sábado, 25 de novembro de 2023

Imaginários sobre a mulher nórdica (A senhora da Tundra)

GIOMETTI, Paola. A Senhora da Tundra. Culturama, 2022.

 

 

Andréa Caselli

Doutora em Ciências das Religiões pela UFPB, integrante do NEVE

 

A autora Paola Giometti é brasileira e vive na Noruega, na cidade de Tromsø. Desde o seu primeiro livro, a autora já citava a mitologia e os animais do ártico como referência para o enredo de suas histórias. Quando se mudou para o norte da Noruega, ela conseguiu experimentar o cotidiano com a natureza e a cultura nórdica que deram maior embasamento para escrever A Senhora da Tundra. Dessa forma, o livro foi escrito e ambientado no norte da Noruega. Para ter melhor conhecimento sobre o tema e dar mais fidelidade às referências culturais em A Senhora da Tundra; a autora fez um curso sobre sagas islandesas medievais na Universidade da Islândia.

A protagonista do livro, Jarnsaxa, é a filha bastarda do rei Drakkar e também é a general dos draugar no Reino de Vholtor. A jornada dela mantém os leitores atentos a cada uma de suas provações e aventuras. O enredo apresenta a rivalidade entre os draugar e os humanos (chamados de mundanos pelos draugar). Atormentada por uma revelação do passado que envolve o seu rei, ela que é conhecida como a Ursa da Tundra, se torna uma desertora e inicia uma busca por vilarejos, montanhas e santuários à procura de um homem que dizem ser um enviado das Nornas e de Odin e que poderá matar Drakkar. A ambientação e as referências culturais fazem com que a narrativa seja muito detalhada em relação à natureza e ao modo de vida nórdicos. A narrativa se passa em uma época em que os nórdicos acreditam que o ragnarok já aconteceu e, por esse motivo, os deuses desapareceram.


 

 Ilustração do interior do livro: “Jarnsaxa com sua cabeça de urso Berserker”. Por Alexandre Santos, Lucas Willian de Oliveira Silva, Andrés Bertachini Deranian e Antônio Rizzatti de Abreu.

 

O mais encantador do livro é o glossário de termos nórdicos que também apresenta os fonemas em português para que o leitor aprenda a forma correta de pronunciar as palavras provenientes dos idiomas escandinavos. A autora teve o cuidado de, no glossário, colocar todas as palavras de origem e pronúncia escandinavas contidas no livro. Algumas dessas palavras têm o seu sentido real apresentado no glossário, para que o leitor entenda o motivo te terem sido usadas na narrativa com um conceito fictício. Por exemplo, no glossário a autora explica o motivo de ter dado sentido fictício e criado personagens a partir da palavra draugr, que nomeia seres folclóricos habitantes das praias escandinavas à procura de carne humana e preciosidades e que foram, no passado, pescadores ou navegadores que morreram afogados no mar.

  Ilustração do interior do livro: “Haraks, os draugar que caminham sob a luz”. Por Alexandre Santos, Lucas Willian de Oliveira Silva, Andrés Bertachini Deranian e Antônio Rizzatti de Abreu.

 

Os deuses nórdicos também são incluídos no glossário e inseridos na narrativa, com seus atributos e atividades sendo mencionados em alguns momentos. Os gigantes também são mencionados algumas vezes, principalmente o gigante Ýmir, que também pode ser chamado de Mímir (nome que significa “Memória”, segundo Régis Boyer (1997, p. 101–102) e Rudolf Simek (2007, p. 216–217). Ele é um gigante ancestral, citado principalmente da Edda em Prosa de Snorri Sturlusson. Mímir guarda uma fonte sob a árvore primordial Yggdrasill, que é utilizada por aqueles que querem obter o conhecimento.

Em cenas de A Senhora da Tundra, os personagens passam algumas vezes por um local conhecido por Montanha de Ýmir, no qual acontecem episódios relacionados à cura e à magia. Por exemplo, neste local, uma fornalha que ficava acesa de forma permanente brilhava e fazia tanto barulho, que um dos personagens percebeu que aquele fogo era uma comunicação dos deuses, que indicavam a cura e a força. O fogo da cabana norueguesa - que está na vela, no fogão e na lareira - remete à ideia de luz interna.

