Johnni Langer (PPPGH-UFRN/NEVE/RECEPTION GROUP).
johnnilanger@yahoo.com.br
Conhecer e gostar do passado não é um privilégio dos historiadores e arqueólogos. A História sempre foi alvo de muito interesse público, mas em alguns casos, também de várias especulações e fraudes. Essas últimas muitas vezes serviram de contraponto a diletantes indignados pela suposta "indiferença" dos acadêmicos em torno de certos assuntos considerados fantasiosos, ou ainda, produtos de ideologias extremadas em certos fatos e suas interpretações. Este pequeno texto serve para que os leitores conheçam algumas facetas de antigas descobertas arqueológicas - hoje consideradas fraudes - mas que podem ser úteis para refletirmos como a sociedade cria diferenças formas de representar o passado, independente da Academia. Apesar de não possuírem importância como objetos históricos legítimos, são também valiosos porque servem não somente para estudos de História da ciência, mas também para que possamos repensar nossas categorias de divulgação acadêmica e entender como os contextos sociais de cada momento perceberam o conhecimento científico.
O texto vai explorar somente fraudes e ou falsificações deliberadas. Não iremos comentar ou detalhar as centenas de estudos que interpretaram formações naturais ou a arte rupestre pré-colombiana dentro de referenciais de civilizações perdidas, esoterismo ou de ufologia, algumas existentes desde o século XIX. Após uma síntese histórica de cada fraude, elaboramos algumas interpretações iconográficas e históricas sobre elas.
1. A pedra de Gaspar, Brasil.
No início de 1972 foi encontrado na cidade de Gaspar (SC), um bloco com inscrições, no sítio arqueológico denominado Sambaqui de Poço Grande, propriedade de Olimpio Hanemann. As inscrições logo foram consideradas uma fabricação dos antigos fenícios pelo professor Evaldo Pauli da UFSC, docente na área de letras (Pedra de Poço Grande pode ser Documento dos Fenícios, Jornal de Santa Catarina, Florianópolis, 28 de julho de 1972, p. 1-2). Essa ideia também foi compartilhada inicialmente pelo frei Simão Voigt, estudioso do tema, por meio de fotografias, durante os anos 1970. Mas logo após examinar a pedra original, ele declarou que os sulcos das inscrições eram visivelmente recentes (Inscrições do século VII A.C. na pedra encontrada em Santa Catarina, Correio do Povo, Porto Alegre, 11 de agosto de 1972).
Nesta mesma década uma cópia das inscrições foi enviada por Simão Voigt ao renomado epigrafista Frank Moore Cross (Universidade de Harward), que considerou elas como sendo uma falsificação, no qual o autor teria possivelmente se baseado na inscrição histórica de Baal Libanon, entre outras (Desvendado o mistério da pedra fenícia: é uma falsificação, Jornal de Santa Catarina, 13/14 de maio de 1979; carta de Simão Voigt a João Rohr, manuscrito, 21 de dezembro de 1978). O assunto foi esquecido pela mídia e atualmente tanto a pedra de Gaspar quanto a grande correspondência e artigos em jornais publicados neste período podem ser consultados no arquivo do Museu do Homem do Sambaqui (Colégio Catarinense, Florianópolis, SC), com agendamento prévio.
Interpretação:
A suposta presença de navegadores fenícios no passado brasílico não é uma novidade, sendo uma hipótese presente desde os tempos do Primeiro Império, mas contestada pelos acadêmicos de História e Arqueologia ao final do Oitocentos. Ela também teve um certo declínio na imaginação popular após a Segunda Guerra Mundial. Com as pesquisas arqueológicas de vestígios nórdicos medievais na ilha canadense de L'Anse aux Meadows, de 1960 a 1965, o tema da suposta vinda de navegantes perdidos do Velho ao Novo Mundo antes de Colombo recebeu um novo ânimo por parte de diletantes, memorialistas, pseudo-historiadores, pseudoarqueólogos, artistas e escritores. Para o imaginário desta época, como um antigo povo europeu conseguiu atravessar o Atlântico antes dos espanhóis e portugueses, outros também poderiam ter feito a mesma proeza, era uma questão de "lógica" e "naturalidade histórica".
