zombou ela. — O que sabe sobre os deuses do gelo e da neve?”. (HOWARD, 2018a, p. 258).

                A misteriosa mulher chama-se Atali, e diz ser filha de Ymir, o deus dos homens do Norte. Ela então convoca dois gigantes de gelo que atacam Conan. O cimério percebe que caiu numa armadilha e tem que lutar pela sua vida. Por se tratar de um conto curto, a história não explora mais outros elementos mitológicos que são citados como os nomes de Heimdul, Bragi, Niord e Valhala. Apesar disso, comentei o que foi apresentado.


Figura
2:
Conan encontrando Atali. Ilustração de Jay Anacleto para a revista Cimmerian: The Frost Giant Daughter (2020). Nesta versão, Atali é representada como ruiva e tendo dois ursos polares gigantes.

Nesta narrativa encontramos um elemento bem interessante baseado na mitologia nórdica: os gigantes de gelo, personagens que nos mitos são constantemente causadores de problemas para os deuses, embora que nem todos os gigantes sejam ameaças. No caso desse conto, os dois gigantes são descritos tendo a pele branca e fria como o gelo. Eles dois e Atali são ditos serem filhos de Ymir, o deus gigante cultuado pelos povos de Asgard e Vanaheim.

Na mitologia nórdica Ymir realmente é um gigante de gelo, embora não fosse uma divindade. Ele consiste num ser associado com os mitos de origem do cosmos e do mundo. Ymir é o ser primordial, de cujo corpo surgiu a raça dos gigantes, os quais se uniram a raça dos deuses oriunda a partir dos filhos de Buri (o primeiro deus). Mais tarde três netos de Buri, chamados Odin, Vili e Vé assassinaram Ymir e com as partes de seu corpo eles criaram o mundo.


Figura 3:
Conan confrontando os gigantes de gelo. Ilustração de Cary Nord para a revista Conan: The Frost-Giant's Daughter and Other Stories (2004).

 Quanto aos nomes dos guerreiros Heimdul, Bragi e Niord, eles são baseados em deuses nórdicos. Heimdul alude a Heimdall, o guardião de Asgard, Bragi vem de Bragi, o deus da poesia, Niord refere-se a Njörd, o deus dos mares. Em terceiro lugar temos a menção a Valhala, que no conto aparece como um local do pós-vida. Tal lugar não recebe detalhes na narrativa de Howard, porém, ele volta a comentá-lo em A Rainha da Costa Negra, escrevendo: “Conheci muitos deuses. O homem que os nega é tão cego quanto aquele que confia demais neles. Não penso em nada que existe além da morte. Pode ser a escuridão declarada pelos céticos nemédios, o reino de gelo e nuvens de Crom ou as planícies cobertas de neve e os salões abobadados do Valhalla do povo de Nordheim. Não sei e nem me importo”. (HOWARD, 2018b, p. 90).

Nesta citação temos Conan se mostrando cético quanto ao destino pós-morte, após ser indago por Bêlit, então o cimério cita alguns exemplos. O interessante é que o reino de gelo e nuvens que ele diz pertencer a Crom, lembra a descrição de Niflheim, um mundo de gelo e neblina da mitologia nórdica, e onde estaria situado Helheim, um dos mundos dos mortos. Por sua vez, Conan diz que o povo de Nordheim (os aesires e vanires) acreditavam em Valhalla, com seus salões abobadados. Nos mitos Valhala é o salão de Odin, o mais famoso dos mundos dos mortos na mitologia nórdica, para onde iam os guerreiros valorosos que morreram. Observa-se que Howard embora não tenha dado maiores detalhes sobre isso, utilizou duas localidades da mitologia nórdica em seu trabalho.

No ensaio Era Hiboriana (1936), Robert E. Howard retoma alguns comentários sobre Nordheim e seu povo. Aqui não há muitas novidades, já que ele volta a comentar sobre a aparência dos aesires e dos vanires, o fato de eles viverem numa região fria com densas florestas e campos cobertos por neve, além de serem povos bárbaros como os cimérios e pictos. Todavia, nesse ensaio ele escreveu que: “Ao Norte, bárbaros de cabelos amarelos e olhos azuis, descendentes dos selvagens loiros do ártico, puseram para fora dos países gelados o restante das tribos hiborianas, exceto o reino da Hiperbórea, que resiste à matança. Seu país se chama Nordheimr, e eles se dividem nos vanires ruivos de Vanaheim e nos aesires loiros de Asgard”. (HOWARD, 2017b, p. 255).


Figura 4:
Mapa do mundo de Conan durante a Era Hiboriana. No topo, os reinos de Asgard e Vananheim.

 

Em distintos momentos Conan diz que os aesires e vanires estavam em guerra, mas isso nunca é justificado nos contos, todavia, esse conflito é inspirado na mitologia nórdica em que ocorreu a guerra entre os ases e vanes, quando os dois clãs de deuses lutaram entre si e acabaram chegando a uma trégua em que Njörd e seus filhos Freyr e Freyja passaram a habitar Asgard. O ocorrido foi celebrado com a saliva dos deuses que foi depositada num caldeirão do qual originou Kvasir, um deus sábio e bondoso, fruto da paz estabelecida entre os dois clãs.

 Fontes:

HOWARD, Robert E. A Fênix na Espada. In: HOWARD, Robert E. Conan, o Bárbaro: Livro 1. Tradução de Alexandre Callari. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2017a, p. 12-43. 3v

HOWARD, Robert E. A Rainha da Costa Negra. In: HOWARD, Robert E. Conan, o Bárbaro: Livro 2. Tradução de Alexandre Callari. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2018b, p. 73-113. 3v

HOWARD, Robert E. Os Anais da Era Hiboriana. In: HOWARD, Robert E. Conan, o Bárbaro: Livro 1. Tradução de Alexandre Callari. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2017b, p. 249-270. 3v

HOWARD, Robert E. A Filha do Gigante do Gelo. In: HOWARD, Robert E. Conan, o Bárbaro: Livro 2. Tradução de Alexandre Callari. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2018a, p. 256-266. 3v

 

Referências

LANGER, Johnni (org.). Dicionário de mitologia nórdica: mitos, símbolos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015.

OLIVEIRA, Leandro Vilar. Vikingmania: dois séculos de construção da representação dos vikings. Scandia: Journal of Medieval Norse Studies, v. 5, p. 469-502, 2021.