sexta-feira, 3 de abril de 2020

Quando os Vikings foram cavaleiros medievais!




Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

Johnnilanger@yahoo.com.br


Na história dos nórdicos na recepção artística moderna, um dos momentos mais interessantes é a sua associação com a cavalaria medieval, um fenômeno cultural que ocorreu durante o início do século XIX.

Dentro do referencial em que a arte elaborou suas representações (num sentido militar: profissionais da cavalaria pesada; num sentido nobiliário: estritamente aristocrática e nobre), todo medievalista sabe que a cavalaria medieval possuem conotações associadas ao período que vai do século XII ao XV, tendo a França como epicentro sócio-cultural. Mas então, como teria surgido esse imaginário artístico moderno?

Em primeiro lugar temos que perceber que os artistas visuais e os escritores modernos não tinham contato com uma visão histórica da cavalaria medieval, ao contrário, eles consumiam obras medievais onde foram elaboradas as idealizações, fantasias e ideologias sobre a cavalaria. Especialmente as obras arturianas eram as preferidas, um mundo onde os cavaleiros medievais, acima de tudo, eram perfeitos modelos de virtude e comportamento, de paixão e aventura – é o que o historiador Jean Flori denomina de “mito da cavalaria” (2002, p. 196): a literatura medieval em língua vulgar celebra e transforma a cavalaria em mitos, onde os personagens são heróis ideais, valentes, sábios, intrépidos, virtuosos. Um ideal cavaleiresco, profano e ambíguo (p. 197).

No contexto da segunda metade do século XVIII, a origem da retomada europeia da literatura medieval, os artistas buscavam elementos para fugir ao Neoclassicismo que imperava nas artes em geral, mas também buscavam escapar do racionalismo iluminista que se impunha no momento. Logo, o período pré-romântico viu nascer um movimento que vai incendiar os intelectuais europeus. Ele vai buscar nos antigos mitos, epopeias e folclore, elementos que possam fornecer temas para uma arte contestadora do racionalismo (o sublime e a melancolia, que vão ser alguns dos temas preferidos do posterior Romantismo) e para fortalecer uma identidade nacional, que busca suas origens.

Paralelamente temos alguns movimentos literários que caminham numa direção semelhante a esse movimento estético referido, como o Sturm und Drang na Alemanha. E em 1762 o poema Ossian de James Macpherson torna-se uma febre na Europa, levando cada país a procurar suas próprias tradições mítico-folclóricas em particular, mas elevando o passado celta a um patamar absoluto – muitas obras posteriores vão confundir germânicos antigos com Celtas e nórdicos, seja na literatura ou nas artes visuais. Por exemplo, até final do século XIX os druidas serão o referencial estético de sacerdotes para todos estes povos antigos da Europa. A própria noção de “Norte” aqui precisa ser matizada – não se trata somente da Escandinávia, mas de todo o norte europeu que se mescla indiferentemente a um passado Celta e Germânico, tanto historicamente quanto linguisticamente. As fronteiras não são bem demarcadas, originando as “confusões” deste período.

Em 1755 inicia-se na Dinamarca o denominado Revival Nórdico (ou Renascimento Nórdico) que vai ser muito influente na França e nos países de línguas germânicas em geral. As Sagas e as Eddas passam a ser traduzidas, estudadas e recebem novas versões, mas mãos de jovens escritores empolgados. Mas como representar os antigos deuses e deusas? Como representar visualmente os antigos nórdicos? Não se conheciam nesta época as fontes visuais antigas e o estudo da cultura material do medievo era muito precário. Então, os pintores e escultores apelavam para a sua imaginação e os recursos que dispunham neste momento – e a cavalaria medieval filtrada pela literatura era uma excelente opção.

Acompanhar todos os estereótipos criados em torno dos nórdicos e suas conexões é complexo. Elaboramos uma tabela com dez estereótipos positivos e negativos sobre os vikings (a ser publicada na próxima edição da revista Scandia: “A invenção romântica do Viking”), que vão do medievo até o século XX, destacando os seguintes elementos: Aventura, Comportamento, Sociedade, Equipamentos, Guerra, Nacionalismo, Origem nacional, Abdução, Mulher nórdica, Ambiente e Comportamento. O que nos interessa diretamente aquí, a construção do Viking como um cavaleiro medieval, tem relação como o último elemento: o comportamento.

O estereótipo primeiramente teve inicio na França: “Tout ce que nous appelons esprit chevaleresque, nous le devons aux Scandinaves” (Cherade-Montbron, 1801, p. 266).* Em 1825 o escritor sueco Esaias Tégner publicava a sua versão de Frithiof, onde o herói protagonista possui diversos elementos de um cavaleiro medieval. No mesmo ano, na França criou-se a idéia de que foi no Norte europeu que teria nascido a cavalaria: “Ce qui prouve d´une manière incontestable que la chevalerie est venue du Nord”. (Lerebours, 1825, p. 176). A partir daí, varios outros intelectuais franceses continuaram a defender essa noção:

 “Oi aime à reconnaître que l´esprit de galanterie des Européens modernes est un héritage des Scandinaves, et que l´odinisme a été le berceau de la chevalerie” (Saint-Genies, 1824, p. XII)

“Il faut savoir que la Scandinavie, d´où sont sortis les Normands, est le véritable berceau de la chevalerie” (Hagberg, 1835, p. 245).