A iluminação com grande destaque participativo na composição de lugar é um dos grandes elementos da formação da ideia romana de genius loci, utilizada por Norberg-Schulz no seu discurso sobre a fenomenologia na arquitetura, para descrever o espírito do lugar (1980, p. 52-67). A luz nórdica é filtrada por nuvens e folhas de árvores das densas florestas, a luz obliqua cria longas sombras que obscurecem as silhuetas, dissolvendo os objetos num misticismo romântico. Todos os lugares tem as suas caraterísticas específicas, tendo a luz um papel fulcral na sua caraterização, permitindo a revelação e a simbiose de quem habita tais lugares. Os ambientes alteram-se com mudanças climáticas ou sazonais, mas, mesmo assim, existe a característica própria do lugar que está sempre presente.

            A floresta norueguesa é composta principalmente de altos pinheiros que filtram a incidência de luz solar no solo, ofertando uma visão profunda e impenetrável. O sentido de descoberta é estimulado em uma liberdade de movimento infinita dentro dela. O bosque, a tundra, os lagos e os fiordes são indissociáveis da vida das pessoas e a liberdade é um percurso de descoberta. A existência nórdica encontra-se precisamente nesta busca incessante pela revelação e pela conquista, em vez da consequente aceitação do que é dado. A sobrevivência humana neste ambiente se manifesta no sentimento de misticismo que há ao redor. A relação entre natureza e sagrado propicia o estudo de como se transforma um espaço em um lugar, e como a arquitetura é o instrumento para essa transformação, na Noruega, um país com privilegiada relação com o meio natural.


 

 

 

   Ilustração do interior do livro: “Mapa de Real Vholtor”. Por Alexandre Santos, Lucas Willian de Oliveira Silva, Andrés Bertachini Deranian e Antônio Rizzatti de Abreu.

 

O silêncio dos bosques, a solidão de um vasto território pouco povoado, uma paisagem dominada por fenômenos naturais como a aurora boreal, os intermináveis dias de verão ou a sempre presente escuridão das noites de inverno; todas essas manifestações na paisagem influenciam na criação arquitetônica, que, por sua vez, também criam o lugar. A experiência espacial do perambular entre troncos de árvores, rochas, arbustos e lagos. Uma multiplicidade de diferentes e indefinidos lugares encontrados no mundo nórdico.  

A tundra é um bioma no qual a baixa temperatura e estações de crescimento curtas impedem o desenvolvimento de árvores. É uma região montanhosa com vegetação rasteira e poucas árvores ou nenhuma. A temperatura não ultrapassa 10 graus celsius e, dentre os animais que lá vivem, os principais predadores são os ursos polares, os lobos e o boi almiscarado. Durante os momentos de vento e neve, a visão humana tem acesso às formas criadas pelo movimento da ventania que espalha a neve e o gelo, deixando o ambiente turvo e propício a ilusões em relação ao que é visto, ouvido e sentido. Assim, a tundra também tem seu aspecto de contato com o sobrenatural.

A protagonista circula entre as comunidades de draugar e humanos. No decorrer das suas andanças pelas paisagens nórdicas, outras comunidades são apresentadas, contendo também outros entes folclóricos, como, por exemplo:

 

·         a huldra: De acordo com a sabedoria popular do folclore escandinavo, a ninfa da floresta é a Huldra, nome que deriva de uma raíz, que significa algo aproximado a “segredo”. Ela é descrita como uma bela jovem, quando vista de frente. Mas quando vista por trás, suas costas são ocas como um toco de madeira. Em outras narrativas, em vez de ocas, elas têm uma espessa cauda de raposa ou de vaca. Como todos os outros guardiões sobrenaturais, ela protege seu domínio (Hultkrantz, 1961). Aparece na forma de uma mulher pequena e bonita, com um temperamento aparentemente amigável. Aqueles que são atraídos a segui-la pela floresta nunca mais são vistos.

  


Huldra, por Theodor Kittelsen, 1892. Fonte: Wikipedia. Domínio Público.

 

·         o ratatosk: De acordo com os textos medievais que narram a mitologia nórdica, o ratatosk é um esquilo que vive naárvore Yggdrasill correndo para cima e para baixo, transportando mensagens entre a águia Hræsvelgr que fica empoleirada no topo da árvore e a serpente Níðhöggr, que mora embaixo das raízes da árvore. Ratatosk é citado na Edda Poética. Ele é um dos poucos esquilos existentes em mitos europeus. 



