terça-feira, 14 de maio de 2024

1864: a guerra que nunca acabou



Johnni Langer (UFPB/NEVE/RECEPTION)

Finalmente consegui assistir a série ´1864´ (pela Prime Video). Trata-se de uma superprodução dinamarquesa sobre as Guerras do Eslésvico. O primeiro contato que tive com este tema foi com o livro A history of Denmark, de Palle Lauring, que comprei em Copenhague em 2018. Como neste ano estava estava estudando a recepção artística da Mitologia Nórdica no século XIX, acabei cruzando com o dito conflito - ele é um tema central para quem trabalha com Arte, Ciência e Cultura na Dinamarca Oitocentista, não há como escapar dele. Mas com a dita série meu primeiro contato foi por meio do documentário The Art of Scandinavia (Episódio 2: Once Upon a Time in Denmark, BBC, 2016), apresentado pelo maravilhoso historiador da arte Andrew Graham-Dixon. Este pesquisador apresentou um panorama extremamente sensível de como a cultura dinamarquesa do período foi afetada pelos conflitos do Eslésvico, entrevistando o ator Søren Malling e apresentando várias cenas da produção.


A série 1864 foi lançada originalmente em 2014, dirigida por Ole Bornedal, baseada em uma série de livros do historiador Tom Buk-Swienty (atualmente professor de História na Universidade do Sul da Dinamarca), que também realizou assessoria técnica para a produção.

O que foram os dois conflitos do Eslésvico? O Eslésvico era uma região do sul da Jutlândia, cuja maioria de sua população falava o alemão. Era uma província autônoma, mas com a revolução liberal dinamarquesa de 1849, planejava-se anexá-la ao império dinamarquês. O governo provisório solicitou ajuda para os prussianos, que iniciaram o primeiro conflito com a Dinamarca ainda em 1848. Um armistício foi assinado em 1850, ficando a Dinamarca oficialmente tutelando a dita região. A guerra novamente teve início em 1864 (Slesvigske Krig em dinamarquês, em português também conhecida como Guerra dos Ducados do Elba ou Guerra Dano-Prussiana), onde o país perde o controle dos ducados da Holsácia e do Eslésvico para a Prússia e Áustria (Lauring, 2015, p. 222-235; Sá, 2019, 2025). A produção política, artística, literária e científica da Dinamarca durante os anos 1840 até meados da década de 1880 foi extremamente afetada por ideais nacionalistas, decorrentes destes conflitos entre as fronteiras (Adriansen; Jenvold, 1998, p. 9). Essa influência de idealizações patrióticas advinda dos conflitos de fronteira na recepção artística de temas nórdicos na Dinamarca já havia sido contemplada por um artigo meu (Quando o mito foi História: Os usos da mitologia nórdica no livro “História Ilustrada da Dinamarca para o povo”, 2022). Mas é em meu penúltimo livro (O estudo monográfico: Tempos pagãos, tempos heroicos - a Dinamarca e a invenção dos vikings, no prelo) que aprofundo a influência das guerras dano-prussianas para com os temas nórdicos antigos (especialmente no capítulo: Os vikings e a questão do Eslésvico).

Os três principais personagens da série: os irmãos Peter e Laust Jensen e Inge Juel, todos residentes da ilha da Fiônia, Dinamarca.

A produção televisiva 1864 divide-se em dois tempos e em duas narrativas. Primeiro, ela aborda ações durante o pós-Primeira Guerra do Eslésvico (1852), onde os três personagens principais são apresentados ainda jovens: são os filhos do veterano Thøger Jensen (interpretado pelo magnífico ator Lars Mikkelsen, velho conhecido dos brasileiros pela maravilhosa série do Netflix - Herrens veje, Os Caminhos do Senhor), que é um camponês que reside no sul da ilha de Fiônia. Para as locações, os produtores utilizaram várias paisagens deste local, de montanhas a prados, incluindo edificações e pastagens que são reproduções históricas do século 19. A maior parte do tempo da série transcorre quando os dois filhos do camponês crescem e se alistam no exército dinamarquês, à beira do novo conflito. A outra narrativa paralela à principal transcorre na atualidade, onde o bisneto da personagem Inge Juel (interpretada pela atriz Marie Tourell Søderberg), relembra os acontecimentos por meio de um diário de sua bisavó.