“L´Europe Méridionale et occidentale n´avait pas l´esprit de chevalerie avant l´invasion gothique et germanique” (Gräber, 1838, p. 85).

Desta maneira, o nórdico/normando torna-se não somente um herói do romantismo, mas também um modelo de virtude e bom comportamento dos tempos passados: “On a pu voir qu´il y avait dans les moeurs scandinaves, toutes rudes et barbares qu´elles étaient, quelque chose  de chevaleresque; pour l´exaltation de la bravoure, l´avidité de la glorie, la fraternité des armes, l´amour du beau sexe, le goût de la poésie héroique, enfin pour toutes les passions fortes, ils étaient chevaliers”. (Depping, 1826, p. 367)

Mesmo para os leitores de sagas islandesas, essas características cavalheirescas parecem dominar as antigas ações dos nórdicos, onde o espírito de galenteria estaría atrelado aos valores de conduta, fraternidade, respeito pelas mulheres e o apreço pelo combate honroso.** Até mesmo o duelo (hólmganga) é visto a partir de uma nostalgia de uma Idade Média dos torneios. Nem mesmo o famoso filósofo e poeta, Arthur de Gobineau, escapou a essa irressistivel visão: “(…) Rollon et sa bande hardie (…) De marins qu´ils étaient devinrent chevaliers” (Gobineau, 1838, p. 165). Não se trata aqui de interpretações fiéis aos textos medievais nórdicos, claro, mas de filtragens que iam de encontro à recepção daquele momento. E nada poderia exemplificar melhor do que as artes visuais. Nesse caso, tudo começou em 1826.

      


Frithiof dreper to troll på havet (Frithiof matando dois trolls no mar), pintura de Carl Peter Lehmann, 1826, óleo sobre tela, 86 x 115 cm, acervo do KODE (Museu de Artes de Bergen, Noruega).


Quase tudo nesta pintura de Carl Lehmann é fantástico. Não se conheciam muito bem as embarcações nórdicas, por isso o barco de Frithiof mantém quatro mastros e velas latinas e a proa contém uma especie de esporão. O herói está de armadura completa – apesar dos cavaleiros medievais começarem a utilizar armaduras completas somente a partir do século XIV (e seu uso foi extensivo até o século XVII) - o imaginario artístico generalizou sua utilização para todo o medievo. Frithiof se mantém altivo e viril na proa da embarcação, destacando seu papel de herói e guerreiro.



    
Ilustrações de Hugo Hamilton, Teckningar ur Skandinaviens Äldre Historia. Stockholm: Gjöthström & Magnusson, 1830.



Nestas duas imagens de Hugo Hamilton representando o mundo nórdico da Era Viking, percebemos o uso da espada longa tardo medieval e a armadura completa. Mas um detalhe salta aos olhos: o segundo cavaleiro porta um elmo com asas, que posteriormente vai tornar-se uma imagem icônica associada aos Vikings (os chifres surgem apenas depois de 1890), no qual elaboramos três teorias de origem iconográfica paralelas ou consecutivas (a serem detalhadas no estudo: “Barbarian warriors, romantic heroes: the visual invention of the Vikings through Western art, 1831-1910”).



  
Ilusrações de Johan Holmbergsson para a quinta edição da Frithiof saga, de Esaias Tégner. Stockholm: Tryckt Hos PA Norstedt & Soner, 1831.



Nas ilustrações de Johan Holmbergsson percebemos a elaboração visual definitiva do nórdico como cavaleiro medieval: ele se destaca pelo porte de uma armadura majestosa e brilhante: na primeira imagem, ele dialoga com um guerreiro e na segunda, com uma donzela. O seu elmo alado o destaca como líder e somente Frithiof porta-o como equipamento. Ele se impõe pelos gestos e comportamentos: honrado, nobre, valente. Ele não se destaca somente por ser um audacioso guerreiro, mas de ser um homem que tem amor pelas damas e suas virtudes na corte (como os cavaleiros corteses no medievo, Flori, 2005, p. 158-163).

A partir dos anos 1830 as representações visuais dos Vikings na Europa abandonam paulatinamente o referencial do cavaleiro medieval, permanecendo apenas o elmo com asas. As vestimentas e os equipamentos tornam-se cada vez mais nórdicos. Mas do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, essa representação vai sobreviver até o século vinte.