 Manuscrito islandês do século XVII que mostra Ratatosk com um chifre. Fonte: Wikipedia. Domínio Público.

 

Porém, o ser mitológico essencial para a narrativa de A Senhora da Tundra é a serpente Grafvölludr, que no livro foi adaptada para a personagem Grafvölludr-Gulon. Já no glossário a autora explica que ela é um lindworm (um tipo de serpente mitológica), citada por Odin no poema éddico Grímnismál, como uma das serpentes que estão sob a árvore Yggdrasill. A autora também esclarece que, ao compor o nome da serpente, fez referência à criatura do folclore escandinavo chamada Gulon, que é conhecida por ser glutona e capaz de comer demai; já que a personagem Grafvölludr-Gulon é devoradora de humanos. No decorrer da narrativa, o leitor descobre, aos poucos, mais curiosidades sobre esta misteriosa e poderosa serpente.

O livro também aborda questões mais sutis, como o sentimento religioso de um guerreiro antes de ir para o campo de batalha e as pinturas faciais elaboradas com pigmentos naturais. Muito interessante também é o momento da narrativa no qual há a descrição do ritual necessário para transformar um humano em draugr, mas o que acontece nesta parte tão impressionante eu deixo para que o leitor descubra ao folhear o livro. A história é convida o leitor adentrar no folclore, na mitologia e na magia nórdicos, percorrendo paisagens cheias de mistério e um enredo repleto de cenas de batalhas memoráveis.

 Referências:

 BOYER, Régis. “Mímir”. Héros et dieux du Nord. Paris: Flammarion, 1997, pp. 101–102.

HULTKRANTZ, Åke. The supernatural owners of nature: Nordic symposion on the religious conceptions of ruling spirits (genii loci, genii speciei) and allied concepts. Stockholm studies in comparative religion, 0562-1070; 1. Stockholm: Almqvist & Wiksell, 1961.


NORBERG-SCHULZ, 1980, Genius Loci: towards a phenomenology of architecture, Rizzoli, New York.

SIMEK, Rudolf. “Mímir/Mímir’s well/Mímir’s head/Mímir’sons”. Dictionary of northern mythology. Londres: D.S. Brewer, 2007, pp. 216–217.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

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sábado, 18 de novembro de 2023

Nova edição da revista Scandia (online)

Nova edição da revista Scandia: clique aqui para acessar. 

Já são seis anos de atividade e ainda continua sendo o único periódico acadêmico sobre Escandinavística produzido na América Latina: o novo número contém sete artigos, oito resenhas e uma entrevista, em língua portuguesa, inglesa, francesa e espanhola. A revista é produzida pelo NEVE.


Articles

- “Ok hugða ek þat args aþal!”: queerness in Old Norse society and myths, Jess Nevins
- Traduire l’Edda: les traductions de l’Edda Poétique en langue française; méthodes, pratiques et limitations, Lyonel Perabo
- Movilidad, comunidad y contacto cultural: roles y participación de las mujeres en la construcción, reproducción y transmisión de la identidad diaspórica vikinga, Elías Carballido
- Storsjöodjuret: una solución al enigma de la serpiente-monstruo del lago Storsjön, en Jamtlund (Suécia), José Alfredo González Celdrán
- O corpo (im)penetrável: magia e imagem hegemônica do corpo na Escandinávia medieval, Victor Hugo Sampaio Alves
- Nas garras das serpentes: um estudo iconológico da pedra rúnica U 629, Leandro Vilar Oliveira
- Considerações sobre a recepção dos normandos no romantismo francês (século XIX), Renan Perozini

Interview

- Mythology and Pre-christian norse religions: an interview with Terry A. Gunnell, Terry Gunnell

Reviews

- A new and in-depth anthology on the female ritual specialists of the Viking Age: The norse sorceress (Gardela; Bønding; Pentz), Victor Hugo Sampaio Alves
- From reformation to the welfare state: Scandinavia since 1500 (B. Nordstrom), Vítor Bianconi Menini
- Vikings in North America: American Vikings (M. Whittock), Leandro Vilar Oliveira
- Um novo paradigma: The myths and realities of the viking berserkr (R. Dale), Monicy Araujo
- O paganismo nórdico no Brasil: Deus para mim é Odin (S. Tsugami), Andréa Gomes
- A mulher nórdica em foco: O mito da mulher guerreira (L. Campos), Thaïs Matos Barbosa
- Uma nova visão dos Sámi: Lapponia (V. Menini), Guilherme Garcia Galego
- Estudando as crenças pré-cristãs: As religiões nórdicas da Era Viking (J. Langer), Glezia Alves de Melo

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Os vikings foram igualitários?

