quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Mistérios de pedra: os labirintos Sámi


Labirinto de Nauvo, Finlândia.


OS LABIRINTOS SÁMI


Victor Hugo Sampaio
Mestrando em Ciências das Religiões pela UFPB
Membro do NEVE



            Os labirintos Sámi são um tipo muito específico de estrutura cuja ocorrência se dá em praticamente toda a área denominada Sápmi. Esse nome é usado para designar toda a região onde os povos Sámi habitaram, abrangendo geograficamente parte dos atuais territórios da Noruega, Rússia, Suécia e Finlândia. Tal região também já foi conhecida por Lapland, algo como “Terra dos Lapões”, outro nome utilizado para se referir ao povo de etnia Sámi.



 

Figura 1: A região chamada Sápmi, onde habitavam vários povos da etnia Sámi. Fonte: https://www.offthemap.travel/wp-content/uploads/2016/12/Sapmi-Lapland-Annotated.png



             Antes de prosseguir abordando a questão dos labirintos, é interessante dizer algumas poucas palavras sobre os povos Sámi. Eles também são chamados de Lapões, apesar do termo ter cunho pejorativo e estar relacionado a um etnocentrismo, consolidado sobretudo por volta do ano de 1673 por Johannes Schefferus, que via os nórdicos como superiores e civilizados. Ao contrário de seus vizinhos nórdicos, os Sámi não eram um povo de origem indo-européia: basicamente, eles seriam povos indígenas que habitavam a área Ártica do norte da Europa, sendo nativos da região. Sobre a questão de sua origem, os Sámi são considerados originários da família fino-úgrica, como os finlandeses e estonianos, embora haja diferenças genéticas entre eles.

            As principais atividades desses povos eram a pesca, a caça de animais  - tanto para alimentação, quanto para extração e comercialização de suas peles -, e principalmente o pastoreio de renas, animal de importância máxima para os Sámi. Eram também adeptos da prática do nomadismo.



 

Figura 2: Família Sámi, mãe com seus dois filhos. Revista National Geographic, v.31, pág. 556.

  

            Partindo para a questão específica dos labirintos, é interessante começar ressaltando alguns aspectos de sua morfologia. Esses labirintos não eram construídos com paredes ou outras estruturas intransponíveis erguidas: eram feitas escavações superficiais no chão e, em seguida, eram depositadas pedras grandes, geralmente arredondadas, em cima das linhas que haviam sido escavadas. Sua forma era relativamente padronizada, seguindo geralmente uma tendência circular ou então com pequenas variações, como por exemplo em formato oval ou em forma de ferradura de cavalo. Se vistos de cima, os labirintos Sámi apresentavam seus contornos em um desenho que lembra muito o cérebro humano representado de maneira bidimensional. Devido a essas particularidades em seu desenho, formato e composição por meio de pedras, por vezes pode ser difícil identificar a ocorrência de um labirinto Sámi genuíno. Inclusive, já que eles são feitos por pedras posicionadas no chão, deve-se tomar cuidado para não tomar certas paisagens naturais por labirintos: por vezes, o arranjo natural e ocasional de pedras em certos locais específicos pode dar a falsa impressão de que se trata de uma modificação intencional por parte do homem.

            Apesar desse tipo de monumento Sámi ser chamado de labirinto, vale a pena ressaltar que ele difere do típico conceito ocidental atribuído a essa palavra. Ao contrário dos exemplos trazidos pela mitologia greco-romana, nos labirintos Sámi não existem falsos caminhos e nem becos sem saída: no lugar disso, possuem uma única entrada, muito bem definida, seguida por vários círculos concêntricos que levam invariavelmente ao centro da construção.



 

Figura 3: Desenho representando a estrutura de um labirinto Sámi. Fonte: OLSEN, Bjornar, Stone labyrinth in Arctic Norway.




             A ocorrência dessas estruturas é observada por todo território Escandinavo, mais precisamente em todas as regiões da área denominada Sápmi, conforme explicado anteriormente. Contudo, as regiões onde mais são encontrados esses labirintos são as dos atuais territórios da Finlândia e Suécia, o que não é de modo algum uma surpresa, visto a forte presença de povos Sámi nessas duas áreas. Contudo, ocorrências menos numerosas são observadas também na Carélia e na Noruega, especialmente em Finnmark, nome dado a uma área Ártica e costal da Noruega que faz fronteira com a Finlândia e a Rússia, e que antes da colonização norueguesa era habitada originalmente pelos Sámi.

            Grande parte desses labirintos são encontrados em regiões litorâneas e costais, ou então próximos a grandes lagos – às vezes até mesmo em pequenas ilhas -, o que levanta a hipótese de que haja uma relação entre eles e a água (Olsen, 1996). Alguns deles são encontrados em áreas florestais e de caça. Há certos critérios que foram empregados para que se descobrisse se esses labirintos eram de fato autoria dos Sámi. Um deles surgiu por meio da observação de que grande parte dessas estruturas são encontradas em áreas conhecidas por serem regiões de pastoreio de renas, uma atividade extremamente típica e caracterizante desses povos. Outro fator extremamente relevante é que frequentemente esses labirintos encontram-se juntos ou muito próximos a sítios de inumação reconhecidamente Sámi, evidenciando não somente a questão da autoria, mas também uma relação entre essas estruturas e ritos funerários (Broadbent & Edvinger, 2007; Broadbent, 2010).