Em 1832 foi descoberto nos EUA um esqueleto junto a uma suposta armadura, inaugurando o mito nórdico naquele país (detalhes foram abordados em nosso estudo anterior: Langer, 2012). Alguns anos depois, em 1841, o escritor Henry Wadsworth Longfellow publicou o poema “The Skeleton in Armor”, influenciado pela descoberta. Neste poema, foi mencionado pela primeira vez o termo Viking no continente amerricano, mas as primeiras imagens associando essa narrativa com a idealização da cavalaria medieval ocorreram somente em 1856.


Ilustração de John Gilbert para a edição inglesa do poema The Skeleton in Armour, de Longfellow. Londres: George Routledge & Co., 1856. 



Na imagem de John Gilbert percebemos a arte vitoriana em seu esplendor: O esqueleto dentro da armadura permanece de pé, impassível e olhando e apontando a sua mão para o espectador, onde um manto e uma longa espada criam uma atmosfera misteriosa e romântica.






 

Alice M.A. Baumgartner, The Skeleton in Armour, aquarela, 1870-1890, coleção particular.



No final do Oitocentos, a artista norte-americana Alice Baumgartner recria a imagen de John Gilbert, dando vida ao personagem de Longfellow. Vários outros ilustradores, já no século XX, vão prosseguir com a representação do Viking como um cavaleiro medieval, mas também os escritores, a exemplo de Louis de Saint-Pierre: “Le chevalier – cette réincarnation chrétienne du Viking” (Saint-Pierre, 1949, p. 9).

Os Vikings ainda são extremamente interessantes tanto para os escandinavistas quanto para os medievalistas e historiadores da arte perceberem que o tema da recepção é repleto de possibilidades investigativas.*** Esperamos que no futuro outros pesquisadores abordem esse tema da fusão entre o Viking e o cavaleiro medieval, tanto na literatura quanto na arte e mídia em geral.



*Nota: comprovando a recepção do ideal cavaleresco medieval na França nesta mesma época, Napoleão Bonaparte criou em 1802 a Legião da Honra (Le Goff, 2009, p. 124).


**Nota: O historiador Dominique Barthélemy comenta que a literatura cavaleiresca em francês do século XII poderia ter sido uma forma de canalizar e moralizar a brutalidade da cavalaria “real” (2010, p. 460). Questionamos: a recepção francesa no inicio do Oitocentos – ao fundir a imagem do cavaleiro medieval com a do Viking/Normando – não estaría também tentando “civilizar” ou “moralizar” a anterior imagem barbárica e brutal dos nórdicos, comum entre alguns escritores no final do Setecentos?

***Nota: O quadrinho Príncipe Valente de Hall Foster (1937) pode conter alguns dos últimos ecos destas fusão: na narrativa, o personagem principal é descendente de Vikings da Noruega e se torna um dos cavaleiros do rei Arthur em Camelot (em plena Alta Idade Média).

Agradecimentos:

Kesia Eidesen (KODE Art Museums and Composer Homes), pelo envio de informações. 
Luciana de Campos (NEVE) por esclarecer algumas dúvidas sobre a língua francesa.


Bibliografía:

Fontes primárias:

GOBINEAU, Arthur de. Manfrédine, 1838 (poema inacabado). In: AMBRI, Paola Berselli. Poemi inediti di Arthur de Gobineau. Firenze: Lee S. Olschki, 1965.

HAGBERG, Charles-Auguste. Mémoires de la littérature en Suède. Journal de l'Institut historique, tome troisième, deuxième année, Paris, 1835, pp. 240-247.

CHERADE-MONTBRON, Joseph. Les Scandinaves: poème traduit du swéo-gothique; suivi d'observations sur les moeurs et la religion des anciens peuples de l'Europe barbare. Paris: An IX, 1801.

DEPING, D.P. Histoire des expéditions maritimes des Normands, et de leur établissement en France au dixième siècle. París: Didier, 1826.

GRÄBER DE HEMSÖ, J. La Scandinavie vengée de l´accusation d´avoir produit les peuples barbares qui détruisirent l´Empire de Rome. Lyon: J.B. Kindelem, 1822.

LEREBOURS, Pierre Victor. Harald ou les Scandinaves. Paris: Barba, 1825.

MARMIER, Xavier. Langue et littérature islandaises: Histoire de l'Islande depuis sa découverte jusqu'à nos jours. Paris: A. Bertrand, 1838.

SAINT-GENES, L. de. Balder, fils d'Odin: poëme scandinave en six chants; suivi de notes sur l'histoire, la religion et les moeurs des nations celtiques. Paris: L'Editeur, 1824.

SAINT-PIERRE, L. de. Rollon devant l´Histoire. Paris: Peyronnet, 1949.


Fontes secundárias:


BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII. Campins: Editora da Unicamp, 2010.

BOYER, Régis. Les Vikings: idées reçues. Paris: Le Cavalier Bleu, 2002.

BOYER, Régis. Le mythe viking dans les letres françaises. Paris: Editions du Porte Glaive, 1986.

FLORI, Jean. A cavalaria: a origen dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005.

FLORI, Jean. Cavalaria. In: LE GOFF & SCHMITT (Org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002, pp. 185-200.


LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.