Nova publicação sobre a recepção dos vikings na modernidade, mas desta vez com enfoque historiográfico. A foto de fundo é a fortaleza de Trelleborg, fonte: Museu Nacional da Dinamarca. A foto de capa da esquerda: reconstituição de um danês do século X, fonte: Project Broad Axe. A foto de capa da direita: reconstituição de um escravo eslavo medieval, fonte: Alamy.

Texto de Johnni Langer



















quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Considerações sobre o jogo “Bramble: O rei da Montanha”

 



Profa. Dra. Andréa Caselli (NEVE)

“Bramble: o rei da montanha” é um jogo de videogame nos gêneros ação e aventura lançado no ano de 2023. Os jogadores controlam um personagem masculino, um menino chamado Olle, que tenta resgatar sua irmã sequestrada de captores que são criaturas mitológicas. O jogo, que apesar de ter sua empresa desenvolvedora baseada na Suécia, apresenta muitos elementos da mitologia e do folclore escandinavos  de forma geral. Inclusive, estão presentes personagens pertencentes ao folclore norueguês. Pois, no próprio títilo do jogo, está referido o Rei da Montanha, personagem habitante das montanhas e fiordes da Noruega. Grande parte do desenho criado para o jogo foi inspirado da obra de John Bauer. 

Para compreender melhor este texto, eu recomendo que leiam meu texto anterior “Um grande TROLL e um feliz Natal para todos!”, sobre  o filme Troll. Aconselho a leitura desse artigo porque ele mostra como os criadores de audiovisual escandinavos estão, não somente usando, mas homenageando seus ilustradores do século XIX, ao colocar as ilustrações antigas nos filmes e jogos, já há alguns anos. Ilustradores como Theodor Kittelsen e John Bauer estão a ser usados exaustivamente como inspirações para produções de temática folclórica. Suas obras estão presentes não somente como aparições nas cenas, mas também na própria feitura dos personagens e cenários.

No enredo do jogo, Olle viaja pelas paisagens nórdicas a procura da sua irmã mais velha, Lillemor. Ele  a encontra, mas eles caem em uma árvore gigante, o que faz com que sejam retratados diminuídos em tamanho. Eles passam um tempo brincando com os gnomos e as fadas. Porém, as situações sombrias começam quando um troll sequestra Lillemor e a leva para um reino desconhecido. Olle encontra uma misteriosa pedra de luz que é um cristal mágico. Com a ajuda desta pedra, ele atravessa a floresta em busca de sua irmã.

Durante a viagem de Olle, aparecem vários tipos de trolls: troll da floresta, troll açougueiro, troll da montanha, troll transformado em pedra, etc. Isso reflete muito a cultura norueguesa dos trolls que descendem mitologicamente dos gigantes (Lindow, 2015). Depois de passar por cavernas escuras cheias de cativos em jaulas, Olle fica fascinado pela canção hipnótica do Näcken, originalmente um violinista humano que foi espancado impiedosamente e injustamente por seus conterrâneos aldeões. Então, se vingou tocando uma melodia amaldiçoada que os fez dançar até a morte. Ele também conhece a jovem bruxa Tuva, que o encoraja e dá à sua pedra o poder da luz para se defender e repelir o Bramble.

Viajando mais longe nos pântanos, Olle se depara com uma cabana que abriga uma bruxa e seu filho pequeno. Os pântanos estão cheios de figuras sombrias de crianças afogadas e Olle descobre que a bruxa planeja sacrificar o bebê em um ritual, com a criança se tornando uma sombra sob a vigilância do monstro Kärrhäxan. Embora ele consiga afastá-la, Olle finalmente não consegue salvar o recém-nascido de ser afogado pela bruxa, que se enforca. Olle enterra a criança para evitar que ela se torne outra sombra.