A série no geral é bem equilibrada, com excelentes atuações e trilha sonora, locações na Dinamarca e na República Tcheca, com várias cenas de impacto e ação, mas um resultado dramático muito convincente. As cenas de batalha foram bem reconstituídas e filmadas nos locais originais, como em Dybbøl (sul da Jutlândia), o que concede um clima de reconstituição ainda mais autêntico. No geral, os armamentos foram bem reproduzidos (IMFDB, 1864), além da série enfatizar a superioridade numérica e militar dos prussianos.

 Diversos personagens históricos foram resgatados, paralelamente ao contexto de conflito, como os escritores Hans Christian Andersen e Karen Blixen (esta última citada pelos personagens de nosso século). A cena com Andersen pode nos trazer algumas reflexões iniciais: ele está num salão aristocrático lendo de forma dramatizada um de seus contos, O Soldadinho de chumbo, quando um informante proclama que a Dinamarca acaba de entrar novamente em guerra com a Confederação Germânica, interrompendo a ação. Nada mais exemplar. A série questiona a todo momento os ideais nacionalistas e patrióticos do Oitocentos: quando as tropas se deslocam para o campo de batalha, antes de entrarem em operação, o velho capitão cai morto de seu cavalo, de forma decrépita. Em um treinamento na fortificação de Danevirke, um soldado inexperiente dispara sem querer, um canhão que deveria estar sem munição. Constituindo assim várias formas de criticar e pontuar o envelhecimento e a falta de estrutura do exército dinamarquês nos anos 1860. Outra crítica vem do uso da fortificação de Danevirke: criada antes da Era Viking, ela foi usada desde o Medievo como um símbolo da resistência contra os invasores do sul – mas era ociosa e totalmente ineficiente para os propósitos bélicos daquele momento. O seu abandono foi visto de forma negativa pelos políticos de Copenhague, apresentados na série como o verdadeiro estopim do conflito. Os militares, os camponeses, os recrutas e os veteranos são apresentados como figuras menores no jogo da guerra. Os seus verdadeiros deflagradores são os políticos, especialmente Ditlev Monrad e Otto von Bismarck, ambos apoiados pela elite aristocrática de sua época. Uma atriz, Johanne Luise Heiberg, é uma espécie de base moral e intelectual ao ministro Monrad, interpretada pela estupenda atriz Sidse Knudsen (muito conhecida pela magistral série Borgen, do Netflix).

Mas a série, apesar de ser uma produção dinamarquesa, não estabelece uma ideologia objetiva de glorificar o seu passado, pelo contrário, este é alvo de diversos tipos de reflexões. A guerra é percebida como um joguete nas mãos dos políticos, sem ter vilões claros no campo de batalha, muito menos heróis ou situações gloriosas. Alguns personagens alemães também são apresentados, tentando criar no espectador um paralelo humano pelo viés do “inimigo”, que na verdade não existe nesta produção. Os vilões propriamente da produção estão mais próximo da insanidade do que na maldade, não gerando a velha dicotomia maniqueísta entre bem e mal: o filho do barão da ilha de Funen (Didrich), que se torna capitão, ou o primeiro-ministro Ditlev Monrad, ele próprio filho de pais que foram internados em sanatório.

Algumas críticas à série foram elaboradas por historiadores, que afirmaram que a produção não inseriu a presença dos diversos dialetos presentes na época, sendo a sua ideia de uma nacionalidade desta época muito superficial e unidimensional, gerando um passado simplificado (Brunbech, 2018, p. 17). Algo que concordamos, visto que durante o período de 1820 a 1880 existiram vários referenciais nacionalistas e a própria imagem da Dinamarca (e da Escandinávia, pois havia o panescandinavismo) era multifacetada. Outra coisa que temos que entender é que qualquer projeto nacionalista nunca finda, visto que sempre se baseia em fatores imaginários e culturais e não é algo inerente aos seres humanos (mas o nosso objetivo aqui não é aprofundar estas discussões). 