Esse impacto da descoberta nórdica fez com que um epigrafista norte-americano, Cyrus H. Gordon, revisse a inscrição brasileira da Paraíba, divulgada em 1872 e a considerasse genuína, apesar de ter sido logo refutada ainda no século XIX pelo maior orientalista do período, Ernest Renan. Gordon publicou seu estudo em 1968: "The Canaanite Text from Brazil", Orientalia, No. 37, 1968, pp. 425-436, mas também em revistas populares, como a Life (10 de junho de 1968), incendiando a imaginação pública, mesmo sendo contestado por outros acadêmicos. Obviamente, a notícia não demoraria a ser veiculada no Brasil, primeiro em Recife (Foram fenícios os que chegaram primeiro, Jornal do Commercio, 18 de maio de 1968) e no Rio de Janeiro (Jornal O Dia, maio 1968; Jornal do Brasil, 21 de janeiro de 1970).
Neste contexto de efervescência "difusionista", o livro Grandes enigmas da humanidade (1969, Petrópolis, editora Vozes, escrito por Roberto Andrade e Luis Lisboa) explorou este tema no subcapítulo "Fenícios no Brasil", apontando diversos tipos de supostos vestígios que confirmariam esta hipótese, como estaleiros e portos no Maranhão, Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte. Na realidade tratam-se de formações geológicas presentes em muitas partes do litoral brasileiro que são tomadas popularmente como antrópicas (vide o caso dos "megálitos" de Florianópolis). Outras evidências apontadas neste livro são as "inscrições" gravadas ou pintadas (mas que constituem nas diversas manifestações de arte rupestre), e também formações naturais interpretadas como tendo origem humana, sendo a mais famosa a da Pedra da Gávea, cuja "tradução" foi realizada em 1930 pelo historiador Bernardo da Silva Ramos e seguiu célebre: Aqui Baldezir, rei de tiro, primogênito de Jetbaal (p. 97). Desde os primeiros investigadores imperiais que subiram para analisar a Gávea (em 1839), já se alardeava que tratava-se de uma formação natural. Diversas pesquisas geológicas, geográficas e arqueológicas do século XX confirmaram a sua origem puramente erosiva, mas ela segue tendo um inabalável folclore popular até nossos dias.
Esse grande imaginário sobre as inscrições da Gávea iria tomar uma dimensão realmente espetacular com o filme Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-rosa (1970, figura 2), também conferindo à hipótese dos fenícios um grande "renascimento popular". Mas sem dúvida a principal influência para o imaginário intelectual daquele período foi a publicação da segunda edição do livro Antiga História do Brasil, em 1970 (RJ: Editora Cátedra, primeira edição de 1928). O livro foi escrito pelo professor Ludwig Schwennhagen, de origem austríaca e que residia no Nordeste brasileiro no início do século XX. A premissa básica do livro é que nosso país teria sido habitado por diversos povos da Antiguidade oriental, especialmente os fenícios, baseando-se quase que exclusivamente em formações geológicas daquela região, interpretadas como vestígios de antigos portos, cidades, fortificações e templos. Apesar de seu caráter extremamente fantasioso, o livro sempre atraiu uma grande legião de adeptos devido à ênfase do autor em questões linguísticas e epigráficas (vide a capa do livro: figura 3), baseadas em comparações superficiais entre as línguas indígenas e orientais, além de estudos da arte rupestre (interpretadas equivocadamente como inscrições de civilizações perdidas). Outro livro deste período que vai reafirmar um suposto passado fenício nas terras brasílicas é Pré-História Brasileira: fatos e lendas, do jornalista Renato Castelo Branco (SP: Quatro Artes, 1971), que já vinha escrevendo vários artigos em periódicos defendendo esse posicionamento (como em: Jornal do Brasil, 21 de janeiro de 1970; Teriam os fenícios conhecido o Brasil? Correio do Povo, Porto Alegre, 29 de julho de 1970).
Neste contexto histórico, uma aludida inscrição fenícia encontrada em um sambaqui catarinense em 1972 possui uma situação bem definida: o seu autor, possivelmente alguém com certa erudição (e provavelmente residente na capital catarinense), totalmente convicto da antiga presença deste povo em nosso país, quis criar um objeto que pudesse convencer a todos sem exceção desta "verdade". E essa tarefa não seria tão difícil. Existiam nesta época diverso manuais que possibilitariam ao dito intelectual condições técnicas para realizar a falsificação. Por exemplo, o manual arqueológico Os fenícios, de Donald Harden, havia sido traduzido pelo editora Verbo de Lisboa em 1967 e teve uma grande difusão, sendo encontrado em dezenas de livrarias, bibliotecas e sebos brasileiros durante o início dos anos 1970 (Por exemplo, disponível no acervo da biblioteca da UFSC em Floripa). Este livro contém diversos quadros do alfabeto fenício, além de muitos exemplos de inscrições históricas que podem ter sido tomadas como modelo. O próprio professor Frank Moore Gross, que analisou a pedra de Gaspar, considerou que seu autor tomou modelos clássicos de inscrições fenícias, como a KAI 31. O falsificador também devia conhecer as pesquisas arqueológicas em sambaquis do litoral catarinense, realizadas profusamente pelo padre jesuíta João Alfredo Rohr desde os anos 1960 (Instituto Anchietano de Pesquisas) e noticiadas em jornais locais. Assim, inseriu a mesma em um sambaqui, esperando que ela fosse descoberta algum dia (e ou talvez, brevemente).