Ao conhecer Lyktgubbe, uma criatura imortal e arquivista mágica, ele entra em uma clareira onde sua biblioteca se manifesta e Olle aprende a história do Rei da Montanha, que diz o seguinte: O filho do rei Nihls, Ulrik, estava doente, então o rei partiu em uma busca sangrenta pela cura. Encontrando uma bruxa misericordiosa, ela deu a ele uma flor especial. Esta flor tinha muito poder e a bruxa alertou que apenas uma pétala deveria ser usada. Enquanto o menino é curado, o rei é morto pelos servos que tinham raiva de sua campanha sangrenta. O rei esmagado despertou sua fúria e usou toda a flor, transformando-se em um gigante louco e liberando o Bramble  (sua força interior maligna) para o mundo. A gentil bruxa testemunhou sua transformação e violência de longe. Então ela usou muita magia para construir uma montanha sobre ele e seu reino dizimado, ligando-o ao Bramble para sempre. Assim, os trolls foram forçados a capturar presas para ele se alimentar.

Após saber desta história sobre o Rei da Montanha, Olle entra na floresta e é atraído por uma visão de Lillemor, criada pela metamorfa Skogsrå, que se disfarçou em uma bela mulher para atrair homens aldeões para a morte, extraindo poder de seus corações. Irritado, ele usa a sua pedra mágica para quebrar a magia da Skogsrå, destruindo os cadáveres que a sustentam e depois matando-a quando a luz se torna uma espada. Olle continua até uma vila destruída pela agitação causada por Skogsrå. A aldeia é atingida por uma praga causada pelo aparecimento da bruxa Pesta e Olle foge dos aldeões canibais, agora transformados em zombies. Olle escapa da vila e usa um barco a remo para cruzar o mar até a montanha, iluminando o caminho com um cristal mágico no topo de um farol durante um eclipse, mas ele é confrontado pela própria Pesta, que tenta matar Olle destruindo sua mente. Olle usa a luz para superar seu pesadelo e bani-la, sendo vitorioso quando finalmente chega à montanha.

Entrando na montanha por uma porta mágica, Olle encontra e abre o santuário do Rei da Montanha. Subindo em sua mesa, Olle chega tarde demais ao testemunhar Lillemor sendo jogada na boca do gigante (a qual o Rei mata e come o troll que a sequestrou). O Rei da Montanha ataca Olle, que evita seus esforços para matá-lo enquanto usa a luz para enfraquecer o Bramble que o prende. Com o Bramble enfraquecido, o Rei Nihls recupera os sentidos e usa sua espada para destruir a flor enraizada do Bramble, dizimando a planta amaldiçoada para sempre. Olle sobe na barba do Rei Nihls e cai, jogando a pedra de luz na boca do Rei, que cai morto ao dar o primeiro passo. Olle é mortalmente ferido pela queda, e Lillemor usa a luz para sair do estômago do rei. Enquanto Olle está aparentemente morto, a luz o revive e Lillemor o carrega enquanto o castelo começa a desabar. Eles são salvos pela intervenção oportuna de um dos trolls. A história termina com Lillemor procurando Olle em casa na noite anterior a ele aparecendo para tranquilizá-la, esta cena final mostra o início da história. Isso também sugere uma viagem no tempo, outro tema muito recorrente nas produções audiovisuais em todo o mundo nos últimos cinco anos. O jogo contém inúmeros elementos mitológicos, dos quais apenas alguns podem ser destacados em um pequeno artigo. Sendo assim, selecionei o Näcken, o Lyktgubbe, a Skogsrå e a flor mágica para um breve comentário.

- O Näcken: É um espírito da água metamorfo, habitante das de grandes reservatórios de água doce como lagos, lagoas, rios e cascatas. Ele também é associado a mortes por afogamento. As narrativas e a arte nórdica mostram diferentes representações do Näcken em casa região escandinava, mas também indicam que sua figura continua a ser tradicionalmente perpetuada; sendo ele um personagem comum em contos, obras de arte, narrativas orais e comentários em pontos turísticos aquáticos. A figura do Näcken remete a concepções da religião nórdica antiga e medieval. Ele também está relacionado à paisagem em que habita, sendo uma construção imaginativa presente nos locais aquáticos e rurais. Referências ao Näcken são encontradas em manuscritos já no século XVI. Sendo assim, a exaltação do Näcken no folclore escandinavo oitocentista aponta para uma continuidade de tradições (Ferreira, 2017). Nas regiões nórdicas que tinham o cotidiano e o a fonte de sobrevivência em meios aquáticos, esse ser ocupa um lugar de destaque histórico e religioso. As fontes escritas a esse respeito são escassas, mas o material literário medieval mostra parte do repertório religioso, com referências às emtidades aquáticas ribeirinhas e oceânicas. Nesse aspecto, o material folclórico oitocentista, apesar de influenciado pelo cristianismo, apresenta semelhanças com as narrativas míticas e evoca uma relação com o ambiente similar ao que era concebido nas sociedades antigas.