O personagem Johan (interpretado pelo ator Søren Malling), retorna da guerra e comunica à personagem Karen (uma camponesa da ilha da Fiônia, interpretada pela atriz Sarah Boberg) a morte e o desaparecimento de seus filhos no campo de batalha. Johan na realidade é uma “transfiguração” da nação dinamarquesa, um personagem com elementos sobrenaturais e uma opção da produção para amenizar os males causados pelos conflitos e criar uma opção de uma unidade sentimental e certa identidade coletiva em torno do conceito de Pátria e Nação.

 

E na realidade quase qualquer forma de Arte, entretenimento e conteúdo em História Pública acaba sempre sendo superficial (e é algo que ocorre até mesmo em estudos acadêmicos): as simplificações acontecem quando a História é traduzida em drama. Diferentes visões, diferentes perspectivas e as diversas formas de se entender o passado (no contexto contemporâneo dos acontecimentos) muitas vezes são deixados de fora por questões ideológicas. Neste caso, temos que perceber que a série foi produzida para o canal DR, a televisão pública da Dinamarca, então, obviamente, possui o objetivo de enfatizar visões específicas do conflito, advindas de nossa própria época. E entre elas, a concepção dos conflitos bélicos como desumanidade.

A guerra, antes de tudo, causa feridas hediondas nas famílias, nas comunidades, na sociedade e na mente das pessoas. Ela é algo a ser conhecido, mas não glorificado. Mas não se pode simplesmente enterrá-la: ela faz parte da História e deixa marcas profundas na coletividade – a série aborda esta questão em diversos momentos, mas um elemento salta aos olhos: a pintura de abertura, que também foi aproveitada como sendo parte do acervo do personagem dos tempos atuais, o velho Erasmus. Trata-se da tela a óleo Fra forposterne 1864 (Em um posto avançado de 1864), pintada em 1896 por Vilhelm Jakob Rosenstand.



Fra forposterne 1864 (Em um posto avançado de 1864), Vilhelm Jakob Rosenstand, óleo em tela, 1896, acervo do Museu Nacional de Artes da Dinamarca (SMK), Copenhague.

 

Ela apresenta um grupo de soldados dinamarqueses entrincheirados, disparando e carregando seus fuzis contra o inimigo. O grupo está sob o olhar atento de um oficial, mas o ponto central da composição é um soldado, sentado, que sem deixar de olhar para os adversários, coloca uma atadura em sua mão ferida. Em sua frente, o seu boné está caído, virado de ponta cabeça. É o outro lado da guerra. Ela não é apenas feita de glórias ou conquistas (na visão dos nacionalistas tradicionais), mas também dor, medo, inquietude, frio (a guerra foi travada no inverno. No plano à esquerda da tela, um soldado permanece com seu cão, símbolo da fidelidade). A pintura de Rosenstand consegue sintetizar em parte, o sentimento dinamarquês que preponderou desde o fim da Segunda Guerra Dano-Prussiana e que se estende até nossos dias: em parte humilhação, em parte tristeza. Ela em si, nunca acabou.


Agradecimentos: Ao historiador Sandro Teixeira Moita (Programa de Pós-graduação em Ciências Militares do Instituto Meira Mattos na ECEME/RJ) pela revisão do texto.


Bibliografia:

ADRIANSEN, Inge; JENVOLD, Birgit. Danske myter - fra dronning Thyre til krigen i 1864. Fortid og Nutid 1, 1998, pp. 5-49.

BRUNBECH, Peter Yding. TV-serien 1864, historiebrug og Bornedals nationalisme. RADAR - Historiedidaktisk Tidsskrift, 1(1), 2018, pp. 14–17.

LANGER, Johnni. Tempos pagãos, tempos heroicos: a Dinamarca e a invenção dos vikings, livro (no prelo).

LANGER, Johnni. Quando o Mito foi História: Os usos da mitologia nórdica no livro “História Ilustrada da Dinamarca para o povo” (1854). Fênix: Revista de História e Estudos Culturais 19(19), 2022, pp. 139-167. 

LAURING, Palle. A history of Denmark. Copenhagen: Høst & Søn, 2015.

SÁ, Carlos Augusto Trojaner de. O império colonial dinamarquês: uma análise preliminar. Revista Historiador 12, 2019, pp. 1-10.

SÁ, Carlos Augusto Trojaner de. Os nacionalismos no século XIX: o caso do Schleswig-Holstein. Revista Historiador 7, 2015, pp. 1-11.

1864. The Internet Movie Firearms Database (IMFD),2014.