Não podemos deixar de mencionar outra hipótese conjectural sobre a origem da pedra encontrada no sambaqui de Gaspar: ela pode ter sido elaborada por um pesquisador estrangeiro nos tempos do império. Em um local muito próximo, o sambaqui da lagoa de Saguaçu (100 km de distância de Gaspar, em Joinvile, SC), este foi escavado em 1865 pelo pesquisador de origem francesa Conde de La Hure. O mesmo enviou diversos relatórios de pesquisa ao Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (RJ), afirmando que os indígenas que construíram os sambaquis eram de origem semítica e em outros relatórios, considerou que a Gávea e a cidade perdida da Bahia (manuscrito 512 da Biblioteca Nacional) eram de origem fenícia, enumerando diversos exemplos textuais de escrita cananita nestes relatórios. O conde de La Hure poderia ter criado a pedra de Gaspar, como uma resposta ao IHGB (que não lhe concedeu verbas para pesquisa). A inscrição de KAI 31, que segundo Frank Moore Cross foi uma das bases epigráficas para a fraude de Gaspar, foi descoberta e divulgada dez anos depois das pesquisas de La Hure em Santa Catarina. Ou seja, o pesquisador francês poderia ter sido o autor da fraude.
Os manuscritos de La Hure estão disponíveis na sede do IHGB no RJ: LA HURE, Conde de [V. L. Baril/Chabaud]. Considérations sommaires sur l ’origine des amas de coquillages de la côte du Brésil. Dona Francisca (SC ), 10 de fevereiro de 1865. IHGB, lata 15, doc. 9. LA HURE, Conde de. Inscriptions reproduits par un manuscrit de la biblioteque publique de Rio de Janeiro de 1754. Rio de Janeiro, 14 de junho de 1865. IHGB, lata 92, pasta 7. Sobre as pesquisas arqueológicas de La Hure no Brasil, consultar: LANGER, Johnni. Os sambaquis e o império. Revista do MAE, 2001.
Nota final: Vários outros orientalistas questionaram o estudo de Cyrus Gordon, como McKusick, Marshall. Canaanites in America: A New Scripture in Stone? The Biblical Archaeologist 42(3), 1979, pp. 137-140 e também o o professor Frank Moore Cross (que como já comentamos, foi o analista da pedra de Gaspar nos anos 1970): The Phoenician Inscription from Brazil: A Nineteenth-Century Forgery, Leaves from an Epigrapher's Notebook: Collected Papers in Hebrew and West Semitic Palaeography and Epigraphy, Volume: 51, 2003.
2. Figuras de Acámbaro, México.
Em 1944 o comerciante Waldemar Julsrud afirmou ter descoberto várias estatuetas e figuras cerâmicas na cidade de Acámbaro, Guanajuato. As figurações são similares a diversos tipos de dinossauros e répteis desaparecidos. Julsrud afirmou que os camponeses locais vendiam as peças, sendo as circunstância da descoberta controversas e polêmicas. Em 1947 Julsrud publicou o artigo "Enigmas Del Pasado," alegando que os paleontólogos haviam se equivocado com as datações sobre os dinossauros.