Figura 4: Foto de um labirinto Sámi encontrado na região de Finnmark. Fonte: http://arkitekturguide.uit.no/details.php?image_id=1465&template=big



             É curioso notar que a existência desses labirintos não havia sido relatada até a chegada da Idade Moderna, por mais que estudos e exames arqueológicos apontem que as datas de sua construção propriamente dita encontram-se sempre entre os anos de 1200 a 1700 d.C. Um dos principais divulgadores dos labirintos Sámi foi o norueguês Ernst Manker. Em meio a suas muitas expedições realizadas por volta dos anos de 1943-1956, patrocinado pelo Museu Nórdico de Estocolmo, Manker teve contato e tornou-se familiarizado com uma série de sítios sagrados, principalmente na região montanhosa da Suécia. Ele colhia informações sobre esses monumentos diretamente com moradores locais, e então, muitas das vezes – mas nem sempre -, ia até o suposto local verificar as informações que havia recebido (Broadbent & Edvinger, 2007). Ernst Manker posteriormente reuniu todas essas informações e as publicou, no ano de 1957, em um livro intitulado Lapparnas heliga ställen, ou seja, Sítios sagrados lapões.

            Nos relatos trazidos pelo norueguês, algumas dessas estruturas eram diferentes entre si na questão de morfologia, mas traziam algo em comum: além da predominância do formato circular, todas estavam conectadas com relatos de sacrifícios sendo realizados dentro de seu espaço. Algumas teorias interpretativas que vinculam até hoje a respeito da utilização desses espaços têm sua origem nesses relatos. Muitos pesquisadores creem que os Sámi obviamente atribuíam poderes mágicos e sagrados a esses labirintos, o que os levava então a praticar, nesse espaço, sacrifícios ritualizados. Estes eram uma espécie de oferenda destinada às divindades, que visava trazer, para os Sámi, êxito nas atividades de caça e pesca, o controle da maré e clima favorável; ou então em situações de morte, doença, gravidez e nascimento (Broadbent & Edvinger, 2007).

            Uma teoria interessante a esse respeito da utilização sagrada desses labirintos é a de Bjornar Olsen (1996). Segundo ele, esses labirintos serviriam como metáfora física para um rito de passagem muito específico: o da transição da vida para a morte. Similar a outros ritos de passagem

o momento do morrer também é uma situação em que as fronteiras entre um estado social e outro são rompidas e transformadas. Portanto, quando um membro da comunidade morria, o xamã conduziria esse ritual, entrando sozinho no labirinto –  expressando a separação, tanto simbólica quanto social, entre o indivíduo recém-falecido e sua vida -. Ao adentrar o labirinto, o xamã demarcaria a separação entre o morto e sua vida/função social. A cerimônia, então, terminaria com o xamã saindo do labirinto e manifestando essa incorporação, agora plena, do indivíduo falecido nesse outro estado, que seria o da morte.

            Pode-se indagar por quê necessariamente a estrutura de um labirinto para a prática desse ritual. Não poderia qualquer estrutura cumprir essa função? A religiosidade Sámi, forte e essencialmente xamânica (Abercromby, 1898; Rydving, 1993), concebia a passagem para a morte como uma jornada estreita, tortuosa, difícil e longa, que deveria ser percorrida pelo falecido. Por isso a representação dessa jornada em formato de um labirinto concêntrico, caminhado por um xamã: enquanto alguém que conhece esse caminho, já o percorreu diversas vezes e voltou, ele seria uma figura auxiliar e porta-voz do falecido, ajudando-o a cumprir essa transição. Desse modo, somente o xamã pode incorporar a alma do indivíduo morto e transportá-la para sua nova moradia (Olsen, 1996).

            Conforme pôde-se observar, os labirintos Sámi ainda despertam controvérsias e muitas incertezas ainda giram ao seu redor. Afinal, são monumentos tão curiosos quanto enigmáticos, e seus significados ainda estão por ser desvendados. Inclusive, o número de estudos e menções a esses labirintos no meio acadêmico, até mesmo no exterior, são ainda tímidos.





Referências

  
ABERCROMBY, John. The Pre- and Proto-Historic Finns. Londres: Strand, 1898.

BROADBENT, Noel. Lapps and Labyrinths: Saami Prehistory, Colonization and Cultural Resilience. Washington: Smithsonian Institution Scholarly Press, 2010.

BROADBENT, Noel; EDVINGER, Britta. Acta Borealia: A Nordic Journal of Circumpolar Societies, 23:1, p. 24-55, 2007.


RYDVING, Hakan. The End of Drum-Time: Religious Change Among the Lule Saami, 1670S-1740S. Historia Religionum, n.12, 1993.


OLSEN, Bjornar. Stone Labyrinth in Arctic Norway. Caerdroia, n.27, p. 24-27, 1996.