Näcken representado no jogo. Fonte: https://www.deviantart.com/danytatu/art/Bramble-The-Mountain-King-PC-Nacken-6-962777202


Nøkken por Theodor Kittelsen, 1904. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Nixie_%28folklore%29


- Lyktgubbe: Este nome significa, em idioma sueco, “homem lanterna”. Ele é frequentemente associado a uma criatura que carrega uma pequena luz no ambiente noturno de um bosque. Também é bastante associado ao vaga-lume ou com a alma de uma pessoa morta. Sua aparição é folcloricamente relatada em cemitérios e colinas de forca. Sendo assim, o homem lanterna poderia então ser um falecido que não descansou em seu túmulo . Em algumas partes da Suécia, este ser era a aparição de uma pessoa com uma lanterna na mão guardando dinheiro enterrado indevidamente ou de alguém que havia movido túmulos sem permissão legal. Uma história comum sobre o homem lanterna é quando, em troca de uma promessa de algumas moedas, ele ajuda uma pessoa perdida a voltar para casa. Assim que a pessoa perdida chega em casa, porém, ela joga a moeda em sua pilha de lenha, por exemplo. Na manhã seguinte, a lenha é encontrada espalhada por todo o terreno. Em algumas tradições, o homemlanterna era às vezes referido como um imoral que recebeu a justa punição (Hansson, 2010). Porém, este personagem não é apenas conehcido na escandinávia, também faz parte do folclore alemão e aparece nos contos do século XIX coletados por Franz Xaver von Schönwerth (Wolf, 2014). No folclore alemão também são apresentadas as narrativas de que os homens das lanternas eram as almas inquietas de pessoas mortas que, quando vivas, adquiriram terras por meio de trapaça. Em outros casos, eles também poderiam guardar tesouros enterrados. Muitas vezes, com a ajuda da luz de suas lanternas, eles poderiam levar uma vítima inocente a se perder nos pântanos ou, na pior das hipóteses, atraí-la para a água e afogá-la (Caselli, 2017).

- Skogsrå: Em sueco, a ninfa da floresta é chamada de Skogsrå (Guardiã da Floresta) e a ninfa da água é chamada de Sjörå (Guardiã do Lago). De acordo com a sabedoria popular do folclore escandinavo, a ninfa da floresta também pode ser chamada de Huldra, nome que deriva de uma raíz, que significa algo aproximado a “segredo”. Ela é descrita como uma bela jovem, quando vista de frente. Mas quando vista por trás, suas costas são ocas como um toco de madeira. Em outras narrativas, em vez de ocas, elas têm uma espessa cauda de raposa ou de vaca. Como todos os outros guardiões sobrenaturais, ela protege seu domínio (Hultkrantz, 1961). Aparece na forma de uma mulher pequena e bonita, com um temperamento aparentemente amigável. Aqueles que são atraídos a segui-la pela floresta nunca mais são vistos. Dizia-se que qualquer homem humano que tivesse relações sexuais com Skogsrå tornava-se introvertido, pois sua alma permanecia com ela. Se o homem seduzido for um caçador, ele poderá ser recompensado com boa sorte na caça, mas se for infiel ao Skogsrå, será punido com numerosos acidentes.

Skogsrå representada no jogo. Fonte:https://fingerguns.net/games/2023/03/20/bramble-the-mountain-king-preview-deadly-but-beautiful/