O arqueólogo Charles C. DiPeso analisou a coleção destes objetos na década de 1950: eles não apresentavam sinais de que estiveram enterrados por séculos; não apresentavam ranhuras e fragmentações (típicas das cerâmicas pré-colombianas do México ou ainda, marcas de pás e picaretas do momento de escavações); a sua superfície era muito nova, denotando uma fabricação recente - concluindo que se tratavam de fraudes. O arqueólogo também acompanhou algumas escavações dos camponeses e verificou alguns locais onde os objetos haviam sido descobertos, constando que haviam ocorrido misturas nas camadas estatigráficas - ou seja, os camponeses fizeram cortes modernos para encobrir e enterrar cerâmicas realizadas nos tempos atuais. DiPeso também afirmou que descobriu que uma família de Acámbaro fabricava essas estatuetas durante o inverno, quando as atividades do campo estavam ociosas. Ele também verificou que a cidade (na época com uma população de 20.000 pessoas) possuía um cinema local, além da venda de jornais e histórias em quadrinhos, por meio do qual os camponeses poderiam ter se inspirado. A escola e a biblioteca local também poderiam ter fornecido influências para o conteúdo destas cerâmicas - ele também menciona que a cidade possuía uma coleção de arte egípcia, que pode ter inspirado parte da coleção. Assim, conclui que logo após a primeira compra de Waldemar Julsrud em 1944, os nativos começaram a fabricar as peças em massa, justamente para obterem algum tipo de lucro. DiPeso, C.C. The Clay Figurines of Acambaro, Guanajuato, Mexico". American Antiquity 18(4), 1953, pp. 388-389.
Os objetos de Acámbaro voltaram a se tornarem populares a partir dos anos 2000, quando grupo de pesquisadores e adeptos do criacionismo começaram a procurar supostas evidências do convívio entre humanos e dinossauros - supostamente provando assim, que a terra seria jovem e que houve o grande dilúvio bíblico.
Figuras de Acámbaro, fonte: Google.
Interpretação:
A região de Acámbaro possuía uma tradição cerâmica antiga: a Chupícuaro, datada de 500 a.C. a 300 d.C, mas que tinha um padrão muito mais voltado para representações antropomórficas do que figuras animais. Também grande parte dos exemplares desta cerâmica eram pintadas, ao contrário dos vestígios encontrados por Julsrud, cujas figuras são esculturas sem pigmentação de seres reptilianos, de formato alongado, pescoço e caudas longas - algumas são quase caricatas, outras um pouco mais delineadas e com certo realismo. No geral, as figurações recordam muito as imagens de dinossauros realizadas durante o final do século XIX e início do XX, como a de Pannemaker (Figura 7): exóticos, um tanto infantis, mesclando de forma grosseira o conceito de lagartos comuns com dinossauros. Por sua vez, uma das figuras mais fáceis de identificar é o triceratops (figura 5), que já havia sido classificado desde 1887 e já era constante de várias mídias populares no momento da descoberta da cerâmica de Acámbaro (incluindo o filme The Lost World, de 1925, El mundo perdido em espanhol). Outras figuras, como uma representado o que se supõe um brontossauro, catalogado em 1879, também já era popular no cinema, como no famoso curta metragem Gertie the Dinosaur (1914). A convivência dos dinossauros junto a homens pré-históricos foi também muito recorrente no cinema, como no clássico One Million B.C (1940, Hace un millón de años em espanhol). Com isso, percebemos que as figuras de Acámbaro são produtos modernos, realizadas dentro do imaginário e dos referenciais artísticos temáticos que seu período conhecia.
3. As pedras de Ica, Peru.
Em 1966 o médico peruano Javier Cabrera Darquea foi presenteado com várias rochas contendo figurações misteriosas, entre as quais dinossauros, naves espaciais, tecnologias avançadas e esculturas mitológicas. Elas teriam sido descobertas em uma caverna em Ica, no Peru. O médico posteriormente criou um museu para abrigar todos os objetos, além de publicar um livro na década de 1970, alegando que seria uma evidência da antiga visita de seres extraterrenos no passado pré-colombiano. Apesar da grande popularidade destas interpretações, foi descoberto que estas pedras seriam fabricadas artesanalmente por Basílio Uschuya, um fazendeiro local, que também vendia as mesmas para turistas. Em 1977 Uschuya foi filmado fabricando diversas peças para um documentário da BBC. Também algumas pesquisas de arqueólogos - examinando a pátina e a superfície dos objetos, além de vestígios de abrasivos, concluíram que seriam figurações realizadas na modernidade. Fitzpatrick-Matthews, Keith. The Ica Stones. Bad Archaeology, 2007. Carrol, Robert Todd. The Ica stones. The Skeptic's Dictionary, 2003.
As pedras de Ica voltaram a ser tema de interesse por meio de diversas publicações na internet, não tanto pelos adeptos dos extraterrestres na História, mas sim geralmente propagadas por pseudo-cientistas e defensores do criacionismo, sendo uma das supostas evidências de que a Terra seria muito jovem e que o homem teria convivido com dinossauros.