- A flor mágica: É um elemento simbólico universal que está presente em muitas mitologias. Na cultura nórdica, foi bastante usada pelos autores e artistas da escola romântica como símbolo da transformação espiritual. Os contos folclóricos que servem de inspiração para o jogo muitas vezes têm a flor mágica como vegetal encantado e imbuído de poder. Na Alemanha, Novalis usou o conceito da flor azul como inspiração para o movimento romântico, que propôs o resgate da cultural local como forma de fortalecer a tradição. E a flor azul continua como motivo duradouro no Ocidente. Ela significa o anseio metafísico pelo infinito, a busca por um ideal inalcansável e uma unidade perdida. A flor mágica revela a beleza misteriosa das coisas, desafia o racionalismo e comunica a arte. O autor sueco Hans Christian Andersen também usava muitos motivos de flores com poder em seus contos, além de escrever sobre outros vegetais com propriedades curativas, alucinógenas ou outros poderes que afetam os humanos. Exemplos dos contos de Andersen que tratam de flores tradicionalmente mágicas na cultura escandinava são “A filha do rei do pântano” e “A mãe do sabugueiro”. Os irmãos Grimm também falaram bastante de flores em seus contos alemães, mais precisamente escreveram sobre as rosas e seu poder de comunicação com o mundo sobrenatural; como nos contos “A rosa” e “Branca de Neve e Rosa Vermelha”. 

Muito importantes são as aparições das obras do pintor e ilustrador sueco John Bauer, que além de ter suas ilustrações expostas, também as tem reinterpretadas em algumas cenas. Ele ilustrou, no século XIX, publicações de contos folclóricos dos quais originam-se os personagens do jogo, como o menino e a menina que viajam no bosque, os trolls, os giantes, etc. O jogo usa paletas de cores usadas por Bauer; contrastando a luz amarela do ouro, do fogo e do sol com a escuridão da noite nórdica. Os personagens também apresentam a estrutura física e as posições apresentadas por Bauer; levando o jogador à sensação familiar de estar a manipular personagens há muito tempo conhecidos.


À esquerda, ilustração de John Bauer ( 1912). À direita, Troll de pedra chamado Lemus, personagem do jogo. Fonte: https://twitter.com/bramble_game


Ao abordar os contos e os mitos nórdicos, o jogo apresenta uma variedade de cenários que retratam a paisagem nórdica. A paisagem ao mesmo tempo esplêndida e asustadora, também de grande valia para os contos publicados no século XIX que são inspirações para o jogo. As cavernas, as montanhas, a luz, a atmosfera e a vegetação são percebidos e sentidos como parte integrante enrendo. Esse aspecto não só anuncia o apreço pelo valor visual da paisagem nórdica, mas também pelos vários sentimentos que ela provoca; incluindo os sentimentos religiosos em relação à grandiosidade inexplicável da vegetação e das pedras. 

Também há que se ter em conta o fato de os escandinavos, no séc. XIX, terem o rico acervo da Edda (em verso e prosa), das sagas, das baladas e de outros poemas ou cantos que se referiam à época heroica pagã, acervo que era também acessível através de versões traduzidas para o latim ou em línguas modernas escandinavas. De maneira que os mitos, as lendas e as tradições nacionais, que já haviam sido altamente consideradas pelos pré-românticos, ganham no romantismo escandinavo uma importância muito maior que é perpetuada até a atualidade.


Referências bibliográficas:

LINDOW, John. Trolls: an unnatural history. London, Reaktion Books, 2015.

CASELLI, Andréa. Religião e folclore na obra de Asbjornsen e Moe e a sua recepção artística. 217f. Tese (Doutorado em Ciências das Religiões). Programa de Pós graduação em Ciências das Religiões, Universidade Federal da Paraíba, 2022. 

CASELLI, Andréa. Feitiçaria e resistência: representações pagãs no maravilhoso e no fantástico. Religare, ISSN: 19826605, v.14, n.2, dezembro de 2017, p. 282-310.

FERREIRA, Andressa Furlan. Nykr, o espírito da água nórdico: mitologia, folclore e arte. Dissertação (Mestrado em Ciências das Religiões). Programa de Pós graduação em Ciências das Religiões, Universidade Federal da Paraíba, 2017. 

HANSSON, Bengt. “Handledning folktro. Skånes hembygdsförbund.” Skånes hembydsförbund. Setembto, 2010. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20160909211409/http://www.hembygd.se/skane/files/2012/01/handledning_folktro.pdf>. Acessado em: 10/10/2023.

HULTKRANTZ, Åke. The supernatural owners of nature: Nordic symposion on the religious conceptions of ruling spirits (genii loci, genii speciei) and allied concepts. Stockholm studies in comparative religion, 0562-1070; 1. Stockholm: Almqvist & Wiksell, 1961. 

WOLF, Charlotte M. Original Bavarian Folktales. New York: Dover Publications, 2014.


Assista também o vídeo de Andréa Caselli sobre o folclore sueco: